quarta-feira, 15 de setembro de 2004

Lolita - Vladimir Nabokov

Levado ao cinema por nomes como Kubrick e Lyne, trata-se, para muitos, de um livro polémico e maldito. O filme de Lyne, por exemplo, foi proibido nos EUA. “Inquietante” é, talvez, o melhor adjectivo para caracterizar este livro. O tema da pedofilia é, desde logo, um campo fértil para construir um romance polémico e dramático. Mas tudo se torna muito mais perturbador quando se expõe a tendência pedófila da forma que Nabokov o faz. Humbert apaixona-se por uma “ninfeta” de 12 anos. À partida qualquer um de nós conotaria Humbert, neste momento e sem ler o livro, como um monstro criminoso. No entanto, Nabokov faz dele um homem como qualquer outro com as suas fraquezas e qualidades, ao ponto de, por vezes, despertar compaixão. Seja como for, todo o enredo segue linearmente a obsessão de Humbert, caindo mesmo numa certa pobreza de conteúdo e numa previsibilidade que retiram parte do interesse que um tema como este pode suscitar. Nabokov faz, no entanto, uma radiografia profunda, polémica e inquietante da mente pedófila de Humbert. O que mais impressiona o leitor desprevenido é a convicção de que a pedofilia pode não ser um simples comportamento aberrante, nem uma doença mas sim uma forma de amor tão natural como qualquer outra. No plano puramente sensorial há, evidentemente, situações muito chocantes com episódios verdadeiramente inquietantes: Humbert chega mesmo a desejar a gravidez de Lolita para que esta lhe proporcione uma futura ninfeta e projecta até uma terceira geração de Lolita para seu deleite. Mas é no plano psicológico que o livro atinge o limite do chocante: a paixão é avassaladora e Humbert, no fundo, é uma vítima de um amor proibido, embora martirizado pela culpa. Poderá a pedofilia ser encarada desta forma nos tempos que correm?

terça-feira, 14 de setembro de 2004

Trilogia de Nova Iorque - Paul Auster

Quinn é Max e William Wilson. Mas é também... Paul Auster. O problema da identidade. Sempre. Uma fixação. Todas as três partes que compõem o livro são histórias de alienação e do seu sucedâneo, de ténues fronteiras, a loucura. Na grande cidade, toda ela alienada, Quinn perde a identidade, refugia-se como uma criança abandonada no "caso Stillman", como se ele passasse a preencher toda a sua vida, até ao ponto em que o real e o onírico se cruzam, onde o absurdo de Kafka se cruza com a loucura de Dostoievsky, passando pela solidão de Faulkener. A função do detective privado é uma metáfora da vida na grande cidade: alienação total, ao ponto da perda quase completa da noção de si mesmo, do auto-conhecimento, sempre perseguido e sempre inatingível. Os próprios laços de parentesco são muito mais frágeis do que os nós criados pela imprevisibilidade do espírito e pelo aleatório da vida. Esses sim são laços fortes, capazes de conduzir à alienação. Na terceira parte é quase chocante a forma como Auster dessacraliza a relação filial e conjugal, subjugadas cruelmente às obcessões construídas pela mente do narrador. Toda esta neutralização do sujeito conduz também ao egoísmo: o sujeito acaba por se transformar numa espécie de autómato, incapaz de sentir os problemas daqueles que o rodeiam. Neste sentido, a obra é profundamente pessimista.

segunda-feira, 13 de setembro de 2004

Edward Foster

Num ambiente "very british" quase vitoriano, este livro é uma crítica social a fazer lembrar o "nosso" Eça de Queiroz, desmascarando todo o pedantismo balofo da sociedade burguesa do início do século XX. O realismo da análise psicológica, no entanto, acrescenta-se à análise e à crítica social, dando à obra um verismo surpreendente, num tom cru e directo. Mas é também um romance passional. Como sempre (e como na vida), o amor siurge associado à mentira, ao engano, à tristeza e mesmo à traição. Sobressai o tradicional e pouco original triângulo amoroso onde o amor é um pormenor apenas, subjugado por uma superficialidade cultivada pelas regras sociais, pelas aparências. Enfim, um livro leve e pouco pretensioso, uma leitura que deixa pouca margem de interpretação ao leitor, de tão explicita e directa que é a linguagem e o enredo. Vale essencialmente pelo testemunho de uma época de viragem social e mental, em contraponto com toda a força do tradicionalismo britânico.

