quinta-feira, 25 de agosto de 2016

As Dez Figuras Negras - Agatha Christie


Comentário:
Uma das leituras mais emocionantes dos últimos tempos. Incerteza total quanto ao desfecho e um suspense permanente, não só em relação ao final como a tudo quanto vai acontecendo. O leitor nunca sabe o que acontece de seguida. É sabido que Agatha Christie é uma mestra do suspense, mas este livro, a par de Crime no Expresso do Oriente é uma enorme obra-prima do suspense, do policial e até, em alguns aspetos, do terror.
Uma das mais importantes chaves para o sucesso de Christie é que na sua escrita nada é supérfluo. Há muitos (e bons) escritores contemporâneos que deviam ler com atenção este livro para verem como são desnecessárias aquelas longas descrições herdadas da literatura realista ou aquelas reflexões pseudofilosofias que, muitas vezes só servem para entediar quem lê e mesmo para encorajar o abandono da leitura
Um outro princípio fundamental da obra de Agatha Christie é que, desde o início, o leitor conhece todos os elementos que serão fundamentais para o desfecho de todo o enredo. Nada lhe é escondido, como acontece nos maus policiais. Na verdade, há muitos atores, alguns até com algum sucesso que recorrer a um estratagema pouco honesto para com o leitor, que é o de apresentarem um culpado que entrou tardiamente no enredo. Pelo contrário, os grandes mestres do policial não escondem os trunfos. Neste livro o assassino é alguém que conhecemos desde as primeiras páginas do livro.
Finalmente, o último mas não menos importante ingrediente do sucesso: a surpresa do final. Como se diz em linguagem comum, aquilo não passava pela cabeça de ninguém… no entanto, tinha a sua lógica…

Sinopse: (em fnac.pt)
Em Fevereiro de 1972, Agatha Christie escreveu uma carta ao seu editor. Nessa missiva, incluída nesta edição especial, a Rainha do Crime elegeu os dez livros de sua autoria de que mais gostava. "As Dez Figuras Negras" foi considerado pela autora como um “desafio que lhe trouxe muita satisfação”. Publicado na Grã-Bretanha, em 1939, e nos Estados Unidos, em 1940, seria também adaptado para teatro e cinema.Dez desconhecidos que aparentemente nada têm em comum são atraídos pelo enigmático U. N. Owen a uma mansão situada numa ilha da costa de Devon. Durante o jantar, a voz do anfitrião invisível acusa cada um dos convidados de esconder um segredo. Nessa mesma noite um deles é assassinado. A tensão aumenta à medida que os sobreviventes se apercebem de que não só o assassino se encontra entre eles como se prepara para atacar uma e outra vez…

