domingo, 29 de junho de 2008

Timbuktu - Paul Auster

Esta interessante fábula de Paul Auster, escrito já na era Bush, em 1999, conta-nos a história de um cão de raça indefinida, um daqueles cães vulgares, Mr. Bones e do seu dono, Willy, um sem abrigo, ou melhor, um poeta, que talvez fosse apelidado de esquizofrénico por qualquer intelectual de pacotilha. Na verdade, nem Mr Bones é um cão vulgar, antes um génio canino, nem Willy é esquizofrénico, antes um poeta incompreendido e rejeitado pela sociedade. Willy, ao rejeitar a herança da mãe, é o homem que recusa o materialismo, logo, o mundo dos outros homens.Willy devia ter sido um grande poeta, mas a doença alterou-lhe os planos e fez com que andasse em de terra em terra, pela costa leste dos EUA. Adoptou Mr. Bones, que passou a ser o seu companheiro, protector e confidente. Mais do que isso: Bones é o amigo; o único amigo, a antítese do ser humano: solidário e disponível. A elevação do cão a amigo perfeito é o reflexo da mágoa de Auster perante a natureza egoísta e materialista do ser humano. O ser humano “normal” recusa a liberdade; Willy rejeita o mundo em nome da liberdade.O cão, dotado de extrema inteligência é o único ser que conhece realmente Willy e nos dá a conhecer todo o enredo. Mr. Bones é cão, por isso não está corrompido pela humanidade. É paciente, fiel, inteligente, autónomo, com personalidade, meigo, altruísta e amigo dedicado – tudo o que um ser humano não é. Mais importante do que ser omnisciente, Bones sabe sonhar. Por exemplo, com Timbuktu, a terra para onde todos nós vamos, depois de morrer, e onde, muito provavelmente, cães e homens falam a mesma língua. Timbuktu é “o oásis dos espíritos”, onde o Universo encontra sintonia e único lugar de paz e felicidade.A escrita refinada, deliciosa, de Auster dá ao livro o tom de uma maravilhosa fábula sobre a amizade, a solidariedade e o sonho. O cão e o vagabundo estão unidos contra o desprezo humano. A loucura de Willy não é mais do que a estranheza de alguém que sonha num mundo de homens vegetais voltados apenas para si mesmo. Com um notável sentido de humor e a sua habitual clareza de linguagem, Auster não deixa de emprestar a determinados aspectos da obra uma carga de simbolismo notável e até algum sentido filosófico. Por exemplo, quando Willy decide compor uma sinfonia de cheiros, o autor delicia-nos com uma série de raciocínios sobre as implicações da arte como fuga ao real, mesmo utilizando os sentidos, como o próprio olfacto, como via para essa libertação. Quando Mr. Bones tem acesso a todos os confortos e riquezas, continua a sonhar com Willy. Ou melhor, com a liberdade, única via para a realização completa do ser humano.Em suma, mais uma obra brilhante de Auster, o nova-iorquino que não quer ser norte-americano.

domingo, 15 de junho de 2008

Balada da Praia dos Cães - José Cardoso Pires

Embora seja muito mais do que isso, a Balada da Praia dos Cães é uma história policial; tudo começa com a descoberta de um cadáver numa praia. A vítima era um militar envolvido numa tentativa fracassada de derrubar o regime fascista português. A partir daí, o enredo decorre em constante feed-back, retornando aos últimos dias do oficial, escondido com três cúmplices que são, ao mesmo tempo, suspeitos da morte do oficial e de envolvimento no referido golpe.Perante este cenário, a Policia Judiciária e a PIDE procuram pôr em campo o seu jogo de interesses, num constante bailado de rivalidades e questões políticas entre as duas instituições. O caso acaba por ser entregue à Judiciária. O agente encarregado do processo, personagem principal do romance, Elias Santana é um português típico: está-se marimbando para a política, julga ter solução para tudo, é desleixado, tem um lagarto como melhor amigo e usa unhaca comprida no dedo mindinho. Portugal vivia numa ditadura posta em causa pela independência da Índia e pela ameaça da guerra colonial. O regime tornava-se obsoleto e cada vez mais repressor. Por isso o tom do romance é sempre sombrio e o retrato social apresenta-nos uma realidade dominada pelo medo, pelas intrigas políticas e por uma sociedade de aparências forçadas.O crime em si mais não é do que um pretexto para que os cuidades de “segurança” do regime escondam o crime maior: o de um regime repressor e baseado no medo. Os suspeitos são as vítimas desse crime maior. O castigo imposto a estes suspeitos é o castigo imposto a toda a sociedade; a um país reprimido, manietado, assassinado. No final não há redenção nem compaixão; apenas solidão.O próprio Elias Santana, mais do que um agente da autoridade, é uma vítima aquém não é permitido ter uma opinião nem muito menos uma vida própria; ele é o braço do sistema e por isso depende de tudo quanto o condiciona. O medo e a solidão são, também para ele, os denominadores comuns de todos os aspectos da vida.

