segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Comissão das Lágrimas - António Lobo Antunes

Uma mulher de quarenta e tal anos. A fronteira entre a juventude e a memória que escapa, porém uma outra memória, a que resiste, persiste, como uma moinha, uma dor latente que aperta a alma e domina a mente; recordações negras, avassaladoras, povoam a mente de Cristina, internada numa clínica psiquiátrica. Memórias de África, Angola, Luanda, anos setenta. Nascida no tempo da Guerra Colonial, crescida entre o sangue e o horror, Cristina recorda a mãe, Alice ou Simone consoante se trate da mãe propriamente dita ou da mulher de alterne em que sobrevivera, do pai ou não pai, não se sabe bem, ele preto, o pai verdadeiro talvez branco, talvez o senhor Figueiredo da boite, Cristina não sabe, sabe sim que o pai, preto, foi homem da Comissão das Lágrimas, homem que faz justiça com muitas mortes e sofreu de outras justiças não menos ensanguentadas pela guerra ou guerrilha ou seja lá o que for, porque em Angola não era preciso guerra para matar, bastava viver ou sobreviver.
É assim o escrever e o sentir de António Lobo Antunes, frases que crescem como o pensamento que se encadeia noutro pensamento, porque o pensamento não tem pontos parágrafo nem sofre de acordos ortográficos. Assim uma escrita corrediça como a vida, assim às vezes partida ao meio como as almas.
O escrever de António é como o escrever do pensamento na memória. O que pensamos é por vezes apenas o que persistiu, deitamos fora os sorrisos, ficam as dores, as moinhas que persistem como o joelho de Simone ou Alice, o joelho que não para de doer, que incha como as dores da alma.
É assim o escrever de António, um escrever que nos faz sentir as dores de todas as Cristinas e chorar a alma de todas as Simones. É assim um livro inteiro sem um sorriso, a não ser talvez o sorriso interesseiro do avô de Simone, “anda cá rapariga”, o avô de Alice (então Alice, está claro) que não vê, não enxerga e então vê Alice tacteando, as pontas dos dedos no corpo de Alice, como os aguilhões de todas as guerras cravados nas almas.
Um livro sofrido, escrito a sangue que se lê sem lágrimas mas também sem conforto a não ser o do prazer imenso de passear na tristeza e na arte infinita de António Lobo Antunes.
A meu ver um dos melhores livros de ALA, este, o último até ao próximo. Um livro onde, mais uma vez, não se pode procurar uma estoria porque os livros de ALA são viagens, não são contos nem narrativas. Viagens interiores, passeios pelas dores da vida e, muitas vezes, murros brutais na alma de quem lê. Murros que se encaixam talvez com prazer masoquista mas sem dúvida com prazer de saborear esta poesia da dor como ninguém mais é capaz de a escrever.


Imagem de Luanda Antiga tirada daqui

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Lendo "Comissão das Lágrimas" de António Lobo Antunes

Se tivéssemos de escolher um livro “típico” de António Lobo Antunes, este seria um sério candidato; pelo menos é o que me parece, a meio da leitura.
A violência, na guerra colonial e nos acontecimentos que se seguiram à independência de Angola é o pano de fundo para a vida de três personagens: o padre que depois casa com Alice, ou Simone (“nome de guerra” como mulher de alterne) e a filha de ambos, Cristina, narradora no presente, internada, trinta e tal anos depois, num hospital psiquiátrico.
Como é típico em ALA, a técnica de múltiplos narradores dá à escrita uma variação constante, como que uma musicalidade que nos confunde mas também embala, numa linguagem poética como sempre, sentida, forte, por vezes arrepiante.
As sensações e as emoções sobrepõem-se às estórias; as memórias, a revolta e os sonhos perdidos conferem ao enredo uma emoção profunda que transformam ALA no escritor português actual que melhor conhece a alma humana. Por tudo isto, mais uma vez se adverte para que não se procure em ALA um enredo em forma de estória; trata-se acima de tudo de mais uma viagem encantada às profundezas do ser humano.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Uma Carta inédita de Abraão Forjaz