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

A Pastoral Americana - Philip Roth



Comentário:
Decadência: eis a palavra-chave desta obra; a decadência do ser humano, a decadência de um povo e a decadência de um país.
Antes de mais nada, a crítica; a visão crítica dos Estados Unidos da América a que Roth já nos habituou em quase todos os seus livros: está aqui tudo: a criminalidade, mesmo jovem, o absentismo, o moralismo, o conservadorismo, etc. Até no aspeto económico: a necessidade de mão-de-obra barata, com a deslocalização para a Ásia de muitas indústrias.
Num plano mais pessoal, fica bem patente a nostalgia e a saudade nas recordações de infância. A vida de Seymour Levov (heróica na juventude e trágica no final) exprime a visão negativa do destino e da condição humana. É que por oposição a essa infância feliz há uma realidade grotesca, medonha, que atinge o Sueco Lvov: a sua filha que aos 16 anos se torna assassina, terrorista, é violada e adere a uma seita radical. Por detrás disto está um inevitável e dramático choque de gerações – “Você amou sua filha como se fosse a porra de uma coisa”; talvez a causa do conflito esteja nesse culto da posse, típico do sistema capitalista, mas também num excessivo zelo pelo cumprimento das normas; a geração antiga tende para o certinho e direitinho, nunca preparando os filhos para a quebra do protocolo, para a necessária e incontornável quebra das regras.
Mas, para além do conflito de gerações está também um terrível choque pessoal, um destino dramático e doloroso.
Por todo o livro é nítido um certo lamento do envelhecimento e, ao mesmo tempo uma visão romântica do passado a condizer com uma visão pessimista do futuro e uma leitura bem negra do presente. O cancro de que sofre o escritor /personagem/narrador é o símbolo dessa visão cinzenta da realidade do país e do mundo.
A Pastoral e a contrapastoral: “A filha que o transporta para fora da sonhada pastoral americana e para dentro de tudo o que representa a sua antítese e o seu inimigo, para a fúria, a violência e o desespero da contrapastoral — para a selvajaria nativa americana.” A vida certinha, feliz, perfeita do Sueco Levov representava a Pastoral americana – a cartilha do sucesso, em que cada geração é um aperfeiçoamento da anterior. Mas a filha, que representa a última geração corta com a Pastoral; ela e a sua geração são a sua antítese. Assim, neste aspeto, a obra assume uma feição algo catastrofista ou, pelo menos, pessimista em relação ao destino da América. Revoltada contra a guerra do Vietname e contra o comodismo, bem como a acomodação da geração dos pais, a juventude dos anos 60, aqui representada por Merry, torna-se contestatária. E o país não está preparado para a compreender.
Mas a revolta não era apenas contra a guerra. Esse foi apenas o ponto de partida; era contra todo o modelo de vida capitalista. Contra a pastoral burguesa. Em causa estava por exemplo a procura de mão de obra barata. A crise económica, da qual a ruína da indústria das luvas é símbolo, vai dando lugar à crise social. Multiplicam-se os movimentos de contestação e os atentados. O livro de Roth torna-se premonitório em relação à América atual.
Um ritmo narrativo por vezes muito lento torna o livro algo enfadonho, ao contrário de outras obras de Roth. Por exemplo, porquê tanto espaço para declarar a futilidade dos concursos de misses? E porquê tanto pormenor na descrição dos métodos de fabrico de luvas de couro? Não vejo como o leitor possa seriamente beneficiar disso… é certo que Roth traça um desenho aprimorado da realidade norte-americana, especialmente nas suas faces mais negras, mas o exagero de pormenores retira, em alguns capítulos, esse prazer da leitura que todos procuramos.

SINOPSE (in wook.pt)

Philip Roth aborda frequentemente a necessidade humana de demolir, desafiar, opor, separar. 
Neste livro, contudo, foca-se no oposto: a necessidade de viver uma vida calma e normal. 
Seymour «Sueco» Levov, um lendário atleta universitário, devotado homem de família, trabalhador esforçado e próspero herdeiro, envelhece na triunfante América do pós-guerra, vendo esfumar-se tudo o que ama quando o país começa a efervescer nos turbulentos anos 60. 
Nem o mais tranquilo e bem-intencionado cidadão consegue escapar à vassourada da história, nem o Sueco pode permanecer para sempre na felicidade da amada e velha quinta em que vive com a sua bela mulher e a filha, que se torna uma revolucionária terrorista apostada em destruir o paraíso de seu pai. A inocência do Sueco Levov é varrida pelos tempos - como tudo o que foi criado pela sua família, através de gerações, deitado por terra na violenta explosão de uma bomba no seu bucólico quintal.

