Imagine-se um livro cuja estória
é contada por um narrador morto. Brás Cubas morreu e depois conta a estória.
Este pormenor dá ao livro um tom fantástico que reforça a característica
“exterior” mais marcante do livro: o seu magnífico sentido de humor. Este é, em
primeiro lugar, um livro divertido!
É comum identificar-se Machado de
Assis com a literatura realista. No entanto, este “carimbo” tem tanto de justo
como de insuficiente.
É um carimbo justo porque, de
facto, ler Assis faz lembrar Eça de Queirós na sua faceta mais realista: no
descrever da realidade concreta mas, acima de tudo, o quadro social e mental da
época.
No entanto, é um carimbo, também,
insuficiente porque Machado de Assis vai muito além do realismo. Já tinha
notado nas obras que li anteriormente (D. Casmurro e O Alienista) uma notável
propensão para o romance psicológico; Assis recusa muitas vezes a sequência
cronológica dos factos e segue apenas as divagações mentais de Brás Cubas. É a
sua mente que o livro percorre, mais do que a sua vida. Neste livro, Machado de
Assis faz um grande desafio ao leitor: “Tu
tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direita e
nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os
ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram,
gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem...”
A escrita, irónica e inteligente,
é um desafio constante ao leitor. O narrador e personagem principal é
apresentado como uma espécie de anti-herói: egocêntrico, algo lento de
raciocínio e leviano. No entanto, o carácter algo irracional de Brás leva o
leitor a dedicar-lhe uma certa simpatia; ele percorre a vida sem obedecer a um
padrão, a um enquadramento ético que o norteie e frequentemente encontra-se
perdido de qualquer sentido. Talvez por isso o tema da morte esteja sempre
presente na obra, mau grado o tom bem humorado da escrita. Há, por detrás deste
enredo aparentemente bem disposto, um tom escatológico que parece vaguear como
uma sombra por detrás da narração.
Em suma: obra realista ou romance histórico; conto
humorístico ou tratado filosófico, este livro é uma obra multifacetada cheia de
motivos de interesse. Um marco histórico na literatura brasileira mas também um
livro simples que se lê com agrado e boa disposição.