Tu Ana Karenina, eu Alexei Vronski, eu um frágil caule, tu a terra que me faz crescer, eu uma página de um romance de amor, tu a mãe de todos os heróis da mitologia grega, tu Afrodite, aquela que resume a Beleza num pedaço de céu, tu Atena, a sabedoria, a musa, aquela que desenha as órbitas errantes dos cometas, tu Hera, a rainha das Deusas ou a flor amarela do deserto.
Nós sonhados apenas num qualquer mar ou na ilha que há no meu peito, esse lugar único onde te encontro, onde cintila a luz pequena mas imortal da tua alma.
Nós e um livro, quem sabe um romance de amor ou talvez só uma página lida a dois, frente e verso de um amor, uma folha caída de um Outono qualquer, um episódio talvez do Amor em Tempos de Cólera, tu Fermina Daza e eu Florentino Ariza, tocando violino ao sabor do vento para te encantar os sonhos, eu apenas o pagem tu a Majestade que me inebria.
E talvez um tempo haja em que todos os sonhos floresçam, em que as flores do deserto triunfem, em que as órbitas dos cometas errantes se desenhem num coração de adolescente gravado numa árvore, eu e tu num círculo perfeito, os dois na cauda do cometa, desenhando no céu o nome de um amor assim escrito na eternidade.
Carta de Abraão Forjaz, manuscrita e inédita

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Um livro. Nada. Ou tudo.

Uma página de um livro, uma janela, uma ponte para o sonho, um ponto vermelho no negro de uma qualquer solidão, uma força que emerge na fronteira entre a vida e o abandono, a fuga para um mundo distante onde não ardem as fogueiras do desespero, onde as marcas do mundo não nos oprimem.
Uma página de um livro, uma ponte feita contigo, tu que lês do outro lado do mundo, para lá desta estrada marcada nas nuvens de um delírio… um delírio talvez de amor… um livro, o mesmo livro, o mesmo sonho feito de dois sonhos unidos na distância. Um sonho, dois sonhos, muitos sonhos e delírios unidos pelas mesmas palavras, os mesmos sons balbuciados baixinho no calor da insónia, no escuro da solidão, no desespero calado de estar só.
Um livro, traço de união, conjunção de mundos, encruzilhada de emoções, espelho de almas, lido como quem foge, porque quem lê foge sempre de algo, nem que seja de um nada, de um vazio, de um buraco negro na via láctea do destino, de um não ser que às vezes nos dilacera, nos desespera, um não querer ser, um nada… uma noite escura e fria como a solidão.
Um mundo, um livro, mil corações solitários aquecidos pelas mesmas letras, as mesmas palavras, o mesmo sofrer e o mesmo rir, de alguém que escrevendo foi a fogueira que aqueceu as almas assim unidas, assim feitas uma núnica constelação.
Obrigado, livro!
(Texto inédito de Abraão Forjaz)

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Frei Luís de Sousa - Almeida Garrett