sexta-feira, 5 de agosto de 2016

Triste Fim de Policarpo Quaresma - Lima Barreto


Comentário:
A quem lê este livro é impossível não recordar o imortal D. Quixote. Quaresma é, tal como o cavaleiro de La Mancha, o idealista ingénuo, o homem que cumpre um sonho se bem que singelo, inocente. Ele era funcionário. Mas, ao contrário de todos os outros (afundados na passividade rotineira) ele vai à procura de um ideal, neste caso a defesa intransigente dos valores da Pátria, que ele considera a melhor de todas. O Brasil é o seu valor supremo e ele pagará caro por esse sonho de mostrar aos seus concidadãos essa grandeza.
Este enredo tão peculiar e interessante é o ponto de partida para um livro cheio de interesse, pela beleza de uma linguagem simples, direta, como quem conversa com o leitor mas também e acima de tudo pela deliciosa crítica, sempre num tom bem-disposto, bem-humorado. Os alvos são vários; a mordacidade da crítica atravessa toda a vida social daquele Brasil de início de século, mas desses alvos sobressaem especialmente dois: os políticos e os funcionários públicos. Os políticos, apenas interessados no voto deixam-se levar por um populismo calculista e por um amor ao poder que os leva aos mais baixos “jogos” de influências; esses jogos são por sua vez conduzidos pela corrupção – tudo se decide mediante os pedidos e os favores. Os funcionários públicos, por sua vez, são criticados pela sua indolência, pela passividade, pela inutilidade e por uma cultura pedante, sem conteúdo.
Mas não fica por aqui a pena mordaz de Lima Barreto. São também seus alvos os costumes: por exemplo o casamento como único objetivo da mulher, o papel passivo do elemento feminino, como espécie de figura decorativa que, no entanto é vítima de um crónico machismo; a personagem Isménia, por exemplo, morre vítima dessa condição feminina. É ainda apontado o pedantismo e a ostentação dos licenciados e até dos escritores dados ao barroco. Os militares são inúteis e corruptos; as suas promoções são obtidas por influências e a sua competência é nula. Mas nem o povo escapa; o desleixo e a indolência são os seus principais defeitos, a par do diletantismo e ignorância das classes altas – “Aquele Quaresma podia estar bem, mas foi meter-se com livros... É isto! Eu, há bem quarenta anos, que não pego em livro...” (fala do general amigo de Quaresma). Mais interessados no poder do que no progresso do país, militares e políticos controlam o povo, conduzindo-o a revoltas e a conflitos dos quais só eles beneficiam.
Em suma, estamos perante um livro que marcou o início do modernismo literário no Brasil, um livro marcante em termos históricos e que podia e devia ser mais divulgado, pelo menos em Portugal.

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

O Homem que sabia Javanês e outros contos - Lima Barreto

Comentário:
Lima Barreto é considerado um dos mais importantes escritores brasileiros, embora pouco conhecido em Portugal. Viveu na transição do século XIX para o XX pelo que o seu estilo enquadra-se no realismo então em voga, essencialmente na ênfase que dá à crítica social e política. Mas esta obra vai mais além; o sentido de humor e a sátira tornam este livro delicioso de ler.
O seu estilo é leve, fluido, direto, colocando a narração dos factos acima de quaisquer considerações ou descrições exageradas. A sua linguagem é acessível e sempre bem-humorada.
Desta edição do Polo Editorial do Paraná constam 17 pequenas narrativas. O conto que dá título ao livro é uma pérola; uma preciosidade pela crítica deliciosa e bem-disposta à forma como algumas pessoas ascendem socialmente. O homem não sabia absolutamente nada de javanês. Mas fingiu que sabia e acabou ensinando essa estranha língua e daí à subida na escala política foi um pequeno passo. 
O homem não era inteligente; era esperto; e é essa esperteza saloia, tão típica dos políticos que aqui é retratada e satirizada.
Mas há muitos outros tipos sociais retratados e por vezes parodiados nestes contos e dos quais aponto alguns exemplos. 
Em Três Génios de Secretaria, a crítica ao funcionalismo público: negligente, incompetente, maledicente. Mas todos temos um pouco de funcionário público: “todos nós nascemos para empregado público”. A burocracia, bem kafkiana é a lógica do sistema – a lógica da idiotice em que todos, afinal, com o nosso espírito de funcionário público, nos enquadramos.
Em O Número da Sepultura conta-se a história de Zilda, esposa clássica, recatada e de bons costumes, a quem uma vez aconteceu algo de pouco habitual. Mas só uma vez… É a sátira à classe média, a pequena burguesia sem grandes aspirações, por isso mesmo conservadora nos costumes e reticente a qualquer risco.
Em O Falso Dom Henrique V, Lima Barreto constrói uma narrativa completamente diferente: cria um contexto histórico para o qual transpõe a acérrima crítica política às realidades do seu tempo, nomeadamente às políticas sociais injustas e às intrigas palacianas em que “vale tudo” para atingir o poder político.
O pequeno conto O Pecado constitui uma crítica brutal à igreja católica.
No conto O Filho de Gabriela, Lima Barreto explica de que forma a origem social e, principalmente, a consciência dessa origem social condicionam a vida de qualquer ser humano. Horácio nasceu pobre e enjeitado; os seus pais adotivos, no entanto, nunca deixaram de lhe fazer sentir a distância que a sua condição impunha; e seria o próprio Horácio a interiorizar a sua inferioridade. Com consequências terríveis.
Em jeito de conclusão podemos dizer que estamos perante um livro que consegue aliar de forma notável as mensagens que o autor quer transmitir a um formato de leitura muito agradável. E quando assim é, só se pode dizer que vale a pena ler!