sexta-feira, 7 de maio de 2010

Almas Mortas - Nikolai Gogol

Almas Mortas é a última e mais marcante obra de Gogol e constitui uma referência importante na literatura russa na medida em que marcou a transição do Romantismo oitocentista para o realismo. Neste contexto, Gogol acabou por ser um dos maiores precursores dos grandes escritores russos Tolstoi e Dostoiévski.  
Almas Mortas foi uma obra maldita na época, pela crueza com que aborda a questão da servidão ainda em voga na Rússia naquela altura (1835). Num estilo directo e incisivo, Gogol aponta o dedo a uma sociedade anacrónica onde os servos constituíam propriedade dos seus senhores, que dispunham a seu bel-prazer das suas almas e dos seus corpos. O termo “almas” designa, na história da servidão russa os camponeses que eram propriedade dos seus senhores. O herói da narrativa, Chichiev, dispõe-se a comprar servos que haviam falecido mas que ainda tinham existência legal por não terem sido abatidos nas listas de recenseamento. O objectivo destas transacções só é revelado no final.
Numa excelente tradução, esta edição da Estampa apresenta-nos um pormenor que muitas vezes é desprezado: a manutenção dos nomes próprios na língua original, ao contrário de alguns maus exemplos, cada vez mais frequentes, em que se “aportuguesam” nomes de forma muitas vezes grosseira e ridícula.
O estilo de Gogol impressiona pela forma como constrói um verdadeiro diálogo com o leitor, constituindo uma proximidade que nos leva a ler como quem ouve uma estória.
Tal como Tolstoi e Dostoievski, Gogol critica asperamente a subserviência dos russos, que desprezam os inferiores e bajulam os superiores de forma descaradamente interesseira. Todos os vendedores de almas que o autor descreve ilustram as facetas mais negativas da alma humana e do povo russo em particular. É o caso de Manilov, um pequeno proprietário preguiçoso, sem vontade própria e sem ambição; uma viúva sovina totalmente desprovida de inteligência; Nozdriov, bêbado, mentiroso, jogador inveterado que recusa vender as suas almas mas dispõe-se de bom grado a jogá-las – símbolo do desprezo extremo pela alma humana; Sobakevitch diz mal de todos – é o exemplo da maledicência; Pliuskine é o mais avarento que se possa imaginar – tem mais de mil servos e os celeiros cheios mas vive na miséria.
Assim, o alvo maior da crítica de Gogol é a pequena aristocracia rural avarenta, uma espécie de classe média a que se juntam funcionários públicos corruptos e comerciantes desonestos. Este grupo contrasta com a alta aristocracia esbanjadora até ao extremo. Todos, sem excepção, são interesseiros e corruptos, usando muitas vezes uma delicadeza exagerada mas hipócrita para tentar enganar as pessoas com quem negoceiam. Prevalece a inveja e mesmo o ódio dissimulado. O bem público e a moral são completamente esquecidos. Os servos, esses, constituem apenas instrumentos de enriquecimento pessoal e símbolos de ostentação, sendo completamente esquecidos enquanto pessoas. Pelo contrário, são normalmente encarados como bêbados e preguiçosos e castigados duramente. A alienação interesseira das almas constitui o cúmulo, o expoente máximo do desprezo pelo ser humano.
Gogol faz também uma caracterização mordaz das mulheres da alta sociedade. Quase desprovidas de inteligência, são capazes de alimentar os maiores dos boatos. Preocupam-se acima de tudo com as aparências e o seu comportamento social gira sempre em torno do “galanteio” ou então da maledicência. O que é certo é que Gogol acaba por apontar o dedo acusador aos homens que, na sua maioria, se deixam envolver pela maledicência, pondo em causa tudo e todos com os boatos mais torpes. Na Rússia as pessoas gostam de falar de escândalos, diz Gogol. O leitor português não pode deixar de questionar: só na Rússia?
O final do livro é absolutamente brilhante, com a resposta a dois mistérios que se mantinham desde o início: qual a verdadeira personalidade de Chichikov (que Gogol habilmente vai escondendo) e com que intenção comprava ele as almas. A surpresa das respostas é tal que o leitor é levado a rever todas as explicações que o seu espírito foi construindo ao longo da leitura. 