terça-feira, 10 de junho de 2008

Mr. Vertigo - Paul Auster

Mr. Vertigo é uma das obras mais peculiares de Auster; trata-se de uma espécie de fábula moderna onde o impossível se realiza e os sonhos ganham forma; aqui o humano mistura-se com o misterioso e a vida saltita entre o mesquinho e o irreal. Nunca em toda a bibliografia de Auster se chegou tão alto no domínio da fantasia e da imaginação. Trata-se da história, contada pelo próprio, de um ancião que faz o feed-back de toda a sua vida, desde os tempos em que usava voar até ao momento em que, já idoso, recorda todos os altos e baixos da sua vida, da vida da América. Walt é o rapaz Prodígio que, conduzido pelo seu Mestre, Yehudi, aprende a voar e mostra que, afinal, isso é até coisa pouca para um ser humano. Após uma experiencia dura de aprendizagem, ele torna-se o ídolo da América. Até à queda; e daí ao renascimento; até nova desgraça; e de novo o ressurgimento; até ao fim…Walt sonha e isso fá-lo voar. Mas só após o sofrimento; um imenso sofrimento que mestre Yehudi lhe apresenta como o preço da felicidade. Walt, um indigente, pobre e renegado, vive e realiza o seu sonho com a ajuda de uma índia velha, um negro e um judeu húngaro (o mestre); os heróis são aqueles que surgem das minorias mais reprimidas, mais espezinhadas sobre quem tombou toda a gloriosa história da América. O desejo de voar é o desejo de redenção por parte dessa América assombrada pela história de violência e injustiça. A chacina dos Índios, a perseguição aos judeus e o ódio aos judeus são as manchas que ensombram a Liberdade. Aliás, é a própria Ku Klux Klan quem dá um dos maiores passos para a desgraça do Prodígio. O Mestre, o homem que só lê Epinosa (judeu de origem portuguesa), representa a fusão entre o espírito materialista americano, o homem que quer ganhar rios de dinheiro, e o espiritual, o homem que sabe que o querer faz-nos voar. Quantas desgraças sofreu o Mestre; mas a ambição é maior e Yehudi mostra-nos como a maior e mais nobre das ambições é, afinal, aquela que não se transforma em dinheiro. Walt passou a vida a subir e a descer. Mas descer é muito mais fácil do que subir ou manter a altitude. Na vida como na magia. Na América como em nós. Em rodapé comum a todo o livro, o hino à amizade que Auster nos entoa. Com firmeza e sentimento; com a sua peculiar frieza narrativa mas sempre com aquele toque de humanidade que faz de Auster um dos expoentes máximos da literatura contemporânea.

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Leviathan - Paul Auster

Peter Aaron, o narrador, lê a notícia de que um homem não identificado explodiu numa estrada do Wisconsin. Só ele sabe tratar-se de Benjamin Sachs, o seu melhor amigo e um promissor romancista. A partir desse momento, Aaron impõe a si mesmo a árdua missão de desvendar o mistério que envolve a vida e morte de Sachs, empreendendo uma jornada que é, simultaneamente, uma autodescoberta. Com o objectivo único de repor a verdade, revive a amizade que o ligara durante quinze anos a Sachs.
Não se trata de uma das mais bem conseguidas obras de Auster, longe da genialidade de “A Triologia de Nova Iorque” ou da profundidade de sentimentos de “Inventar a Solidão”, até porque se trata de uma das suas primeiras obras. Mas é um livro que revela já aqueles que viriam a ser os traços mais marcantes da obra deste genial escritor nova-iorquino. Desde logo, todo o enredo é marcado por esse tema central do Universo de Auster: a procura da identidade: Peter procura conhecer Sachs procurando por si próprio; a irresistível tentação de conhecer o outro, aliada à quase impossibilidade de compreender a alma humana. O “outro”, neste caso, Sachs é o eu-sombra, aquele que funciona como imagem projectada do narrador. Por outro lado, como em toda a obra literárias de Auster, a crítica mordaz à mentalidade, aos costumes, ao pensamento político e às estruturas sociais da América conservadora.
O tema “terrorismo” e a procura das suas causas profundas surge como consequência de uma sociedade ultra-conservadora e ao mesmo tempo injusta, que despreza valores como a solidariedade e a preocupação pelo outro. Muitos anos antes do 11 de Setembro, Auster anuncia, pela acção de Sachs, um bom homem, as consequências dessa degenerescência social. No domínio dos sentimentos, é um livro sobre amizade, amor e a traição: a complexidade dos sentimentos humanos e o limite ténue entre o amor e a traição, com o desejo a funcional como fiel da balança. Uma escrita predominantemente narrativa mas profunda e complexa. Finalmente, realce, como sempre, para a enorme habilidade de Auster como contador de histórias. O imprevisto do quotidiano que transforma a vida numa sucessão de contradições e mistérios. A bizarria das coincidências revela essa mesma complexidade. Como é próprio de Auster, a incerteza e o mistério do enredo levam o leitor a folhear até à exaustão, levando ao expoente máximo o prazer de ler.