domingo, 12 de setembro de 2004

Baudolino - Umberto Eco

Um retrato vigoroso, eloquente, do imaginário medieval europeu/cristão. H. Eco exprime em forma de romance todo um mundo fantástico, feito de mitos e lendas terras assombrosas, animais e seres semi-humanos mas a tudo dá o sentido do real. Aliás, aí reside o génio maior desta obra: consegue retratar com fidelidade um mundo onde o fantástico e o real se confundem permanentemente. Baudolino é, aos nossos olhos de cidadão do séc. XXI, um grande e descarado mentiroso. Um requintado aldrabão. Mas no universo fantástico da Idade Média as suas estórias, uma vez contadas, são reais. Como real é o Graal feito com uma tigela tosca do pai de Baudolino. Como em tudo o resto, nas relíquias fabricadas existe a verdade que as pessoas nela querem ver. A fantasia é mais do que a substituta do conhecimento científico; é um instrumento precioso, indispensável mesmo, para o conhecimento e a construção do real. Trata-se de uma obra essencialmente descritiva: o Império Sacro-Romano de Frederico Barba Roxa, os conflitos entre as cidades italianas de onde emerge Alexandria (terra natal de Baudolino e de Eco), o 1º grande Cisma, as Cruzadas e o fabuloso reino do Prestes João que fica ao lado do Paraíso Terrestre, para lá das terras dos homens sem cabeça. Mas também o Santo Graal e as relíquias falsas mas reais. Este carácter descritivo retira à obra aquele fervilhar de imprevisibilidade que a impede de rivalizar com “O Nome da Rosa”. Por vezes a acção torna-se monótona e previsível mas fica o enorme mérito de Eco ter compreendido e transmitido com fidelidade todo o imaginário de uma Idade Média não obscura mas encantadora e encantada.

terça-feira, 7 de setembro de 2004

O Espião Perfeito - John Le Carré

Berna, Londres, Viena, Berlim… um retrato poderoso da Guerra Fria. Espiões, agentes secretos, profissionais do disfarce e do embuste, homens sem identidade, perdida entre mil e uma imagens construídas para mentir à procura da verdade. Pym é o agente perfeito – vendido aos dois lados – que procura durante toda a vida encontrar-se consigo mesmo e redimir a traição à amizade por Axel – o amigo/inimigo. Por outro lado há o pai – memórias de um progenitor criminoso mas herói. Daqui resulta uma narrativa quase psicanalítica, marcada pelas recordações do passado e escrita, disfarçadamente, na primeira pessoa do singular. O enredo revela toda a arte de Le Carré, capaz de manter aquele tom enigmático que prende o leitor ao longo de 575 enormes e recheadas páginas. Um livro longo, a espaços cansativo mas nunca maçador. No final, fica a ideia de um homem sem identidade, perdidos nos disfarces e numa eterna procura que, nos últimos tempos, tenta redimir todo o passado que o tortura. Na vida de Pym, fidelidade e traição são conceitos ambíguos que vivem lado a lado e se misturam permanentemente. De entre todos os sentimentos conflituosos, emerge em Pym um único que conquista a primazia: a amizade, o valor supremo. Uma amizade que nasce da traição – a única realidade capaz de gerar felicidade. “A traição é uma profissão repetitiva” (Pág. 564)

segunda-feira, 6 de setembro de 2004

O Cônsul Honorário - Graham Greene

A relação com o pai mais uma vez na linha da frente, a condicionar a primeira fase do romance e a percorrer todo o enredo. "o pai continuava a seguir o filho por toda a vida - era o mestre-escola, depois o padre, o polícia, o guarda da prisão e, por fim, o próprio general" (pág. 130). Charley Fortnum era um bom homem. E, como quase todos os homens bons, era incompreendido e desprezado. Lugar comum? Talvez, mas real... terrivelmente real! Alcoólico, traído pela mulher, cônsul por piedade, raptado por engano... o enredo e o rosário da desgraça. De Edward Plarr todos diziam que, esses sim, era um bom homem. Na verdade, amigo de Fortnum, era o amante da sua mulher. Fortnum amava Clara. Plarr dormia com ela. Plarr era feliz. Fortnum escondia-se por detrás do álcool e da ilusão. Um romance feito de coisas simples, correntes, banais como a traição. E Deus... uma profunda reflexão sobre a religião. Uma obra simples e eficaz que se lê com aquela ânsia juvenil de chegar ao final. E Fortnum, afinal, ganhou o jogo porque sabia amar...