Esta peça é considerada uma das obras mais marcantes no teatro romântico português. No entanto (e sem que eu seja um especialista na matéria) parece-me nítida a influência da tragédia grega no enredo construído por Garrett.
Depois da malfadada batalha de Alcácer Quibir, onde desapareceu o ingénuo e mítico rei D. Sebastião, terá desaparecido também D. João de Portugal. Vinte e um anos depois, a sua esposa, D. Madalena de Vilhena, encontra-se casada com Manuel de Sousa Coutinho, já com uma filha, Maria. Tinha sido aceite como dado adquirido a morte de D. João. No entanto, Madalena vivia atormentada pelo medo; o eventual aparecimento do desaparecido marido faria com que ela e D. Manuel caíssem de imediato em pecado e em desgraça perante a sociedade. Maria, por seu turno, seria considerada filha do pecado. O drama agudiza-se quando, ainda no primeiro acto, Madalena confia a Telmo, o velho e fiel escudeiro, que o acender da paixão por D. Manuel dera-se ainda em vida de D. João.
E a tragédia abate-se quando, de facto, D. João aparece, disfarçado de romeiro.
Como é típico da tragédia grega, deparamos com uma situação em que os principais personagens revelam uma espécie de sentimento de culpa, uma espécie de “sina”, de destino manchado pelo pecado, pelo erro: Madalena porque amou Manuel sem que tivesse a certeza da morte do marido e Manuel porque aceitou o casamento mas também porque se revoltou contra o rei (Filipe II de Espanha que entretanto se tornara rei de Portugal), queimando o seu próprio palácio para não dar guarida aos governadores.
Depois de nos ter apresentado estes personagens dominados pelo medo, Garrett faz precipitar o drama, apresentando duas situações trágicas que levam o leitor (ou espectador) à comunhão com o sofrimento das personagens: o incêndio da casa e, principalmente, o aparecimento envolto em mistério e ambiente dramático, de D. João, sob a forma literariamente brilhante do Romeiro. Mas não ficamos por aqui: a acção precipita-se e a tragédia atinge o seu clímax no terceiro acto, com a doença fatal de Maria, a sua morte absolutamente dramática e o desenlace da relação entre Madalena e Manuel.
O brilhantismo desta obra, na minha opinião, resulta da brilhante conjunção de três elementos: a tragédia grega desenvolvia dom rigor e eficácia, a exploração do fatalismo sebastianista e a introdução ao teatro e literatura romântica portuguesa.
O sebastianismo está bem marcado na forma como a saudade se mistura com o pessimismo, o fatalismo, típico da mentalidade moderna portuguesa: D. Sebastião e D. João não são vistos apenas com saudade mas também como uma espécie de fantasmas. O aparecimento de D. João não é um acto de redenção ou de esperança; é, pelo contrário, o despoletar da tragédia.
Finalmente, o anúncio do romantismo português: não apenas no transporte da História de Portugal para a literatura e teatro mas também a exploração profunda da psicologia dos personagens: valorizam-se os sentimentos “humanos” das personagens, que tentam agir racionalmente (veja-se a luta patriótica de Manuel Coutinho) mas que acabam, invariavelmente, subjugados pelo destino fatal da desgraça.
Trata-se de uma obra notável, ainda, pela forma como é capaz de agradar a qualquer tipo de leitor ou espectador porque desperta sentimentos e interesses bem diversificados; é possível ler este livro deixando-nos levar pelo simples prazer de ler, como é possível ler como quem estuda a História e a Psicologia deste país.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Sôbolos Rios que Vão - António Lobo Antunes




“Sobolos rios que vão
Por Babilônia m’achei,
Onde sentado chorei
As lembranças de Sião,
E quanto nela passei.
Ali o rio corrente
De meus olhos foi manado;
E tudo bem comparado,,
Babilônia ao mal presente
Sião ao tempo passado.” (…)
Luís de Camões



Na cama do hospital, solitário entre dores e lembranças, António Antunes, ou Antoninho alimenta com o corpo um “ouriço”. Cancro, dores, memórias, um mundo que se desmorona mas, ao mesmo tempo, um mundo inteiro de recordações que vagueiam na sua mente como a mosca que poisa no lavatório, como um pingo no sapato ou o avô que colocava a mão em concha na orelha para ouvir.
Grandes dores, ainda bem que as tem, pensa Antoninho, ou o Senhor Antunes, a quem os médicos e enfermeiros adiam a morte, talvez para lhe alimentar aqueles sonhos do passado, lembranças que são a sua vida, a solidão em forma de vida, o mundo em forma de cama de hospital, e felicidade em forma de memória, a morte em forma de ouriço, que corrói, o sangue na fralda, “é só mais um remédiozinho e fica fino”, conversa de médico, que nunca mais são cinco horas e o hospital cheio de dores para enganar…
Por entre as dores e a morte que se adia, o avô surdo, a avó chamando Antoninho, o pai com a criada na despensa, “olha o teu filho a ver-nos”, o pai jogando ténis com as inglesas do hotel.
Mundos inteiros dentro de um mundo só chamado memória, ou solidão, mundo inteiros resumidos num ouriço que lhe corrói as tripas como o pai corroendo a mãe, “não digas nada à tua mãe”.
Memória sofrimento e morte, é tudo a mesma coisa excepto o sorriso dos pequenos prazeres, resumidos, sintetizados no voar de uma mosca, num momentâneo “agora não dói” mas se não dói ouriço dói a alma, essa, sempre dizendo Estou cá, a vida embrulhada num mundo outro chamado passado, um mundo que afinal vai dar ao mesmo, é igual a este, se calhar o tempo é que é o embrulho, se calhar é tudo o mesmo, é o ouriço que comanda, é a dor que dita as regras, é o mundo inteiro naquela cama de hospital ou no pingo que caiu no sapato. Tudo talvez não seja mais que um imenso nada, a gente é que constrói mundos na cabeça, a gente faz os ouriços da memória e depois não sabe sair deles.
E o tempo é um engano. Não lhe poderemos nunca fugir nem nunca encontraremos o tempo de ser feliz. Porque o tempo é tudo, é o alguidar da vida onde tudo se mistura.
A tristeza é a vida; a escrita de ALA é esta dor de existir, este arrastar as letras até ao mais profundo do ser, este mergulhar de cabeça na escuridão de que são feitos os mundos.
Impossível escapar, impossível dizer isto não é nada comigo, é sim, é sempre comigo e com todos porque o mundo está nas memórias e resumir-se-á um dia ao nosso próprio ouriço. Inexoravelmente!
A beleza sintetizada numa lágrima que não sai.
Avaliação Pessoal: 9.5/10

