quarta-feira, 23 de outubro de 2013

A Queda de Um Anjo - Camilo Castelo Branco


Li este livro pela primeira vez quando ainda era estudante. Hoje, uns 30 anos depois, deliciei-me da mesma forma com as aventuras e desventuras deste deputado transmontano do século XIX mas que nos faz lembrar, a cada passo, os políticos de hoje em dia. Afinal, há vícios que são intemporais.
Calisto Eloy de Silos e Benevides de Barbuda, o morgado de Agra de Freimas era um ingénuo, o puro, o quase santo miguelista, defensor acérrimo da moral e bons costumes. Logo no início da carreira tentou impor na câmara de Miranda do Douro as leis do foral de Afonso II. Não lho permitiram, afirmando os progressistas que tais leis estavam desatualizadas. Calisto ficou despeitado! Furioso! Como podem a moral e os bons costumes estar desatualizados? Esta pureza de sentimentos, esta generosidade na defesa dos valores maiores, fazia de Calisto o verdadeiro anjo! Uma preciosidade!
Casado era com a prima Teodora, uma mulher pouco afortunada pelas belezas temporais mas um exemplo de qualidades morais; um poço de virtudes. Uma mulher ignorante mas pura, feia mas adornada pelas maiores virtudes da alma.
No entanto, bastaria avançar uns dez anos na linha do tempo para encontrarmos um Calisto Eloy deputado em Lisboa, elegantemente vestido, fumando charuto e acompanhando uma bela e elegante amante, nos teatros da capital. Até de partido mudara: tornara-se deputado do governo, traindo todos os princípios conservadores que tão acerrimamente defendera.
Esta é a caricatura de toda a corrupção a que o poder conduz. Um livro que se afasta imenso do tradicional romantismo camiliano para formar um quadro de crítica social que o aproxima, por exemplo, da crítica queirosiana.
O provincianismo é o menos mau dos males. Muito pior que ser provinciano é defender ideias ao sabor das conveniências. O tradicionalismo de Calisto é visto como expressão de uma certa ingenuidade. Pelo contrário, a sua adaptação aos luxos e vícios do poder são expressão de toda a hipocrisia que o próprio poder gera.
É um pouco injusto considerar Camilo um escritor romântico ou de novelas “fáceis”. Ele revelou uma qualidade que poucos conseguiram superar: a versatilidade. Este livro é incomparável, como foram incomparáveis As Novelas do Minho ou Eusébio Macário.
O que mais surpreende neste livro é a extensão da visão crítica de Camilo; não é só a hipocrisia da classe política que está em causa; é o seu intemporal oportunismo, mas é também a crítica de costumes, a crítica social a uma fidalguia pedante, beata e ignorante de que ainda hoje encontramos eco nos corredores do poder político.

Enfim, um livro agradável, por vezes hilariante, inteligente e… atual!

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Terra Sonâmbula - Mia Couto

Sinopse:
Moçambique, década de 1990. Numa terra devastada pela guerra, um menino sem memória é encontrado por um velho errante. Muidinga e Tuahir, ambos marcados por conflitos que não entendem, desprovidos de passado e de esperança. Unidos, fazem de um machimbombo incendiado a sua casa, e de um diário, encontrado junto de um cadáver, a sua demanda. Nas linhas do caderno, Muidinga acredita ter um mapa que o levará de volta à sua mãe. Nessa busca, o insólito par descobre-se, reinventa-se, enfrenta a insanidade e a miséria que grassam em seu redor, e recusa deixar morrer o alento. Tal como a terra que percorrem sem destino, uma terra que nunca dorme, nunca descansa, uma terra sonâmbula.
Já adaptado ao cinema, Terra Sonâmbula foi considerado um dos doze melhores romances do século XX em África. Cruza elementos da cultura tradicional moçambicana com a própria história do país, realismo e magia, factos e símbolos, Terra Sonâmbulaé, acima de tudo, um hino ao poder dos sonhos e da vida.

Comentário:
Este talvez seja o melhor livro de Mia Couto.
Pelo menos, é o mais simbólico. Tudo neste livro é pensado, calculado, como se tudo o que Mia escreve tivesse por trás um segundo significado.
Mas é também o livro de Mia Couto que mais me agradou em termos de linguagem:

 O que faz andar a estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes do futuro.
A paisagem se mestiçara de tristezas nunca vistas, em cores que se pegavam à boca.

Isto é Poesia saída da terra. Os livros de Mia Couto têm este condão de nos embalar numa beleza impar das palavras. A sua escrita sintética, depurada, tem a mesma beleza que as paisagens de Moçambique.

Aqui, o céu se tornara impossível. E os viventes se acostumaram ao chão, em resignada aprendizagem da morte.
O chão, a vida e a morte; o céu enquanto sonho.

… a guerra que contaminara toda a sua terra
A guerra contaminara a terra com a morte.

Seu conceito era que a morte nos apanha deitados sobre a moleza de uma esteira. Leito dele era o puro chão, lugar onde a chuva também gosta de deitar:

Um conceito puro da terra: o pai de Kindzu encarava a terra como algo de puro e benéfico; ainda não estava conspurcada e amaldiçoada pela guerra.

Taímo recebia notícia do futuro por via dos antepassados. Dizia tantas previsões que nem havia tempo de provar nenhuma. Eu me perguntava sobre a verdade daquelas visões do velho, estorinhador como ele era.
O pai de Kindzu alinhava o tempo numa única realidade, sintetizando passado, presente e futuro através do sonho.

O comerciante indiano, Surendra, vítima de racismo, por ser ”monhé”: Eu gosto de homens que não tem raça. É por isso que eu gosto de si, Kindzu.