quinta-feira, 5 de agosto de 2004

O Som e a Fúria - Wiliam Faulkner

Um enredo sem linha de rumo preciso navega num tempo sem definição, ondeando entre memórias e prenúncios, desprezando a linearidade, a lógica. Como se ao longo da estrada 66, como se caminhando descalço sobre o alcatrão das estradas do Iowa, como se sem destino nem rumo certo...
Respira-se o desprezo pelo concreto, a recusa do próprio tempo. O simbolismo, intenso e sempre presente, enreda-se permanentemente numa linguagem barroca, de formas por vezes sublimes mas nunca frívolas. 
Jogos de palavras, simples prazer da escrita e da leitura. Um grito colectivo de revolta: uma família apodrecida pela América da falsa prosperidade, rodeada de negros acorrentados à humilhação de ter nascido. Personagens enlouquecidas, devassas, horríveis, infelizes, perdidas num vazio de humanidade. 
E a Disley… a criada negra desgraçada e feliz… normal. 
Benji é louco, Jason alucinado, Quentin lunático, e... um bando de pretos. 
Faulkner constrói assim um quadro quase sem nexo, quase sem sentido, como a vida. Quando chegamos ao fim as estórias ganham, finalmente, forma e sentido. Mas nessa altura fica-nos na mente a frustração de não haver mais páginas… como se todos os Compsons tivessem morrido de súbito. Apetece então voltar ao início… como na vida: uma circunferência que nunca se fecha e assim se transforma em espiral… perpetuamente… sem tempo…
Sem dúvida (pelo menos na minha opinião), um dos melhores livros de toda a história da literatura mundial.
Para ler e reler...

quinta-feira, 29 de julho de 2004

Inventar a Solidão - Paul Auster

O próprio Auster é confrontado com a morte do pai. Este acontecimento surge de forma inesperada, abrupta e leva o autor a tentar compreender os seus sentimentos (ou a ausência deles), a confrontar a figura do pai com as suas memórias.
Ao longo do livro divaga sobre a paternidade, confrontando a sua condição de filho com a de pai. Toda a obra parece ser um longo e profundo exercício de auto-análise, quase psicanalítico. Auster, como fizeram outros grandes mestres, divaga, sobretudo, sobre a solidão. Porque a vida é, essencialmente, um percurso solitário. Por mais que se viva com os outros, a vida em sociedade parece nunca deixar de ser um imenso somatório de solidões. Porque todo o homem é um mundo único, ímpar e só.
O homem é uma realidade complexa e indefinível, que nem o próprio sujeito conhece. A relação com o resto do mundo é uma teia tão complicada que só contribui para aumentar a angústia da solidão.
É um livro corajoso.
Auster encara de frente a personalidade esquiva do pai. Esmiúça e tenta desesperadamente compreender todos os motivos da sua menos boa relação com ele, fugindo ao sentimentalismo fácil mas também sem cair na frieza da objectividade crua. Procura, acima de tudo racionalizar os sentimentos, compreender a alma humana e, principalmente a sua própria alma. “Todo o livro é uma imagem da solidão” (pág. 153).
Mais do que a morte, o verdadeiro monstro é a solidão.
A morte é apenas um dos momentos em que o monstro se revela.
Excelente tradução.

O Amante de Lady Chatterley - D. H. Lawrence

Connie (Lady Chatterley) é esposa de um lord inglês, tradicionalista e austero que, logo após o casamento, é ferido na primeira guerra mundial, ficando paralisado da cintura para baixo. No entanto, mantém o casamento, com todas as suas aparências e tenta ludibriar as suas incapacidades com uma vida social intensa, onde as aparências são cuidadosamente mantidas.
Connie, no entanto, não consegue suportar aquela vida fútil e oca, apaixonando-se por um criado do marido. Aparentemente, trata-se de um romance/novela; um grande conto erótico e cor-de-rosa. No entanto, é muito mais do que isso. A sexualidade é vista como parte integrante e essencial da relação amorosa, do sentimento e da própria vida. Desmistifica-se assim aquela concepção burguesa de que o amor carnal é uma espécie de aberração do próprio amor. É encarado, pelo contrário, como algo profundamente humano.
O sexo faz parte do amor, do lado afectivo do ser humano e não do instinto ou da animalidade, como era hipocritamente entendido pelos moralistas da sociedade tradicional inglesa. Assim, é uma obra que enfrenta não só o rígido quadro de valores inglês mas todo um conceito de amor formal e puritano.
A linguagem, por vezes obscena, surge perfeitamente enquadrada no enredo e no jogo de sentimentos. Está longe de ser, portanto, um romance erótico. É um romance cheio de sentimento, cheio de ideias, embora o enredo esteja demasiado preso à intriga amorosa.