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Lendo António Lobo Antunes (Sôbolos Rios que Vão)

Os livros de António Lobo Antunes deixam-me sempre surpreendido por um fenómeno estranho: o assunto é de uma tristeza avassaladora, os ambientes são cinzentos, os personagens infelizes e toda a estória é angustiante. Mas não consigo parar de ler; ainda ontem discutíamos aqui no blogue quais os ingredientes de um bom livro e concordamos que é preciso emoção; é preciso que o livro nos emocione. E António Lobo Antunes ensina-nos que não são só as emoções agradáveis que dão beleza e encanto à arte das letras; é também esta tristeza que ALA espalha pelas páginas; os tons cinzentos da memória de Antoninho, um homem com cancro que, no hospital, vive os seus últimos dias.
É a beleza da tristeza, em todo o seu esplendor. E a beleza das palavras por si só; a arte de passear pelas palavras.
A meio da leitura, fico com a sensação de que este não é o melhor livro de ALA; está longe da raiva exultante de Os Cus de Judas ou da profundidade psicológica de Ontem não te vi em Babilónia. Mas não deixa de ser um excelente livro.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

O que é um bom livro?

Às vezes dou comigo a pensar: afinal, o que é que me permite classificar um livro como excelente e outro como um fracasso, mesmo que escrito por um génio?
Há um escritor que me tem maravilhado. Já falei dele ontem aqui no blogue: Marek Halter. E foi a propósito dele que cheguei a esta conclusão: um livro que me encanta é aquele que me satisfaz em três dimensões:
- A forma como me diverte.
- A emoção que me desperta.
- O que aprendo com ele (dimensão didáctica).
Tenho Tolstoi, Cervantes e Dostoievski como escritores de eleição. E porquê? Porque me divertem, me emocionam e me ensinam.
Às vezes vejo os críticos encherem de "estrelinhas" obras verdadeiramente chatas; que não divertem ninguém. É por isso que os críticos me arreliam. No entanto, sinto que estou a ser dogmático. As três dimensões que enunciei não são critérios universais. São os meus critérios.
E fico um pouco perplexo porque muitas vezes não entendo os critérios de alguns leitores. Por isso deixo aqui a pergunta, que faço ao vento ou a quem se dignar responder-me: haverá critérios universais para avaliar um livro?

