Comentário:
Atenção – Isto que se segue não é crítica literária; é um
texto suficientemente reles para pôr os cabelos em pé a qualquer crítico
literário que se preze. Portanto, se porventura o leitor é crítico literário,
preserve a sua sanidade mental e saia daqui. Vaze… Xô…
Logo de início, uma nota do editor (sobre a forma como os
autores se conheceram) deixa um sorriso nos lábios de quem lê e esse sorriso
manter-se-á ao logo de quase toda a leitura. Daqui para a frente, uma série de
episódios avulsos, sobre gente avulsa, da cidade de Avulsa vão deleitar-nos até
ao ponto de chegarmos à mensagem propriamente dita. Passemos a observar alguns
desses traços que tanto nos divertem:
Na apresentação da bibliotecária velha, é de louvar a
sinceridade e coragem do autor ao classificar de “nojenta” a verruga da
senhora, porque a verruga tradicional, ou é de bruxa, a verruga dita normal, ou
é do tipo Catarina Furtado, daquelas que a gente até acha bem… esta não é uma
nem outra. É nojenta.
Os autores deliciam-nos depois com a descrição de outras
maravilhas pitorescas de Avulsa, para além da dita verruga. Não há leitor, por
mais frugal que seja, que não morda os próprios dentes ao imaginar as delicias
que serão “Epifanias de ovos moles”, “apocalipses de chocolate e natas” e
outras iguarias do convento de freiras de Avulsa. E como em todas as cidades,
vilas ou aldeias, também em Avulsa existe um Vladimir – um obreiro de obras
feitas, um génio da bricolage, que é como quem diz, dos trabalhos caseiros que
deixam satisfeita qualquer dona de casa avulsana.
Neste livro, o leitor tem o inestimável privilégio de
aprender o que é uma cunicultora. É, no caso, Madame Leporídia. Se continuam
sem saber o que é uma cunicultora também não vou ser eu a revelar…
Inseparável de Avulsa é o seu rio, onde nadam gambozinos
mais “parlatoris” do que qualquer sogra velha. Do lado direito do rio nascera
Rive Gauche, lendário herói da revolução. Um dia partiu calado e voltou
revolucionário, para ficar na história e deixar belas memórias nos seus
conterrâneos. Só que um dia uma trapezista arrebatou-lhe o coração. Agora
vegeta, velho e pacifista. Assim morrem as revoluções.
Porque será que, de todas as personagens desta magna obra,
só uma tem nome português? E quem havia de ser? O Julinho Marreco, alcoólico
sem abrigo e utente do hospital psiquiátrico. Este facto muitas especulações
poderia gerar, quiçá uma tese – “Julinho Marreco, totó sem abrigo alcoólico – o
elemento tuga na obra de Fernando Évora”. Se o elemento tuga marca assim a sua
presença, também é de destacar o elemento bíblico, personificado em Jonas, o
manco, que não viveu na barriga de uma baleia mas no topo de uma coluna, como
Estilita. Aliás, a alcunha terá a ver com isto como poderá o leitor constatar…
Mas… quem é o Estilita? É ler o livro…
Até que um dia a velha bibliotecária foi derrotada por um
gato. Depois, foi em festa que veio a nova bibliotecária, jovem e arejada, esta
sim, uma boa bibliotecária, capaz de arrastar o mais ignorante para a
biblioteca. Tempos modernos se avizinhavam. E vieram ciganos e tendeiros. E o
Rive Gauche voltou também. A revolução não saiu à rua mas saíram os sonhos. E o
livro entra na zona séria. Sério mas de uma beleza extraordinária, num singelo
simbolismo. A beleza da bibliotecária talvez tenha feito soltar os sonhos. Um
dia, Lars perdeu um sonho… Lars, o marinheiro pescador de gambozinos é o único
personagem falado na primeira pessoa… perdeu um sonho e ficou para sempre
enclausurado num lar, ligado a uma máquina.
Entretanto a biblioteca tornara-se um sítio alegre e divertido,
o verdadeiro centro de Avulsa, já sem necessidade dos ratos de biblioteca que
caçavam livros proibidos no tempo da velha bibliotecária.
E a modernidade invade Avulsa, graças aos investimentos de
Tony Garrett. Até cria um bairro social moderno, substituindo o velho bairro da
Capa Torta, que tornava feia a cidade. Agora é ver o casario de arte
minimalista, os parques infantis e até se projeta um aeroporto. Tudo graças ao
investidor Garrett, ao arquiteto Pireu e principalmente à nova bibliotecária, a
grande líder, a grande modernizadora.
Até que um dia a desgraça bateu à porta de Avulsa – o banco
foi assaltado e todos os avulsanos foram chamados a fazer sacrifícios para
recuperar a economia. Mas a modernidade continuaria a brilhar, graças a Garrett
e à bibliotecária, sempre pronta para o serviço, mais os seus hamsters
amestrados.
Estes são alguns dos traços maiores de um livro que, como se
vê, é muito mais que um conjunto de histórias sobre Avulsa; aqui estamos todos
nós. Aqui está um barco que não é do marinheiro Lars mas se chama Portugal.
Estamos nós em tipos, em cromos divertidos mas muito sérios, bem significativos
do mundo em que vivemos.
Nota Final, não menos importante – a fazer lembrar sombras
chinesas, as personagens desenhadas por Gonçalo Condeixa não são aleijadinhas –
são belos bonecos estilizados. Dizem que é arte moderna. Mas têm muita pinta,
acreditem.
Sinopse:
Uma metáfora à História de Portugal do século XX.
Um livro que convida o leitor a desempenhar o papel de um detetive que descobre o verdadeiro sentido dos textos e desenhos.
Pequenas histórias sem moral —ou com uma moral muito discutível —que não deixam ninguém indiferente e que, afinal, formam uma única história.
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