quinta-feira, 22 de julho de 2004

A Obra ao Negro - Marguerite Yourcenar


Inquietante, perturbadora, a espera da morte.
Zenão será perseguido; por ela e pela ignorância. Das duas, qual a mais tétrica, a mais terrível e impiedosa?
Zenão será condenado por ter sido sempre fiel a si próprio, à sua humanidade, ao bem universal, à verdade. Ao bem por si só!
Mas é vítima do ódio, do egoísmo, da cegueira. Do obscurantismo.
A Obra ao Negro é um testemunho histórico impressionante, de uma época (início do séc. XVI) em que se cruzam a cegueira medieval e os conflitos dos tempos modernos, com a afirmação de novos regimes e Estado, perdidos em constantes guerras e conflitos.
A visão radiosa do Renascimento é abafada pelos conflitos absurdos em torno da questão religioso (fruto da reforma protestante e contra-reforma). Zenão, vítima da sua qualidade de bastardo e de uma família obcecada pelo poder, abandona-se a uma mescla de hedonismo e solidariedade cristã, cultivando a reflexão interior, temperada com o espírito pragmático do renascimento.
Tudo isto só poderia ter um fim: as teias da Inquisição.
Impressionante o estilo. As palavras soam como música, numa linguagem fiel à época, encantadora! As descrições de Yourcenar brilham pelo realismo. O enredo não deixa escapar uma tremenda profundidade dos sentimentos. As reflexões filosóficas são constantes e profundas.
Uma obra magnífica!

quinta-feira, 8 de julho de 2004

A Metamorfose - Franz Kafka

Gregor acorda transformado num enorme e repugnante insecto e assim vive os seus últimos dias.
Há neste livro qualquer coisa de quase mágico: o enredo baseia-se num acontecimento completamente absurdo, impossível. No entanto, lê-se como se se tratasse de uma realidade, de algo perfeitamente natural e lógico. O leitor é levado a embrenhar-se no enredo, a seguir os sentimentos de Gregor, com a maior das naturalidades.
Gregor era um caixeiro viajante que sustentava a família (absolutamente parasita) e suportava um patrão insensível e mesquinho. Inicialmente, a metamorfose parece significar a libertação em relação às obrigações e alienações de Gregor: o trabalho e a família. Mas, aos poucos, ela transforma-se numa terrível prisão que condena Gregor ao mais terrível dos castigos: uma absoluta e cruel solidão.
A partir daí Gregor é vítima do desprezo por parte daqueles em função dos quais vivera: a família.
Passa a ser considerado um peso, um encargo e nem mesmo a sua morte despertará a compaixão daqueles que tanto amara.

O Castelo - Franz Kafka

K. é um homem só, à procura do misterioso Senhor Kleim.
Kleim é um homem poderoso que representa o castelo. O castelo é o poder. Kleim é a personificação, pouco nítida, propositadamente difusa, desse poder. Mas trata-se de um poder que cultiva a ignorância, primeiro e decisivo passo para a submissão dos servos.
Convém manter a cegueira. A burocracia, enorme, monstruosa, aterradora, é a carapaça, a armadura, que protege os poderosos e mantém os súbditos afastados, submissos. K. é um súbdito insatisfeito, insubmisso, que procura por todos os meios penetrar nessa carapaça. Por isso é incompreendido e mesmo desprezado pela aldeia. Ele é uma ameaça para aquele status quo em que a vida corre sem acidentes, sob o manto protector do poder. Ele é uma ameaça à suave cegueira da comunidade. Kafka é um escritor que despreza o enredo em favor da mensagem.
As descrições e os diálogos convergem sempre, nesta obra, para uma ideia central: a da crítica à natureza do poder político que cultiva a ignorância e o servilismo cego. Mas por detrás deste servilismo há uma revolta abafada que se revela à medida que a obra se aproxima do final, resultado de uma frustração colectiva perante o desprezo que o Castelo dedica ao comum dos mortais. E, intimamente, todos procuram, por meios diversos, chegar até aos senhores que tanto admiram como odeiam. Lutam e degladiam-se por isso mas de forma velada, envergonhada, silenciosa. Só K., talvez por ser estrangeiro, assume e enfrenta essa ambição. Por isso é amado e odiado. Todos os outros são reles e pequenos.
Um pormenor interessante: apenas depois de se libertarem de K., os seus ajudantes são tratados pelo nome próprio. Até aí são simples servos de K, como todos são servos dos senhores. Tudo isto é expresso num estilo algo monótono, como a vida dos servos, assente num enredo "pastoso", com um ritmo narrativo muito lento, à imagem da vida na aldeia. Assim, o aspecto lúdico da leitura é posto em risco. Por vezes, ler Kafka deixa mesmo de ser um prazer porque o objectivo não é contar uma estória. Na aldeia dos servos não há estórias. Apenas a história do senhorialismo e da solidão.