terça-feira, 18 de outubro de 2011

O Cabalista de Praga - Marek Halter

Está de parabéns a Bizâncio pela divulgação deste grande escritor francês, ainda não totalmente reconhecido pelos leitores portugueses.
Praga, “a Jerusalém dos novos tempos”, finais do século XVI. Na capital da cultura hebraica daquele tempo, David Gans é um discípulo entusiasmado e fiel do grão-rabi Loew, o MaHaRaL. Com ele aprenderá os segredos da Cabala, afinal de contas, a grande porta do saber segundo a tradição hebraica. A Cabala é o reino da Palavra; é o mistério que se esconde por detrás dos signos; é a arte de descobrir o significado da Palavra.
A narração é feita pelo próprio David Gans, em pleno século XX. A sua “fala” enquanto morto dá à obra um tom que reforça o enquadramento místico da narrativa.
Mas bem mais palpável que esse encanto místico que rodeia o pensamento hebraico é a terrível realidade: nem Praga escapa às perseguições aos judeus, após um período de paz devido à protecção pelo Imperador do Sacro Império. Os judeus eram considerados culpados da peste que matava aos milhares. Ironicamente eram os judeus que mais próximos estavam de compreender a doença e tratá-la, ou pelo menos preveni-la. Mas essa capacidade de escapar à maleita, em vez de ser encarada como uma fonte de informação era vista como fruto de artes de magia e, por isso, mais um motivo para o ódio.
Mas nem tudo é negro neste livro.
David Gans leva-nos ao encontro das maravilhas do Renascimento, em que os progressos científicos  surgem como oásis no meio da ignorância e da superstição. É nesses oásis que Gans nos apresenta Tycho Brahe, o brilhante astrónomo, o grande matemático Kepler e o revolucionário mas silenciado Galileu.
Rodolfo, o Imperador do Sacro Império é uma espécie de mecenas que protege o oásis. No entanto, a sua ambição de poder cega-o e só protege os judeus enquanto tem a ganhar com isso. Depressa se transforma em mais um impávido espectador da brutalidade com que os judeus eram tratados pelos cristãos. E neste aspecto, ao contrário do que por vezes se pensa, os protestantes luteranos não eram menos cruéis e supersticiosos do que os católicos. Também eles encaravam os judeus como origem de todos os males.
Há algum tempo escrevi neste blogue, a propósito de O Último Cabalista de Lisboa, de Richard Zimler, que nós, portugueses temos razões para nos envergonharmos do nosso passado pelos crimes que cometemos contra o povo judeu. Mas parece-me que não fomos os únicos. Quase toda a Europa, esta Europa que se arvora de ser a pátria da civilização, viveu encandeada por este ódio, por esta onda criminosa que vitimou milhões de inocentes. O anti-semitismo é a vergonha desta “civilização”.
Na parte final deste magnífico livro deparamos com uma espécie de fábula cheia de significado: os judeus de Praga conseguem finalmente encontrar um meio de responder à letra” aos cristãos que os massacravam. No entanto, foi este “Golem” que acabou por provocar a discórdia entre eles, trazendo mais uma semente de violência. Triste lição para a alma humana…
No final, um verdadeiro e belo hino ao poder da Palavra! No fundo é esse o espírito da Cabala – a força da palavra, capaz de fazer nascer um novo Homem! Mesmo na maior das desgraças, há sempre uma semente de fé e esperança!
Avaliação Pessoal: 9/10
(Comentário publicado no Blogue Destante, no âmbito da parceria com a Editorial Bizâncio).

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

A Sul. O Sombreiro - Pepetela

Pepetela regressa em grande. Este é talvez o trabalho mais elaborado e mais bem conseguido do magnífico escritor angolano que é já um motivo de orgulho da literatura que tem por pátria a Língua Portuguesa.
Livro de aventuras, ou romance histórico, ou as duas ou nenhuma das duas coisas, esta é uma obra de grande fôlego, num contexto inovador, penso que nunca antes “navegado”: Angola, no início do século XVII, quando era apenas um lugar na costa, uma colónia desprezada, mero entreposto de escravos caçados e comprados, destinado ao desumano trabalho da cultura do açúcar no Brasil, essa sim, a colónia de todos os sonhos. No entanto, era o sangue, o suor e a desgraça dos nativos de Angola que alimentavam a terra dos sonhos do outro lado do Atlântico. E Benguela, o sombreiro do sul, um sonho ainda mais vago.
Nesta obra, Pepetela leva-nos ao encontro do mundo misterioso das tribos africanas, nas suas rivalidades ancestrais, na sua luta pela sobrevivência mas também no encanto das suas tradições, dominadas por uma espécie de irmandade com a natureza que o branco nunca compreendeu nem quis compreender.
Aqui se fala dos terríveis jacas, guerreiros canibais, dos jogos de poder que envolviam os reinos do Kongo e do Ndongo, ora aliados ora rivais, conforme as conveniências e as manobras dos colonizadores.
Mas estes colonizadores estavam longe de ser agentes “civilizacionais”. Não eram mais que desterrados, condenados e refugiados, a verdadeira ralé da sociedade portuguesa. Para eles, Angola era apenas último lugar onde poderiam obter poder e dinheiro. Era assim também com o governador Cerveira, personagem central do livro: homem sem escrúpulos, impiedoso, cruel, egoísta. Para fazer fortuna não se olhava a meios; os sobas locais eram vítimas de uma estratégia traiçoeira que incentivava as lutas internas para delas obter escravos baratos ou outras fontes de riqueza. Neste sentido, esta obra é também um testemunho de como se perdeu o Império; de como se destruíram ideais de civilização que algumas mentes ingénuas alimentaram durante séculos.
E a Igreja Católica observava impávida este triste espectáculo. Impávida não… sempre se procurava tirar proveitos: neste livro, Jesuítas e Franciscanos transportam para África as suas ambições de poder e de fortuna e nem eles escapam à mesquinhez da ambição material.
A escravatura era a grande fonte de fortunas e por isso civilizar e desenvolver os negros era considerado perigoso! A política oficial considerava que qualquer desenvolvimento técnico, cultural ou até económico dos indígenas poderia colocar em perigo o medo que os portugueses deviam inspirar!
Enfim, trata-se de um livro poderoso! Um livro que nos diverte e emociona mas também uma obra que nos dá a conhecer um mundo ao mesmo tempo encantador e tenebroso. Um livro que me deixará por muito tempo na memória o encanto do amor entre o “europeizado” Carlos Rocha e a encantadora indígena Kandalu. Um amor que é um choque de culturas mas onde a natureza funciona como semente de eternidade.
Avaliação pessoal: 9/10