Depois há aqueles palavras em que Mia Couto transforma adjetivos em verbos; fico sem saber se será recurso literário de Mia Couto ou parte integrante do falar moçambicano?
As palavras originárias do falar moçambicano soam a poesia: “pensageiro” J o povo fala poesia…
E depois há o autor, na sua forma peculiar de brincar com a língua portuguesa, criando palavras como “administraidor”.

- Fica saber: o chão deste mundo é o tecto de um mundo mais por baixo. E sucessivamente, até ao centro, onde mora o primeiro dos mortos.

A terra está sempre presente. Numa visão ecológica, ela é o mundo natural que se mistura com a vida humana. Mas numa visão mais transcendente, ela é a pátria dos mortos que, no entanto, fazem parte do mundo dos vivos.

A guerra é uma desgraça que nunca vem só. Além de trazer a fome, trouxe a corrupção, que é a forma de os ricos se fazerem donos daquilo que seria dos pobres.

O tchóti, o anão caído dos céus, é o elemento fantástico que representa a intervenção do além na vida dos homens; ele não é da terra, assim como a bela mulher, a aparição que surge ao rapaz, no barco. Farida era filhado Céu. Pelo contrário, o velho Siqueleto é emanação da terra, mas uma terra violenta porque violentada, cruel porque vítima de crueldade.

Os personagens do livro são, todos eles, nómadas; desenraizados; como se a terra, sonâmbula, lhes fugisse.

Nhamataca, amigo de Tuhair, é o fazedor de rios: a água purifica a terra, é o elemento positivo. Veja-se a diferença entre o autocarro e o barco; aquele encerra a morte, enquanto o barco abriga o amor.
Na parte final o mar surge como elemento redentor e nascente de esperança, por oposição a uma terra sonâmbula, na antecâmara da morte e de um autocarro queimado, onde a esperança da partida para outras paragens há muito morrera.


Esta guerra não foi feita para vos tirar do país mas para tirar o país de dentro de vós – diz o feiticeiro; é com esta angústia de uma terra vencida pela guerra e de um povo massacrado que termina o livro.

domingo, 13 de outubro de 2013

A História de uma Serva - Margaret Atwood



Sinopse
Uma visão marcante da nossa sociedade radicalmente transformada por uma revolução teocrática. A História de Uma Serva tornou-se um dos livros mais influentes e mais lidos do nosso tempo.
Extremistas religiosos de direita derrubaram o governo norte-americano e queimaram a Constituição. A América é agora Gileade, um estado policial e fundamentalista onde as mulheres férteis, conhecidas como Servas, são obrigadas a conceber filhos para a elite estéril.
Defred é uma Serva na República de Gileade e acaba de ser transferida para a casa do enigmático Comandante e da sua ciumenta mulher. Pode ir uma vez por dia aos mercados, cujas tabuletas agora são imagens, porque as mulheres estão proibidas de ler. Tem de rezar para que o Comandante a engravide, já que, numa época de grande decréscimo do número de nascimentos, o valor de Defred reside na sua fertilidade, e o fracasso significa o exílio nas Colónias, perigosamente poluídas. Defred lembra-se de um tempo em que vivia com o marido e a filha e tinha um emprego, antes de perder tudo, incluindo o nome. Essas memórias misturam-se agora com ideias perigosas de rebelião e amor.

Comentário:
A leitura deste livro fez-me viajar mentalmente, várias vezes, para esse magnífico livro que é “A Estrada” de Cormac Mccarthy. Neste como naquele, o cenário apocalíptico assola a mente do leitor com aquilo que tem de mais medonho: a sensação de realidade, de um pesadelo real. A serva é uma personagem anónima e subjugada por um mundo onde todo o sonho se perdeu, onde a vida não passa de uma terrível prisão, sem destino, sem qualquer raio de esperança. O seu nome, por exemplo, é apenas um patronímico (Defred resulta do seu dono ser Fred). Até ao nome ela perdera o direito.
No fundo, é esta a realidade contraditória da atual sociedade americana: a pátria do capitalismo, das liberdades individuais, a pátria do sonho, caminha para um abismo. São enormes as implicações políticas desta mensagem; trata-se de um estrondoso grito de alerta perante o crescente radicalismo de algumas ideologias políticas mas é mais que isso: é uma reflexão filosófica mas tremendamente real sobre o futuro da América. E não é só o caminho errado das políticas americanas que está em causa. É também um culto do obscurantismo, da ignorância, que haveria de conduzir a tal desgraça. Essa ignorância haveria de conduzir a conflitos políticos e militares que estiveram na base da afirmação da tirania geradora de tal cataclismo social.
O final do livro revela-nos que o apocalipse não é universal: a velha Europa tinha escapado àquele caminho. Não deixa de ser curiosa esta leitura tendo em conta a onda de pessimismo em que o velho continente está hoje em dia mergulhado.
Um aspeto fundamental deste livro é o facto de serem as mulheres as vítimas de toda a opressão que o regime ultra conservador envolveu; elas são a esperança de um novo mundo mas são também as escravas do regime. O facto de só elas serem portadoras da esperança, gerando filhos (e é essa a sua única função) levou ao inverso do que seria lógico: levou ao desprezo total dos seus direitos e da sua própria vida.
Muito mais do que um livro escatológico, este é um livro negro; a voz da autora soa como um grito de alarme perante as contradições e os erros do sistema político, da mentalidade e das estruturas sociais dos EUA.
No entanto, a intervenção social da mensagem não é o único ponto forte da obra; a narrativa é sempre emocionante, numa estrutura que Margaret Atwood concebeu de forma magistral, com flashbacks que contribuem para manter acesa toda a curiosidade do leitor sobre a origem daquele beco sem saída em que entrara a sociedade norte-americana.