A Grande Muralha da China - Franz Kafka

A grande muralha da China foi construída por parcelas, em pequenos "pedaços", para que cada trabalhador nunca se apercebesse que não chegaria a sua vida inteira para ver a obra acabada.
Assim se explora a motivação e o entusiasmo do trabalhador anónimo.
Este é o ponto de partida para um discurso em que o poder político é visto como uma superestrutura anónimo, sem rosto, sem corpo nem identidade, que paira de forma mística, auto-sacralizada, por sobre todos os súbditos, também eles anónimos e ignorantes.
O mundo em que vivem os obreiros da muralha é um imenso absurdo, no qual a alma humana se encontra abandonada, entregue à sua solidão, vítima de um destino traçado pelos vultos ignotos da superestrutura... sem sentido, sem futuro nem passado. O presente é indiscutível, inquestionável... é o que é por vontade de alguém que tudo sabe, tudo decide... A impotência e a ignorância são os traços mais marcantes do ser humano.
Daí a solidão e o pessimismo.

sexta-feira, 25 de junho de 2004

Crime e Castigo - Fiodor Dostoievski

Personagens interessantíssimas, estudadas psicologicamente de forma profunda e, ao mesmo tempo, descritos de maneira simples e atractiva.
A descrição da miséria da família Marmaledov é genial: o alcoolismo como consequência de uma estrutura social injusta e angustiante. A amizade de Razumikin por Ródia é comovedora. Trata-se de um personagem interessantíssimo: libertino mas sensível; hedonista mas sofredor; algo ingénuo mas profundamente dedicado.
Ródia envolve toda uma tentativa de explicação do comportamento e do espírito do criminoso: levado pela miséria, provocado pela injustiça social, é duramente castigado pela sua própia alma, o juiz maior. Persegue-o a tentativa desesperada de encontrar uma explicação racional e moral para o crime.
É também uma obra sobre uma outra espécie de crime: a maldade humana, representada de forma soberba por Svidrigailov e Lujin. Dela transparece o lamento por uma sociedade injusta e, ao mesmo tempo, a convicção reconfortante do “castigo na terra”.
É acima de tudo uma obra sobre a loucura; sobre o limite ténue entre a realidade e a loucura. Dostoiévski parece acreditar na bondade natural da alma humana. Os seus personagens são loucos, bêbados, chantagistas, criminosos de toda a sorte, usurários, miseráveis mas em todos eles encontramos um fundo de humanidade e uma espécie de consciência que os impele para a expiação (mais ou menos voluntária) dos seus pecados. Procura sempre compreender e explicar a alma humana nas suas infindas facetas.
Romance psicológico? Talvez! Para o autor, todos os comportamentos, mesmo os mais “desviantes” têm explicações e são compreensíveis pela razão. Mas o autor de tais comportamentos é o único que nunca os compreende. Daí a loucura, no seu conceito social; daí a tortura interior, o verdadeiro castigo. A verdadeira justiça, as penas mais duras, são as que o sujeito impõe a si próprio. A cadeia, os trabalhos forçados, a justiça dos homens é, por isso, vista como a verdadeira liberdade – porque aí os homens encontram-se, finalmente, entregues a si próprios: livres.
No final, como que caído do céu, o amor revela-se a solução para todos os males da alma de Ródia – final talvez demasiado lírico para uma aventura tão real como esta.

quarta-feira, 5 de maio de 2004

Paula - Isabel Allende

Uma das mais impressionantes biografias que até hoje se escreveram. Todo o drama de uma morte anunciada vivido na primeira pessoa do singular: como se o sofrimento universal se encerrasse num único mas enorme coração. O testemunho enorme de uma coragem e de uma força indomáveis, capazes de vergar a morte perante uma vida exultante. Um livro escrito a sangue.