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Lendo Pepetela: A Sul. O Sombreiro

Eis o mais recente livro de Pepetela, lançado há um mês. O mais recente e, dos que li, o mais elaborado. Trata-se de uma empolgante viagem na Angola do início do século XVII.
Viviam-se os tempos da captura de escravos para as plantações de açúcar no Brasil. Um tempo de cobiça, de ganância e de intrigas próprias de um colonizador cego pela ânsia de riquezas.
O colonizado, esse, o povo do território que hoje é Angola (O que é uma pátria?) vivia entre as lutas internas e as relações mais ou menos conturbadas com o colonizador.
Mistura de romance histórico e livro de aventuras, esta obra tem o encanto da escrita “enfeitiçada” de Pepetela; uma escrita que nos embala no encantamento.
Enfim, mais um livro genial deste magnífico escritor angolano.
Amanhã, aqui, a opinião completa.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Memorial do Convento - José Saramago

É ingrato escrever sobre o Memorial do Convento. Tudo quanto se possa dizer é pouco. E tudo quanto possa “apoucar” esta obra é quase criminoso.
Sublime, épico, revolucionário, maravilhoso. Tudo isto é pouco.
Portanto, tudo o que aqui venha eu a escrever não serão mais que notas dispersas do deslumbramento com que reli este livro.
Comecemos então por umas frases do Mestre, que penso revelarem um pouco desse maravilhoso, a propósito do transporte de uma pedra monstruosa para a varanda do Convento de Mafra, tema central do livro:
“É só uma pedra, e os visitantes, antes de passarem à outra sala, É uma pedra só, por via destes e outros tolos orgulhos é que se vai disseminando o ludíbrio geral, com as suas formas nacionais e particulares, como esta de afirmar nos compêndios e histórias, Deve-se a construção do Convento de Mafra ao rei D. João V, por um voto que fez se lhe nascesse um filho, vão seiscentos homens que não fizeram filho nenhum à rainha e eles é que pagam o voto, que se lixam, com perdão da anacrónica voz”.
É isto: o refinado sentido de humor e a sensibilidade do escritor que se unem de forma genial.
E é mais que isto; é um tom poético notável: a passarola (aparelho voador historicamente documentado, construído pelo padre Bartolomeu de Gusmão), a passarola, dizia eu, que voa com a força das vontades dos homens; e é Blimunda, a mulher que representa a força popular, indomável e misteriosa, que recolhe as vontades dos corpos humanos. E quando Blimunda adoece, é a música que a cura.
Para lá da poesia na prosa, há Deus por todo o lado. Saramago, o ateu confesso, fala de Deus como quem o respira; na sua existência ou não, na sua impiedade ou injustiça; seja o Deus impiedoso que pactua com a miséria, o Deus aterrorizador que é serventias dos algozes da Inquisição ou o Deus fantasioso da superstição generalizada. Mas todos esses deuses existem porque são reais nas mentes e nas vidas sofridas dos homens.
E são essas vidas sofridas que percorrem a obra num tom pungente a lembrar as raízes neo-realistas do escritor: no sentimento de solidariedade com que descreve a vida dos mais pobres, desprezados e injustiçados pelos detentores da riqueza, renegados pelo poder. É a miséria de quem trabalha apenas para que possa manter-se na miséria. É a eterna injustiça do reino dos homens, no tempo do ouro do Brasil, que chega às toneladas para alimentar os sonhos magnânimos de um rei cujos súbditos morrem à míngua.
Neste sentido, o livro é um grito de revolta contra a natureza do poder político e, mais que isso, uma intensa reflexão sobre o sentido da vida: os que trabalham e sofrem, justificam e alimentam a vida dos poderosos e dos “santos”. Afinal, os pobres não têm tempo para viver.
Basicamente (e convém não esquecer o mais simples da mensagem) o Memorial do Convento é uma imensa homenagem a todos quantos construíram, com o sangue e o suor, não só o Convento de Mafra mas todas as vaidades que se plasmaram na pedra, onde as gentes humildes se sacrificaram na pedra bruta, altar do sofrimento, para honra e glória de mortais tornados ídolos. E talvez Deus seja apenas a testemunha silenciosa ou ausente, vá-se lá saber…
Mas nem tudo é sangue e suor neste livro; dele emana sempre o perfume do sonho, esse sol, ou esses sete sóis das semanas que comandam a vida, que o herói modesto do livro, Baltasar, herdou de alcunha: Sete Sóis, sete fôlegos, sete lutas, ou setenta vezes sete vidas guiadas pelo sol do sonho. O sonho que comanda a vida.
Enfim, um livro que se lê com fúria e prazer, com revolta e encantamento. Um livro único coroado com um final cheio de beleza e emoção.
Avaliação Pessoal: 10/10 

