segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Milagrário Pessoal - José Eduardo Agualusa

À procura de uma colecção de maravilhosas palavras roubadas aos pássaros, Iara, uma jovem linguista e o seu velho professor constroem uma maravilhosa viagem ao mundo dos livros, dos escritores e da história da língua portuguesa.
Milagrário Pessoal é um grande livro; um hino grande a esta pátria que é a Língua Portuguesa. Ao longo de cento e oitenta e duas páginas que se fazem poucas, Agualusa passeia palavras poéticas, umas vezes humorísticas outras melancólicas mas sempre cheias da magia africana, da poesia vinda da terra, dos pássaros e das raízes; poesia contada em prosa, fluida como os ritmos da natureza.
A língua que resiste, que vive por si própria e vence todos os acidentes da história, sobrevivendo a guerras e talvez a acordos ortográficos. Porque a língua vem da alma dos povos. Mas vive e cresce; com neologismos mesmo que arqueológicos, como os que Iara e o professor procuram entre milagres.
Nessa procura, há um episódio que sobressai pelo encanto especial com que Agualusa o cria: havia um poeta português que resistia à ocupação indonésia. Como? Fazendo poesia e declamando em português. É assim a resistência da alma: pela palavra. Porque “palavras são o que nos resta e consola depois de perdermos tudo” (página 160).
Mas as palavras também nascem, fazendo da língua um ser vivo e eterno; palavras que crescem e morrem na boca do povo… Será certo que as línguas derivam dos sons? Então, o canto dos pássaros talvez tenha constituído a primeira linguagem, a quem os homens roubaram as palavras.
A língua como pátria talvez seja para Agualusa um refúgio perante o desencanto (expresso na voz do professor) em relação ao destino político da pátria angolana, mergulhada voluntariamente na violência da guerra de libertação e, depois, da guerra civil.
Enfim, um livro que se lê com encanto, com o deleite de uma poesia viva, como quem passeia pelas palavras.
Sem dúvida um dos melhores livros escritos em língua portuguesa no século XXI.

Avaliação pessoal: 9/10

sábado, 29 de janeiro de 2011

(intervalo)

Não... não vou dizer nada.
às vezes as palavras destroem a beleza. e isto é belo demais para que se possa dizer algo...

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Verão - J. M. Coetzee

Um jovem biógrafo decide investigar a vida de J. M. Coetzee entre 1972 e 1977, após a sua morte. Trata-se, portanto de um livro autobiográfico. No entanto, neste tipo de obras é sempre impossível distinguir a realidade da ficção. Na verdade, o leitor comum, que não conhece a vida real de Coetzee fica sempre sem saber se tudo o que se descreve corresponde, de facto, à realidade. Acautelemo-nos, portanto, encarando este livro como uma espécie de biografia ficcionada, tão ao gosto do autor, já desenvolvida em livros anteriores.
Aliás, penso que o que menos interessará aqui é saber se os pormenores correspondem a realidade ou ficção. O que marca, de facto, este livro, é a visão que o autor tem de si próprio: uma visão nada optimista, algo desencantada, quase deprimida. Coetzee vê-se a si próprio como uma pessoa indecisa, sem garra, desenquadrado do mundo em que vivia: a África do Sul do apartheid, da injustiça e da pobreza. Coetzee (que escreveu este livro em 2008, quase com 70 anos) não se vê a si próprio como um grande escritor mas apenas como um homenzinho ordinário.
O livro é constituído por cinco pretensas entrevistas do biógrafo a quatro mulheres e um homem que terão convivido com Coetzee nesse período (antes dos primeiros sucessos literários). Curiosamente, nenhuma dessas personagens guarda do autor memórias muito positivas; a ideia geral é esta: Coetzee era um ser humano quase amorfo, tímido, embora culto e generoso. Algo sonhador mas com pouca propensão para procurar concretizar os sonhos. Quase como se aceitasse a realidade como imutável, como se identificasse os problemas e as injustiças mas considerasse que lutar seria sempre inútil.
John Coetzee tem medo da mudança. Prefere a inacção. Daí também a sua “incompetência com as mulheres”, o que gera momentos divertidos na leitura deste livro, tal é a forma desajeitada como lida com o sexo oposto. Por detrás deste auto-conceito na forma como é descrito, talvez esteja uma perspectiva crítica do autor em relação ao papel social da mulher, como se fosse exigido ao homem tomar sempre a iniciativa, deixando à mulher o papel passivo de se deixar (ou não) seduzir. Desta forma, um homem que não tomasse a iniciativa da sedução seria sempre um homem incompetente.
Outra ideia que parece estar por detrás deste enredo é a literatura como forma de resistência em relação à morte. Coetzee imagina-se morto; imagina o trabalho de um biógrafo, preocupado com a revelação de pormenores da vida do falecido, como se a escrita fosse uma forma de perpetuar a vida. Por isso não se pode entender esta visão deprimida de si próprio com qualquer auto-comiseração: tudo se passa como se o autor tivesse um certo orgulho nessa personalidade discreta e passiva, ao ponto de desejar a sua perpetuação nas páginas de um livro.
Enfim, uma obra de grande valor literário mas que, para o leitor comum, pode deixar a ideia de ser muito auto-reflexiva, muito centrada no próprio escritor. Pessoalmente, penso que o efeito lúdico que a leitura deve sempre ter perde-se um pouco neste mundo fechado do autor.