9 comentários:

Tania regina Contreiras disse...

Manuel, dá-me uma aflição ler seus comentários sobre os livros, porque penso no calhamaço que tenho para estudar, sofro por desejar ler do que você fala, anoto, temo uma vida não ser suficiente para ver tudo isso...Mas anoto na minha lista de livros a ser lidos e indico, sugiro, me exalto...sem ter lido, imagine você! rs
Abraços

Andrea de Godoy Neto disse...

Manuel, estou adorando este blog, com seus ótimos comentários sobre os livros.
Estou mais ou menos como a Tânia, ali, fazendo uma lista para as próximas leituras.

Excelente sua contribuição, obrigada!!

abraços

susemad disse...

De Gogol li dois pequenos livros "O Retrato" e "O Nariz"! Simplesmente geniais! Tanto que pretendo voltar a ler algo deste autor. Como gostei muito desta tua opinião, vou procurar esta obra numa livraria ou numa biblioteca. :)
Boas leituras!

Unknown disse...

Tânia
como eu compreendo esse drama! Circulo pelos blogs, vagueio entre as estantes das livrarias e vou acumulando sonhos de leituras e mais leituras mas... por mais que se leia, por mais que se queira ler, a vida é sempre curta demais para tantos sonhos.
No entanto, os blogs servem precisamente para isto: se não podemos ler tudo, pelo menos podemos partilhar com os outros aquilo que conseguimos ler...
Um abraço luso :)

Andrea, obrigado. Abraço!

Tonsdeazul, tenho a certeza que vais gostar. É uma escrita muito atractiva e adorei a forma como Gogol construiu a narrativa de forma a culminar num final genial.
Um abraço

C. Vieira disse...

Oi!... :)

Tenha um bom fim de semana!

Ricardo Antonio Lucas Camargo disse...

Li "Almas mortas" ainda na adolescência, e me recordo bem da impressão forte que me causou, com aquela visão mesquinha de todos os personagens, cada qual visualizando os servos do mesmo modo que Aristóteles definia os escravos na "Política", isto é, como simples ferramentas animadas, algo presente tanto em Pavlucha Chichikov como naqueles com que trata. Na comédia "O inspetor-geral" isto já havia sido exposto, mas no romance, cuja segunda parte faz desvanecer totalmente as conjecturas que fazemos na primeira, enquanto Pavlucha peregrina pela Rússia rural.

NLivros disse...

Eu tenho um livro que contém alguns pequenos contos de Gogol, como, por exemplo, o "Nariz".

Embora me tenha agradado, não posso dizer que a escrita de Gogol me atraia. Em relação aos Russos que aprecio, acho-o diferente de Dostoievsky e Toltoi, um pouco semelhante a Bulgakov.

Mas posso estar enganado, pois, repito, limitei-me a ler pequenos contos.

Unknown disse...

Iceman e Ricardo
eu acho que Gogol está para a grande literatura russa como Goethe para os romanticos ou Flaubert para os realistas, ou seja, um percursor. Tolstoi, Dostoievski ou Pasternak são basteante posteriores, pelo que beneficiaram do caminho aberto por Gogol, no sentido da critica social e política. Obviamente, concordo contigo, Iceman, na medida em que Tolstoi e o Fiodor são escritores muito mais profundos, mais filosóficos, mais psicológicos, mas este livro é um marco histórico; disso não há duvidas!
Um abraço para vocês.
Ah, é verdade, Iceman, estou a acabar de ler Guerra e Paz ;)

Anónimo disse...

Meu caro Manuel, pelo resumo de "Almas Morta" não deve ser muito diferente diferente de CRIME E CASTIGO e A FELICIDADE CONJUGAL, a grande vantágem dos livros dos escritores russos citados aqui é que o assunto se completa em cada livro seja qual for o escritor.
Abraços.

Antonio