sábado, 8 de outubro de 2011

Relendo Memorial do Convento

Reler Saramago é uma aventura sempre nova, sempre estimulante e maravilhosa.
Dou comigo lendo e relendo a mesma página, num devorar que é também saborear, numa ânsia de absorver toda a sabedoria e arte do nosso grande Mestre.
Memorial do Convento é um monumento maior que o convento de Mafra, cuja construção se narra. Reler este livro é uma aventura épica única!
Toda a sensibilidade do autor expressa-se numa prosa poética inigualável, cheia de humor mas também de sentimento e de humanismo.
Não tenho já qualquer dúvida de que este é, para mim, o melhor livro alguma vez escrito em língua portuguesa.
Lá para segunda feira, aqui, a minha opinião completa.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Ainda a propósito de Valter Hugo Mãe

A Cristina Torrão teve a amabilidade de me indicar este link:
O que aqui se passa é uma imensa discussão a propósito de uma apreciação "quase negativa" do livro O Filho de Mil Homens, apreciação essa feita por um crítico literário.
Devo dizer que, como se diz na minha terra, "afino" com estas apreciações feitas com base em padrões de qualidade que são sempre subjectivos. E "afino" ainda mais com o tom doutoral com que por vezes se atribuem esses epítetos de "escritor com E", passando a encarar esses heróis como uma espécie de "vacas sagradas" em quem  ninguém pode tocar. Para esses "doutores", dizer, como eu digo, que não gostei do livro de VHM é um crime de lesa-majestade, como seria também criminoso elogiar José Rodrigues dos Santos porque esse já foi carimbado por tais doutores como um escritor medíocre.
É por estas coisas e por outras que ouso dizer com todas as letras: abomino cada vez mais a crítica literária! Vou continuar a dizer que GOSTO de Paul Auster, de Augusto Cury, de Zafón e de vários outros que os doutores/críticos abominam! E da mesma maneira diria que detesto Os Maias se assim pensasse! E direi também que não consigo ler A Viagem à Índia, que os doutores tanto adoram!
Senhores Doutores e Senhoras Doutoras, quero lá saber o que vocês pensam e o que vocês dizem! O único padrão de qualidade a que obedeço é o meu, até porque a Literatura não é uma indústria para se avaliar os livros como se avalia um detergente. No entanto, TODOS temos o direito de fazer a nossa avaliação pessoal, pois a Literatura é uma arte. A mais nobre das artes!

