Sinopse:
O enredo desenvolve-se numa aldeia do norte do Moçambique,
onde se vive uma pobreza absoluta. Trata-se de uma das regiões mais pobres de
África. Aí vive uma comunidade atacada pelos Leões. A jovem Mariamar e o
caçador Arcanjo Baleiro são os personagens principais.
Um acontecimento real – as sucessivas mortes de pessoas
provocadas por ataques de leões numa remota região do norte de Moçambique – é
pretexto para Mia Couto escrever um surpreendente romance. Não tanto sobre
leões e caçadas, mas sobre homens e mulheres vivendo em condições extremas.
A Confissão da Leoa é bem um romance à altura de Terra Sonâmbula e Jesusalém,
já conhecidos do leitor português.
Comentário:
A relação entre o homem e o mundo natural, as tradições
nativas bem como o papel da mulher na comunidade africana são os temas que Mia
Couto transporta para esta bela estória de ficção, onde se fala de uma mulher
que é um monumento à alma africana: Mariamar.
Logo a primeira página deixa-nos extasiado com a poesia a
que este autor já nos habituou: “Deus já foi mulher” é a frase de abertura do
livro. Depois: “Nesse outro tempo, falávamos a mesma língua dos mares, da terra
e dos céus. (…) Todos sabemos, por exemplo, que o Céu ainda não está acabado.
São as mulheres que, desde há milénios, vão tecendo esse infinito véu. Quando
os seus ventres se arredondam, uma porção de céu fica acrescentada.”
A linguagem poética de Mia Couto é, de facto, avassaladora e
até os nomes dos personagens são reveladores: Arcanjo, por exemplo, é o nome do
matador. Ou melhor, do caçador, porque caçar não é matar; é participar da
natureza.
A mão de Mariamar (Anifa Assula) diz que a aldeia é um
cemitério vivo para as mulheres. Por isso prefere fazer amor sozinha; é a única
forma de vencer os homens. Este é o ponto de partida para uma crítica acérrima
à relação entre e mulheres de que falarei adiante.
Quando Mariamar se encontra de frente com a feroz leoa que
ataca a aldeia, diz a narradora (Mariamar): “a leoa saúda-me, com respeito de
irmã”. É a identificação total, o cruzamento de destinos entre leoa e mulher.
Aquela é a leoa assassina, perante a qual os homens, mesmo caçadores e
guerreiros “todos se prostraram, escravos do medo, vencidos pela sua própria
impotência.
Um aspeto interessante desta magnífica personagem, é que
Mariamar sabe escrever, ao contrário de muitos dos outros habitantes da aldeia.
Ela não aprendeu com os missionários mas sim com os bichos selvagens. Eles
ensinaram com fábulas porque só eles sabem distinguir o bem e o mal. “foram os
animais que começaram a fazer-me humana, afirma Mariamar.
A natureza do poder político perante a pobreza em África é
outro tópico desenvolvido pelo autor. Quando o administrador chega à aldeia com
o caçador de leões, um camponês questiona porque é que eles querem saber como
morremos, se nunca quiseram saber como vivemos? Perante a fome e a miséria,
pouco interessa à autoridade a vida deste povo…
O povo acredita que foi a guerra que chamou os leões. A
guerra (ou a colonização) alterou o equilíbrio que havia entre homens e bichos.
O pior é que terminada a guerra, a situação ainda piorou. Lamenta-se Genito:
Aqui não há polícias, não há governo. E mesmo Deus só às vezes.
Algumas tradições locais são vistas por Mia Couto como
sementes de violência – as mulheres exploradas, as crenças que resultam em
autênticos crimes, um machismo aterrador que justifica até o incesto, etc. Tudo
isto o homem branco não soube resolver, mas o homem negro também não.
E paulatinamente, o livro vai-se transformando numa crítica
brutal aos costumes ancestrais do povo africano. Sem qualquer indício de
racismo, note-se. Pelo contrário: com um imenso respeito pela cultura africana
naquilo que ela representa de harmonia entre o homem e a natureza, sempre que a
estupidez humana não a impede.
Mariamar, neste mundo miserável, injusto e violento é a
vítima sacrificial e a heroína nesta luta terrível, não contra as feras da
selva mas contra a estupidez, a ignorância, o preconceito.
7 comentários:
Olá Manuel,
Excelente comentário.
Foi o primeiro livro que li do autor e gostei
É, realmente, pura prosa poética.
Grande Mia Couto.
Boas leituras.
“foram os animais que começaram a fazer-me humana" - boa frase.
Nunca li Mia Couto e penso que este livro seria um bom início para mim.
Teresa
se gostaste deste vais gostar ainda mais de Jesusalém :)
Cristina, eu costumo dizer que não há livros obrigatórios, mas tu TENS DE LER Mia Couto. Ele tem um estilo muito diferente do teu (o teu é mais psicológico e realista enquanto o dele é mais poético) mas é fascinante!
O melhor dele é, na minha opinião, Jesusalém mas fascinaram-me todos os que li...
Tenho este livrinho para ler... só não sei mesmo quando o vou ler :(
Gostei do "Cada homem é uma raça" - vários contos onde a vivência do povo moçambicano é retratada de forma real. A injustiça, o pesadelo, e a miséria do antes e do depois.
Publicado salvo o erro em 1990.
Obrigado pela sugestão, Céu. Já anotei.
é que adoro mesmo este escritor; é um génio da língua.
Foi o primeiro que li de Mia Couto e gostei imenso. Muito viciante e uma escrita fantástica. Receio que não tenha entendido totalmente o final da história, alguém me poderia dar uma ajuda? Ainda assim, um dos melhores livros que ja li.
Enviar um comentário