quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

O Mandarim - Eça de Queirós





Sinopse
Um ser misterioso, que é obviamente o Diabo, propõe a Teodoro um dilema terrível: tocar uma campainha mágica e matar, à distância e de imediato, o riquíssimo Mandarim Ti Chin-Fu, que vivia nos confins da China. Este simples gesto faria dele o herdeiro e senhor de uma imensa fortuna!
Teodoro cede à tentação e torna-se um nababo. Mas o crime, mesmo executado telepaticamente, não compensa...

Comentário:
As felicidades haviam de vir: e para as apressar eu fazia tudo o que devia como português e como constitucional: – pedia-as todas as noites a Nossa Senhora das Dores, e comprava décimos da lotaria.”
Assim era a vida do nosso herói, Teodoro, que foi amanuense do Reino e se fez milionário por misteriosa herança de um mandarim chines, Ti Chin-Fu.
E esta citação revela de forma bem clara a natureza da sátira, mordaz e divertida, com que Eça nos presenteia: afinal de contas, Teodoro é o português típico. Podia ser qualquer um de nós: quando se vê aflito reza a Nossa Senhora e quanto a prevenir o futuro, compra bilhetes da lotaria.
A sátira queirosiana está por todo o lado; em primeiro lugar, o ambiente pequeno-burguês que se vive na pensão onde Teodoro está hospedado: os prazeres corriqueiros das tardes de domingo passadas na pacatez de uma conversa de circunstância, a ausência de ambição, o deixar passar os dias como filosofia de vida. Depois, quando Teodoro herda a fortuna, vem a sátira aos novos-ricos e respetivo mau gosto: o gastar dinheiro como forma de satisfação pessoal de caprichos recalcados e a necessidade de exibir essa riqueza, mesmo que da forma mais oca e ostensiva possível.
Depois, a sátira aos lambe-botas, como formigas no pote de açúcar, personificados em todos os que rodeiam Teodoro quando a fortuna o acompanha; os mesmo que, obviamente, o desprezam quando ele é pobre.
Se é verdade que este é um dos livros de Eça que mais escapa ao padrão da novela queirosiana, também é verdade que este toque de fantástico lhe confere uma peculiaridade que expressa também a versatilidade do escritor. Não há dúvidas que este livro se afasta consideravelmente de toda a estética realista. O próprio Eça parece ter considerado este livro como uma obra menor, “menos moderna”. No entanto, para o leitor comum, o tom cómico e fantasista até conferem ao livro um aspeto surpreendente, original e cativante.
No entanto, mesmo assim, está aqui o que há de mais genuíno em Eça: a crítica social, a sátira mordaz e o bom humor da sua escrita.
Perante tudo isto, chegamos sempre ao fim de um livro de Eça com pena por já ter terminado; é sempre um prazer imenso ler ou reler Eça de Queirós.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Olhos Verdes - Luísa Costa Gomes





Sinopse:
Olhos Verdes trata da aparência e do acaso. Os seus personagens fazem parte do mundo das aparências: trabalham em profissões ou têm inclinações que implicam uma evasão da realidade: Pedro Levi é modelo de roupa interior; Eva Simeão é viciada em TV; o seu ex-marido, Paulo Mateus, deslumbrou-se com a América, que é "outro mundo"; João Baptista Daniel, perseguido por Eva mas não se interessando por esta, é director de marquetingue; Beatriz, sua mulher, é revisora gráfica ("Passa a melhor parte do seu dia a tornar mais pitoresca a realidade"); as irmãs Fonseca, Maria do Céu e Maria das Dores, oscilam entre o esteticismo e o esoterismo; Ísis, amiga de Eva, dedica-se ao disaine; Lourenço é fotógrafo; Anadir é a rainha dos jingles publicitários... Com todos eles, Luísa Costa Gomes pinta um nervoso retrato dos seres da sociedade contemporânea, que se entrecruzam casualmente e se evadem da realidade. Um longo capítulo dedicado a George Berkeley, o filósofo britânico que tentou demonstrar que a realidade material só existe na percepção que temos dela, tenta enquadrar a narrativa numa moldura teórica. Luísa Costa Gomes criou um romance dinâmico, interessante e cheio de humor, que se reflete em muitas das suas linhas: "Tinha saudades dele a partir do metro e quarenta de distância"... "As pessoas são capazes de suportar tudo, desde que o possam suportar confortavelmente sentadas"... "O Bem vale mais que o Mal porque há de menos. É a lei da oferta e da procura."
(In Coleção Mil Folhas, Público)