terça-feira, 4 de outubro de 2011

O Filho de Mil Homens - Valter Hugo Mãe

Depois de magníficos livros como A Máquina de Fazer Espanhóis e, principalmente, O Remorso de Baltazar Serapião, as expectativas eram altas para este livro de Valter Hugo Mãe. Anunciava-se o regresso às maiúsculas e o assumir de uma perspectiva mais positiva e uma escrita mais suave. Desde logo, anunciava-se o abandono de uma linha pessoal que VHM ia seguindo nas suas obras anteriores.
Esse abandono de um estilo bem pessoal não me agradou mas devo dizer antes de mais nada que estamos perante um bom livro. A leitura é agradável, a escrita poética dá uma certa musicalidade ao livro e a sensibilidade do autor está sempre “à tona da água”.
Conta-se a história de um homem que, como o autor, cruza os quarenta anos de idade e questiona o sentido da sua existência, decidindo-se pela procura de algo que o complete: uma mulher e um filho.
Crisóstomo, pescador, era metade. Fez 40 aqnos e sentiu-se só. Procurou um filho e encontrou-o: Camilo, catorze anos. Encontrou uma mulher e sorriu: Isaura (o nome mais belo que existe). Sorriu.
Uma anã sem nome era infeliz. Só. Mas 15 homens, quase todos os que havia na aldeia a visitavam. E da doença e da solidão nasceu um filho. A mãe, anã, completou-se e morreu.
Isaura com 16 anos cedeu ao amor carnal e começou a morrer. Conheceu um maricas e casou. Mais tarde o maricas será chamado pelo seu nome (Antonino); antes disso foi sempre renegado porque maricas não é ser gente. Um dia o maricas foge e Isaura descobre que o amor é esperar. Chora.
Camilo, o filho da anã, é adoptado pelo velho Alfredo. Alfredo morrerá e Camilo herda a solidão. Para Isaura “ser o que se pode é a felicidade”. Assim foi até conhecer Crisóstomo e Camilo, entretanto adoptado pelo homem que fez 40 anos. Todas as metades se completaram e o maricas voltou. Antonino é acolhido pela nova família: Isaura, Crisóstomo e Camilo. A união entre os pobres, solitários deserdados da vida. Ainda havia tempo para que todos sorrissem.
Como se vê a mensagem é bonita, o enredo é interessante mas falta aqui (na minha opinião, é claro) Valter Hugo Mãe. Falta o cunho pessoal, o estilo “tsunami” a que VHM nos vinha habituando.
A solidão foi derrotada, assim como o preconceito, esse monstro devorador da vida, do qual nasce a solidão.
Independentemente da qualidade inegável da obra, a palavra chave que me assoma à mente é esta: cedência. 
Avaliação Pessoal: 8/10

domingo, 2 de outubro de 2011

O Papa-prémios

Como podemos conferir aqui, Gonçalo M. Tavares venceu mais um prémio literário.
Não sou ninguém para questionar a justiça desta avalanche de prémios mas, num país onde vários escritores produzem continuamente obras de grande qualidade, causa-me alguma estranheza que seja sempre o mesmo autor o escolhido por estes juris (presumo que constituídos por pessoas diferentes).
É evidente que GMT é um grande escritor, mas julgo que também o são António Lobo Antunes, Mário de Carvalho, Valter Hugo Mãe, João Tordo, José Luís Peixoto, etc.
Será que GMT é assim tão esmagadoramente superior a estes seus colegas de ofício, ou haverá razões que a razão desconhece?

sábado, 1 de outubro de 2011

A melhor leitura de Setembro

O pequeno grande livro Aqui Entre Nós, de Paulo Alexandre e Castro foi uma agradável surpresa; uma peça de teatro inovadora e cheia de conteúdo. 
Um outro livro, um clássico da literatura brasileira (O Alienista de Machado de Assis), revelou-se uma leitura divertida mas também com um significado muito interessante, tendo em conta a época em que foi escrita. Em pleno século XIX este génio do país irmão faz uma abordagem original e intensa da loucura, a fazer lembrar Dostoievski. Antes de Dostoievski, note-te.
Para a qualidade literária de PAC e de Machado de Assis já estava eu alertado, por isso a surpresa maior veio de um escritor já muito experimentado, um escritor de sucesso que eu, desgraçadamente, desconhecia: Marek Halter. Na verdade, este Mistérios de Jerusalém é uma obra fabulosa pelo conteúdo histórico, pela estrutura inovadora da narrativa e pela emoção que coloca no enredo.
Sem dúvida nenhuma, a leitura do mês: