segunda-feira, 25 de maio de 2015

O Guinéu da Orfã e A História do Limpador de Botas - Charles Dickens


Comentário:
Chegaram-me às mãos estes dois livrinhos que, como é óbvio, li num instante. Por se tratar de narrativas curtas com características comuns, optei por inseri-los numa mesma mensagem.
Trata-se de um curioso formato de minilivros, ideal para uma viagem ou uma sala de espera. O Guinéu da Órfã contem apenas um conto, enquanto a História do Limpador de Botas inclui para além do conto que dá título ao livro, A História de Ninguém e Entrar na Sociedade.
Para ir diretamente ao mais importante, o que melhor me impressionou nestes pequenos contos foi a constatação de uma verdade que só confirma o génio de Dickens: se, nas suas grandes obras, ele se espraia por explicações e descrições por vezes demasiado exaustivas, na narrativa curta, Dickens coloca totalmente de parte essa tendência, oferecendo-nos uma escrita muito económica, cingida ao essencial, desprovida de qualquer elemento supérfluo. Como é próprio de um contista de génio, ele consegue tratar a escrita de como se fosse filigrana, com um cuidado notável na escolha das palavras, o que confere uma enorme clareza à narrativa.
O Guinéu da órfã é um conto que sintetiza muitos dos grandes temas da obra de Dickens: a atenção dada aos desprotegidos, nomeadamente os órfãos, para quem a caridade vitoriana é mais um aspeto de exterioridade do que, de facto, obra de ajuda ao próximo. Por outro lado, a crítica social, nomeadamente em relação a uma aristocracia fútil e materialista.
A História do Limpador de Botas é um conto de raríssima beleza onde está bem vincada a sensibilidade e o humanismo de Dickens. O personagem central da estória é Cobbs, um modesto mas simpático criado de uma família abastada. Cobbs sintetiza as qualidades que o autor vê nas classes inferiores da sociedade: laboriosas e injustiçadas. Cobbs funciona, no entanto, como narrador da estória que nos fala da paixão infantil entre duas crianças com cerca de dez anos. Ao abordar o amor puro e belíssimo entre Henry e Norah, Dickens constrói algumas das páginas mais belas da sua bibliografia. É que Henry e Norah ainda não estão corrompidos pela hipocrisia e vícios da sociedade aristocrática; eles são belos e encantadores na sua pureza e na sua inocência. Eles são belos e de coração puro. Por oposição,  a sociedade é pérfida  e injusta.

sábado, 16 de maio de 2015

À Espera de Godot - Samuel Beckett

Comentário:
Há alguns dias vi num blogue amigo (aqui) um comentário muito interessante a esta peça de teatro e recordei-me de ter visto uma representação, salvo erro da Companhia de Teatro de Braga, há muitos anos atrás. Na altura eu era um jovem e, como tal, pouco dado a reflexões e talvez por isso achei a peça uma “valente seca”. Essas memórias levaram-me a ler a peça, com a pergunta subjacente: continuarei a achar a peça “uma seca” ou o seu inegável valor acabará por triunfar? Pois bem, depois de ler o texto, devo dizer que compreendo perfeitamente o tal jovem que saiu maçado do Theatro Circo de Braga nos anos 80. A peça é chata! Genial, mas chata. Não tem graça, não diverte, os diálogos são monótonos e obriga-nos a pensar. Mas… esperem lá… isto é um elogio; afinal os milhões de seres humanos que dizem que esta peça é genial lá terão também a sua razão; é que isto de esperar por um Godot ainda mais absurdo que o D. Sebastião tem muito de nosso. Não só de nós, portugueses que já nos basta o sebastianismo, mas de todos os seres humanos. Na maior parte das vezes nem sabemos se Godot é bom ou mau; e chegamos ao fim da vida sem saber, sequer, se valeu a pena esperar pelo Godot que nunca apareceu. Uma coisa é certa: o sentido da vida está precisamente nessa espera. A alternativa, tal como acontece com os personagens da peça, é pendurar a corda e esticá-la acima do nosso próprio pescoço…
Chamam-lhe teatro do absurdo mas isto parece-me bem real. E enquanto esperamos o que fazemos: falamos de banalidades; trocamos ideias; conhecemos gente como nós, que espera Godot ou outra coisa qualquer; algumas dessas pessoas até têm escravos para satisfazer algumas necessidades… mas nem essas conseguem evitar a angústia da espera…
Ao fim e ao cabo, do que aqui se trata é do “deixar passar a vida”, que é um dos grandes dramas de todos nós. Há sempre algo para fazer, algo para nos distrair e nem damos conta do tempo que passa, das coisas que ficam por fazer mas… mas afinal havia algo para fazer? Afinal será algum drama esperar por Godot? Não será esse o destino de todos nós? E tem isso de ser obrigatoriamente mau? É que Godot pode até ser a nossa salvação! 
Enfim, como se vê, a peça cumpre a sua função: levantar questões e, como obra de arte que é, suscitar interpretações, sejam elas tão doutorais como as inúmeras teses a que já deu origem, sejam apenas diletantes e amadoras no melhor sentido do termo, como a minha.