Comentário:
Confesso que este livro me deixou confuso: as ideias fundamentais são interessantes:
- Uma sátira bem conseguida ao culto da imagem.
- Uma visão da vida algo sombria, em que os personagens usam o seu livre arbítrio para construírem a sua própria infelicidade.
No entanto, aos olhos do leitor comum, pouco atento aos “ismos” e pouco propenso a interpretações profundas ou doutrinais, há aqui alguma confusão entre o romance e o discurso filosófico; a partir de determinada altura a própria autora parece hesitar entre o desenvolvimento de um enredo interessante e bem delineado e, por outro lado, a exposição de ideias filosóficas que interrompem subitamente a narrativa.
O resultado final foi, para mim, leitor despretensioso, algo dececionante. Falta aqui uma linha narrativa que esteve sempre ao alcance da autora mas que esta parece ter recusado, na hesitação referida acima.
Para mim, esta dualidade entre filosofia e literatura de ficção não resulta numa leitura agradável porque, no meu subjetivo esquema mental, estamos a falar de duas dimensões fatalmente diferentes. É óbvio que os grandes escritores de ficção também deixaram marcas profundas ao nível das ideias, das formas de ver o mundo, das interpretações da alma humana, etc. Mas conseguiram fazer brotar essas ideias da ficção. Estou a lembrar-me de Dostoievski, Celine, Camus, Oscar Wilde, Saramago, Lobo Antunes, etc. Mas não foi isso que esta autora fez; o que Luísa Costa Gomes faz é sobrepor um discurso filosófico a uma narrativa que, embora à partida interessante, sai fatalmente atingida por esta mesma sobreposição.
Uma nota final para a forma original (e algo cómica) como a autora trata os estrangeirismos, escrevendo-os de forma “aportuguesada” em função da respetiva fonética. Alguns exemplos: brífingue, ol de entrada, disaine, luques, setendebai, etc.

domingo, 26 de janeiro de 2014

As Aventuras de João Sem Medo - José Gomes Ferreira




Sinopse:
Livro recomendado pelo Plano Nacional de Leitura 3º Ciclo - Leitura Autónoma Centro Novas Oportunidades - Leitura Autónoma - Grau de dificuldade II História fantástica que recorre ao imaginário mágico, por vezes de inspiração surrealista, este romance é um prodígio de efabulação e engenho narrativo.

Comentário:
Sob a aparência de um (falso) conto infantil esconde-se uma belíssima e divertida obra de arte. Este está longe de ser um livro para crianças. O livro foi escrito na fase emergente da ditadura fascista (1933), quando foi publicado sob a forma de folhetim e, depois, com alterações em pleno período negro e decadente do salazarismo, em 1963. Neste contexto, a sua aparência de ingénuo conto infantil terá enganado certamente a censura do regime.
Mas talvez a intenção inicial de José Gomes Ferreira não tenha sido a mensagem política; antes qualquer leitura ideológica, é necessário afirmar que a ideia fundamental é a da inversão da lógica do conto maravilhoso: em vez de prosseguir o cominho da felicidade, o nosso herói envereda pelo caminho mais difícil, pelo caminho pedregoso, onde até as pedras mordiam os pés do viajante. Pelo contrário, quem seguia o caminho da felicidade, teria de ficar sem cabeça. Talvez seja esta a primeira leitura política da obra; aqueles que apoiaram a ditadura terão sido iludidos por um caminho de felicidade, tendo para isso prescindido da racionalidade.
Ao longo da obra, em vez de palácios encantados e fadas madrinhas, João Sem Medo enfrenta monstros, bruxas e feiticeiras malévolas e toda a sorte de obstáculos; tudo era infelicidade e desventura. No entanto, o medo só por uma vez o assaltou. E nessa altura dá-se o momento mais divertido do livro: João, em desespero, apela para a única pessoa que o podia salvar: José Gomes Ferreira.
Ao longo destas desventuras, são bem visíveis as alusões ao regime fascista: personagens que se vangloriam de serem os salvadores, os redentores e outros que se destacam pelos belos discursos mas sem nunca construírem nada que pudesse contribuir para a felicidade dos habitantes da floresta. No final, como no início, fica a mensagem positiva, a contrastar com a realidade da floresta amaldiçoada: há sempre uma esperança que nunca morre, desde que o medo não morra; a esperança que João viveu logo no início, quando salta o muro que o fez sair da sua aldeia de chorões e a esperança final, quando regressa aos braços de sua mãe…
Num tempo em que a literatura fantástica tem adquirido tantos adeptos seria bom que os leitores portugueses, principalmente os mais jovens, ganhassem coragem para ler este livrinho. E, já agora, que os editores pensassem um pouco mais na literatura portuguesa e na sua promoção. José Gomes Ferreira é, também, um escritor fantástico. Literalmente e não só…

