quinta-feira, 3 de março de 2016

Pomar de Histórias - José Fernandes da Silva

Comentário:

Na senda dos seus livros anteriores, José Fernandes afirma-se como o escritor da terra e do povo; o artesão de uma prosa muito aparentada à poesia que tanto cultiva. Aqui, as palavras parecem nascer da terra amanhada pelo talento do poeta.
José Fernandes concretiza assim a fidelidade às raízes das quais ele próprio brotou; filho da terra e de um povo humilde; é a esse povo que ele procura fornecer uma identidade; o que o autor busca não é apenas contar belas estórias das suas gentes; é dar a essas gentes aquela identidade, aquela coesão enquanto Povo que os tempos modernos parecem ameaçar. Uma identidade que parece ser fornecida por uma espécie de honra que se configura como traço de união entre os vários contos; uma honra fundada sobre a moral cristã mas também sobre as leis da natureza.
Ao nível do estilo, José Fernandes reforça neste livro um aspeto que é transversal a toda a sua obra: a musicalidade das palavras. Raros são os escritores que conseguem obter descrições tão precisas e concisas, numa linguagem objetiva, bela mas sem floreados desnecessários. Para mim, que devo ao autor a honra da sua amizade, a explicação para esta filigrana das palavras é simples: é a arte do músico ao serviço da escrita. Sendo músico, José Fernandes transporta para as palavras os acordes e as melodias das pautas com que convive diariamente.
Nesta prosa natural lê-se a alma de poeta – a capacidade para encontrar mensagens nas coisas mais simples da vida; muitos destes contos partem de situações absolutamente banais da vida mas nas quais o autor encontra sempre um significado especial; e é aí que reside o encanto da vida: na beleza das pequenas coisas…
Mas este livro, como os anteriores do autor, é também um testemunho etnográfico; estamos perante um belo repositório de usos e costumes, tradições e até linguagem específicos de um mundo rural que está em vias de se perder; daí as numerosas referencias aos séculos passados onde o autor coloca a ação de várias destas narrativas; este já não é o mundo das novas gerações…
Finalmente, gostaria de destacar três contos como representativos da obra na sua globalidade, em termos de temática:
- Logo a abrir deparamos com A Pedra com Inscrições; desconcertante o humor com que termina o conto. Alguém escrevera numa enorme pedra uma frase que convidava a que a virassem; só que o seu peso era brutal e a aldeia em peso passou séculos a tentar virá-la. Um dia, todo o povo, unido pela curiosidade e pela força da união, lá conseguiu, depois de sacrifícios imensos, voltar a pedra. Surpresa das surpresas: por baixo não havia tesouro algum. Mas na face voltada antes para a terra e agora voltada ao céu alguém descobriu uma inscrição que agradecia aos heróis que voltaram a pedra, que se encontrava cansada de tantos anos virada para o mesmo lado…
- O conto O Rio Feliz e Infeliz é um verdadeiro hino ecológico; não a essa ecologia pintada de cores políticas mas como uma manifestação singela de amor à terra e à água que dela brota; uma manifestação de amor de alguém que não esqueceu as suas raízes e que sofre com os disparates que o homem faz na força destruidora que resulta da ambição de riqueza.
- Depois da queda é um conto sobre as desigualdades sociais, que ainda hoje prevalecem. A sociedade humana é por natureza desigual e injusta, no entanto, neste mundo fechado rural a desigualdade é marcada por barreiras quase inultrapassáveis entre os diferentes grupos; prevalece uma aristocracia terratenente herdeira da velha nobreza que se demarca em absoluto do povo.
Conclusão: este livro da Calígrafo merece ser lido pela linguagem clara, bela e cristalina; pela temática rural que faz do autor um lídimo herdeiro da melhor tradição neorrealista; pela graça, pelo humor discreto da malandrice, da mais inocente brejeirice; e, acima de tudo, pela alma da terra que brota em catadupas destas páginas.
Uma nota final para destacar o belo prefácio do escritor João Lobo, também ele uma emanação da alma da terra.

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