Sinopse: (in wikipedia.pt)
A rubrica inicial define: Estrada, árvore, à noite (Route à la campagne, avec arbre. Soir). Em cena Estragon e Vladimir. Aparentemente esperam um sujeito de nome Godot. Nada é esclarecido a respeito de quem é Godot ou o que eles desejam dele. Os dois iniciam longo diálogo, só interrompido quando da entrada de Pozzo e Lucky. Lucky carrega uma pesada mala que não larga um só instante. O segundo ato desenvolve a mesma dinâmica. O cenário é o mesmo, apenas a árvore está um pouco diferente, agora com algumas folhas. Estragon e Vladimir iniciam sua jornada na espera de Godot. Surgem novamente Pozzo e Lucky. Pozzo está cego e Lucky surdo. Após a partida destes, aparece novamente um garoto anunciando novamente que Godot não virá, talvez amanhã. O diálogo final, que encerra o ato e a peça é o seguinte:
Vladimir: Então, devemos partir? (Alors, on y va?) (Well, shall we go?)
Estragon: Sim, vamos. (allons-y.) (Yes, let's go.)
Eles não se movem. (Ils ne bougent pas.) (They do not move.)

domingo, 3 de maio de 2015

Steven Saylor - O Abraço de Némesis


Continuo assustadoramente seduzido por esta coleção Roma Sub-Rosa. O autor é um autêntico Connan Doyle em plena República Romana e o seu herói, Gordiano, um Sherlock Holmes da antiguidade. Além de muitas outras coisas, este livro veio chamar-me a atenção para alguns aspetos desta temática que nós, leitores de romances históricos, tendemos a esquecer. Por exemplo, a República Romana é o verdadeiro berço da mentalidade europeia. Diz-se que o pensamento grego modelou a Europa Moderna. Disparate. O pensamento grego foi profundamente filtrado pelo crivo romano, que o temperou com a vida. Os romanos, nossos antepassados e mentores adoravam viver; mesmo que fosse preciso matar; o hedonismo romano, o seu apego à vida e ao prazer conduziu-os aos limites. No entanto, são limites dolorosos. Aquele Carpe Diem levou-os a fenómenos extremos, alguns deles bem narrados neste belíssimo Abraço de Némesis: a forma como o aristocrata Marco Crasso se dispõe a sacrificar 99 escravos para reforçar a sua carreira política diz bem até que ponto poderia chegar essa fibra romana, essa tenacidade em viver nos limites. 
Nesta altura alguns dos meus leitores poderão estar a pensar: ora, grande coisa, dispor da vida dos outros, ainda por cima escravos… como é que isso pode ser uma forma de viva no limite, ou de assumir riscos? É que da mesma forma que o romano dispõe da vida do escravo, não hesita em colocar o seu pescoço ao alcance do punhal de qualquer inimigo; era vulgar matar por interesse político. Daí que fosse vulgar morrer pelo mesmo motivo e todos os romanos sabiam isso. Na Europa, a morte como algo de assustador e distante é um fenómeno muito mais moderno do que se possa pensar. Basta ver a facilidade como que se morria nas batalhas napoleónicas, 1900 anos depois da República Romana. 
Némesis é a deusa da vingança. Mas uma vingança em função da verdade e da justiça. Neste livro, com um enredo muito imaginativo e engenhoso, conta-se uma estória cheia de interesse não só pelo colorido da realidade de Roma Antiga mas também pela forma como o autor constrói a narrativa, cheia de mistério e incerteza até ao fim. Na verdade, ao contrário do que me aconteceu com outros livros desta série, aqui o autor surpreende sempre o leitor, não deixando grandes pistas para que se possa adivinhar o assassino, nem sequer a forma como a narrativa evolui.
Isto significa que, na minha opinião, este é o livro mais interessante dos que já li desta série; empolgante e muito rico em informação. Por exemplo, as condições de vida dos escravos romanos são aqui descritas em grande pormenor e muito bem enquadradas. Mas um dos aspetos mais interessantes é a abordagem da religião romana, na figura da Sibila. As Sibilas representavam na perfeição o verdadeiro âmago da religião romana: uma mistura perfeita entre crença e superstição. Mas algo mais: uma voz da justiça que contribuía para um certo equilíbrio social. Isso reflete também uma dimensão prática, pragmática da religião. Realista, diria mesmo: a religião estava presente em todos os aspetos do dia-a-dia dos romanos, mas de uma forma muito mais pragmática do que aquilo que vai acontecer com o advento do cristianismo, em que a religião adquirirá uma feição preponderantemente moralista e condicionadora dos comportamentos. Por exemplo, o amor heterossexual só se afirmará com o paradigma judaico-cristão; neste livro está bem patente a naturalidade do amor a que hoje chamamos de homossexual e que para os romanos em nada se distinguia da heterossexualidade.

Sinopse (in wook.pt)
No sul de Roma, fica situada a magnífica vila de Marco Licínio Crasso, o mais rico cidadão romano. Quando o supervisor da propriedade é encontrado morto, Crasso conclui que terão sido dois escravos pertencentes ao Movimento de Libertação de Escravos. Mas quando Gordiano, o Descobridor, é chamado para investigar, a realidade revela-se muito diferente..