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

O último moicano - J. Fenimore Cooper


Sinopse:
Uma narrativa que combina heroísmo e romance com uma crítica poderosa da destruição da Natureza e da tradição. No cenário do cerco francês e índio do Fort William Henry em 1757, relata a história de duas irmãs, Cora e Alice Munro, filhas do Comandante inglês, que lutam para poder voltar para junto do seu pai. Nesta perigosa jornada, são ajudas por Hawk-eye e os seus companheiros Chingachgook e Uncas, os dois únicos sobreviventes da tribo. Mas as suas vidas são postas em risco por Mangua, o selvagem traidor índio, que captura as irmãs, querendo que Cora se torne sua mulher.

Comentário:
Para o público menos familiarizado com a literatura do século XIX, este livro ficou célebre pelo magnífico filme de Michael Mann, de1992,com uma magnífica interpretação de Daniel Day-Lewis e com uma inesquecível banda sonora.
No entanto, como é normal, o livro conta-nos uma história bem mais rica e profunda. Na verdade, poucos serão os livros de aventuras que nos testemunhem de forma tão credível a verdadeira história dos índios norte-americanos, face à colonização inglesa e francesa no século XVVIII. O autor deste livro nasceu em 1789, o ano da revolução francesa e escreveu esta obra em 1826. O seu pai era, ele próprio, um colonizador, um pioneiro que fundou uma pequena cidade na zona do atual estado de Nova Iorque. Portanto, Fenimore Cooper conhecia como ninguém a realidade desse tremendo choque cultural que ocorreu em solo americano. No entanto, não se pense que estamos perante a simples versão do colonizador. Estamos muito longe ainda dos infelizes enredos de cow-boys do cinema do século XX, em que os Índios eram sempre os maus da fita. Pelo contrário, Fenimore Cooper dá-nos uma versão bastante humanista do referido choque e presenteia-nos com um enredo cheio de emoção mas também de dramas humanos, vividos na violência da colonização.
Aqui não há maus nem bons; ou melhor, há maus e bons mas eles não se distinguem pela cor da pele. Obviamente, é necessário compreender e aceitar como natural que nem sempre os índios tivessem respondido com paz à violência que lhe foi imposta.
O próprio índio malévolo, Magua, afirma na fase inicial do enredo que antes da chegada do colonizador, ele era feliz e pacífico. Depois, a presença dos europeus não se limitou a exercer a violência sobre os nativos; muito pior que isso, promoveu conflitos gravíssimos entre as diversas tribos, fazendo alianças com uns e inimizades com outros. Franceses e ingleses, em guerra, tinham aliados diferentes entre as tribos o que provocava mais atritos e guerras entre os peles vermelhas.
Mas não se pense que este livro se limita à história; ele é, também, um belo e agradável livro de aventuras, cheio de dramas e de intrigas, de mistérios e de amores fatais.

Em suma, um livro muito agradável a não perder por todos aqueles que apreciam a literatura desse século de ouro que foi o século dezanove.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Alves & Cia - Eça de Queirós




Sinopse:
Tudo estava bem na vida de Godofredo Conceição Alves até ao dia em que chega a casa e tem a terrível visão: sua mulher no sofá amarelo, em postura inconveniente, trocando afagos com um outro homem. E logo o seu sócio! Negócios, tranquilidade, o doce lar, tudo vem abaixo, como num pesadelo. Desesperado, Alves vê sua vida ruir e, indignado, anseia por vingança; afinal, perde-se a mulher, mas não se perde a honra. Com este enredo, Eça construiu esta novela, uma obra-prima de ironia e humor. E o desconforto de Alves, a sua ansiedade por lavar a honra, acaba por levar a um desfecho verdadeiramente surpreendente. Afinal, o que os vizinhos vão pensar?

Comentário:
Alves e Companhia é um dos romances menos conhecidos do grande mestre do realismo português. Na verdade, esta obra, publicada a título póstumo, está longe do fôlego dos grandes romances de Eça, como Os Maias. No entanto, estamos perante um dos livros mais agradáveis de Eça. A meu ver é este tipo de narrativa que devia ser incentivada nas escolas porque são livros como este, ou o Conde de Abranhos, ou ainda A Relíquia, que deliciam os leitores que apreciam uma narrativa leve e bem-disposta; por outras palavras, o valor deste livro reside essencialmente na motivação do leitor para depois enfrentar as obras mais profundas de Eça de Queiroz.
Alves e Companhia é um livro sobre a inação humana. Godofredo Alves é enganado pela mulher, com o seu sócio. A traição, segundo a tradição da honra masculina, exigia vingança, ou melhor, um ato de reposição da honra. Mas depressa ele se encontra sozinho nessa vontade de vingança e todos os que o rodeiam preferem fugir ao escândalo; os amigos têm medo de apadrinhar o duelo; o sogro prefere transformar em vítima a esposa traidora; esta prefere escapar-se para umas proveitosas férias na praia. E Godofredo fica só na sua dor, vendo todos os outros tirarem proveito da sua desonra.
Não andarei longe da verdade se disser que estamos perante uma crítica de costumes, mas talvez seja mais exato se disser que se trata de uma sátira de costumes; uns, os “machos latinos” aproveitam as mulheres dos outros para se divertirem; e como todos podem ser ao mesmo tempo traídos e traidores, tudo rola na paz dos Deuses; outros, como Godofredo, representam o romantismo tradicional, cheio de boas intenções e moral católica. O que é peculiar em Eça e que neste romance se torna o seu ponto crucial, é o facto de o escritor não tomar partido e parodiar de igual forma as duas atitudes.
Mais do que uma sátira aos comportamentos, o livro acaba por constituir uma sátira à própria moral, por um lado, e à tão satirizada “honra” do cavalheiro enganado.
Enfim, um livro bem-disposto, de leitura fluida e muito agradável. O bom velho Eça no seu melhor.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Ferrugem Americana - Philipp Meyer




Sinopse:
Passado na Pensilvânia, num cenário de grande beleza mas economicamente destruído, é um livro sobre a perda do sonho americano e do desespero - bem como da amizade, lealdade e amor - que dela advêm.
Esta é a história de dois rapazes ligados à cidade pela família, responsabilidade, inércia e beleza, que sonham com um futuro para além das fábricas e das casas abandonadas. Isaac English é deixado a tomar conta do pai depois do suicídio da mãe e de a irmã ter fugido para a universidade de Yale. Quando finalmente decide partir, acompanhado pelo seu melhor amigo, o temperamental Billy Poe, antiga estrela do futebol do liceu, são apanhados num terrível acto de violência que muda as suas vidas para sempre. Ferrugem Americana, evocativa dos romances de Steinbeck, leva-nos ao coração da América contemporânea num momento de profunda inquietação e incerteza quanto ao futuro. Trata-se de um romance negro mas lúcido e comovente, acerca da desolação que se bate com o nosso desejo de transcendência e acerca da capacidade salvadora do amor e da amizade.

Comentário:
Na capa desta edição da Bertrand deparamos com uma citação do jornal Washington Post segundo a qual este livro segue a tradição de Hemingway e McCarthy. De facto, pode haver aqui algo da solidão de O Velho e o Mar ou algum tom distópico a lembrar A Estrada, no entanto, a meu ver, o que mais se destaca neste livro é o realismo de Steinbeck em Ratos e Homens ou na miserável saga da família Jude em As Vinhas da Ira, numa estória onde é nítida a influência de Jack Kerouac em Pela Estrada Fora.
Seja como for, este livro é a prova acabada de como é possível escrever um grande livro sem fugir à influência dos grandes mestres. O que Philipp Meyer fez aqui foi uma magnífica homenagem aos grandes génios da literatura dos Estados Unidos da América, plasmando aqui as suas grandes virtudes, nomeadamente a humanidade das suas descrições, nas situações mais pungentes do sofrimento humano e, ao mesmo tempo, uma espécie de grito de revolta perante uma sociedade cada vez mais desumanizada.
Está aqui todo o sentido crítico da grande literatura norte-americana, toda a arte de descrever e desmascarar as situações de exploração humana.
Confesso que quando vi este livro pela primeira vez pensei: “mais uma distopia; está na moda”. Mas isto não é uma distopia; não é uma visão escatológica da humanidade ou da sociedade americana; é uma descrição e uma reflexão profunda sobre a América atual. Uma América corroída pela ferrugem da crise económica, social e moral, mas também uma América perdida numa crise de identidade de valores que põe em causa todo o velho mito do sonho americano.
É genial neste livro a identificação das raízes da criminalidade e das injustiças sociais que lhe estão associadas; uma sociedade corrompida pelo neoliberalismo, uma justiça ofuscada pela aparência de um rigor implacável e, finalmente, uma ausência de esperança que manieta todos os velhos sonhos.
Mesmo assim, o final do livro deixa-nos um agradável sabor a esperança; uma certa crença na bondade natural do ser humano que as estruturas económicas e políticas teimam em deixar reservada à solidariedade entre os mais pobres e injustiçados.