Imagem retirada daqui
Avaliação pessoal: 8/10.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Dewey, o Gato que Comoveu o Mundo - Vicki Myron

É praticamente impossível não ficar enternecido logo nas primeiras páginas da leitura deste livro. Dewey é um gato abandonado a quem o pessoal de uma biblioteca dá guarida. Trata-se da biblioteca pública da pequena cidade de Spencer, no estado do Iowa, EUA. O ambiente idílico de uma cidade do interior americano, numa daquelas paisagens agrícolas que conhecemos de Hollywood, com aquelas estradas intermináveis entre extensos campos de milho, constitui o cenário perfeito para esta bela história.
Numa manhã fria de Inverno, a Directora da biblioteca, autora do livro, recolhe um gato-bebé abandonado na caixa de correio por um desconhecido e a vida na biblioteca e na cidade mudará radicalmente. Dewey torna-se rapidamente a estrela da biblioteca, protegido e mimado por todos. Ele ficará na história de Spencer, não só pela dinamização da biblioteca, atraindo crianças e adultos com as suas diabruras e habilidades mas também pela forma como contribuía para a promoção da própria cidade, até aí praticamente desconhecida.
Um início fulgurante no despertar de emoções no leitor e um final enternecedor fazem deste livro uma obra muito interessante. No entanto, pelo meio, a autora resolveu preencher a história com trechos da sua própria vida e da cidade. Estes “desvios” narrativos parecera-me excessivos porque retiram grande parte do interesse à leitura. Penso que o livro teria mais impacto se se centrasse mais na história de Dewey.
Mesmo assim, é uma leitura agradável e imprescindível para quem gostar de animais, principalmente de gatos. Note-se que o enredo é baseado numa história verídica.

Avaliação pessoal: 7,5

domingo, 16 de janeiro de 2011

Por Favor Não Matem a Cotovia - Harper Lee

Por Favor Não Matem a Cotovia. Só o título já é suficientemente apelativo para que este livro comece a cativar-nos ainda antes de começar a leitura. Explicando: a cotovia é uma ave pacífica, completamente inofensiva, que não destrói as sementeiras. Esta ave surge aqui, portanto, como uma metáfora das vítimas das injustiças humanas, como a população negra do sul dos Estados Unidos, vítima do racismo. Curiosamente, o título original é bem menos poético: To Kill a Mockingbird.
Muito mais do que um panfleto anti-racista, este romance é constituído por uma história simples, feita de gente simples e escrita com uma delicadeza e uma suavidade que deixam o leitor deliciado. A linguagem infantil, na forma como imita a oralidade, é genialmente recriada por Harper Lee. Toda a narrativa é feita pela voz de uma criança, uma menina de sete anos (Scout), filha de um advogado de uma modesta cidade do Alabama. Scout, juntamente com seu irmão Jem e o amigo Dill seguem o desenrolar do julgamento de um negro injustamente acusado de violar uma jovem branca e defendido pelo pai, Atticus. A comunidade, ignorante e preconceituosa, contrasta com a inocência e candura das crianças e também com a serenidade e racionalidade de Atticus.
Aliás, Atticus é, na minha opinião, a personagem mais fascinante deste livro: ponderado e inteligente mas também sensível e com uma enorme capacidade para compreender o mundo das crianças. Tal como a autora, aliás.
Um dos aspectos mais fascinantes deste livro é a enorme capacidade da autora para compreender o universo infantil. São muitos raros os grandes escritores que se atrevem a ver o mundo pelos olhos das crianças. Harper Lee fá-lo de uma forma genial, revelando uma rara compreensão da psicologia infantil.
Numa outra perspectiva, este livro é um poderoso testemunho da forma como a Guerra da Secessão marcou de maneira indelével os Estados Unidos da América: o confronto Norte/Sul continua no século XX, como continua hoje. Os estados do Sul (como o Alabama, onde se desenrola este enredo), onde predomina a grande propriedade agrícola continuam dominados por uma mentalidade profundamente conservadora, onde pontificam alguns preconceitos racistas, herdeiros do esclavagismo que manchou a história deste grande país. Contra este preconceito (reforçado pelo fanatismo religioso das facções puritanas protestantes) só duas armas são eficazes: a inteligência de Atticus e a pureza das crianças. Ao ler este livro sentimos que se as crianças governassem o mundo ele seria certamente bem melhor.
Este livro envolve também uma enorme lição de coragem, bem patente nesta frase: "Coragem é sabermos que estamos vencidos à partida, mas recomeçar na mesma e avançar incondicionalmente até ao fim".
Enfim, trata-se de um romance magistral, de leitura muito agradável, com um excelente ritmo narrativo. Não há descrições exaustivas e exageradas; aliás sente-se que não há nada de acessório ou inútil neste livro.
Sem dúvida, uma das obras-primas da literatura americana do século XX, a ombrear com O Som e a Fúria ou O Grande Gatsby.

Avaliação pessoal: 9.5/10

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

(intervalo)

Há coisas ainda mais importantes que os livros; coisas tristes de que é feita a vida deste triste país. Coisas tristes que, se nós deixarmos, farão a nossa vida ainda mais triste.
Mas por maior que seja a crise, por maiores que sejam as roubalheiras, haverá sempre a música, que nos dá sempre forças para lutar.
Tenham um grande FIM DE SEMANA.
Anda tudo do avesso
Nesta rua que atravesso
Dão milhões a quem os tem
Aos outros um passou - bem

Não consigo perceber
Quem é que nos quer tramar
Enganar
Despedir
E ainda se ficam a rir

Eu quero acreditar
Que esta merda vai mudar
E espero vir a ter
Uma vida bem melhor

Mas se eu nada fizer
Isto nunca vai mudar
Conseguir
Encontrar
Mais força para lutar...
Mais força para lutar...

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

A Solidão dos Números Primos - Paolo Giordano

É muito difícil fazer um comentário a este livro. Porquê? Porque fiz dele uma leitura muito pessoal e quando assim é, pouco resta para dizer aos leitores de um blogue. Por outras palavras: quando um livro nos fala tão de perto, nos atinge como uma bala, nos mexe nas profundezas da alma, fica uma espécie de pudor que nos encaminha para a interiorização…
É um livro notável. Não é uma obra-prima; o seu estilo é simples, algo ingénuo até, como seria de esperar de um escritor tão jovem (25 anos). Mas o que falta em grande qualidade literária sobra em emoção e em sentimento.
Alice é uma jovem vítima de um acidente de esqui, aos sete anos, numa altura em que o pai a forçava a praticar esse desporto, sonhando fazer dela uma atleta de alto nível. Mas esse acidente marcará indelevelmente toda a sua vida…
Mattia é uma criança muito inteligente e feliz até que um terrível acidente acontece com a irmã gémea deficiente. A culpa persegui-lo-á e a sua vida ficará irremediavelmente determinada por isso.
Alice e Mattia serão sempre como os números primos: sempre perto um do outro sem que nunca se toquem. Como o onze e o treze; o dezassete e o dezanove. Há amores assim; amores distantes embora próximos; infelizes embora profundos…
É um livro de uma sensibilidade tremenda, um livro triste mas profundamente real; um livro simples mas que aborda o amor de uma forma muito profunda.


Avaliação pessoal: 9/10

domingo, 2 de janeiro de 2011

O Elefante Evapora-se - Haruki Murakami

Trata-se de um livro de contos, escrito por Murakami entre o início dos anos 80 e 1999. Não sou propriamente um apreciador de contos, pelo que este livro não me deleitou tanto como outras obras deste admirável escritor. Mas tratando-se, alguns deles, de obras do seu início de carreira eles são importantes para compreender a influência que Kafka teve, sem dúvida, no seu percurso literário. Fazendo lembrar A Metamorfose, alguns destes contos revelam uma admirável mistura de fantasia e realidade que se tornou uma das “imagens de marca” de Murakami.
O impossível que acontece, o ilógico que se torna óbvio, o absurdo que povoa o quotidiano. Misticismo, mistérios, absurdos, assim se faz o dia a dia do comum dos mortais. Ao fim e ao cabo, é quase impossível definir onde acaba o real e começa o imaginário; na literatura como na vida de cada um de nós. Surreal é sem dúvida a palavra-chave para definir a escrita de Murakami.
No mais brilhante e significativo destes contos (Sono, escrito em 1993), Murakami explora o outro lado, o lado negro, da rotina e da ausência de liberdade. O pesadelo da mulher de meia-idade, fundada na rotina, é o grito desesperado do prisioneiro, da mulher-autómato, atormentada pela solidão. Ao ler Anna Karenina e comendo chocolate (que lhe fora proibido pelo marido), ela empreende uma fuga pelo sonho. Neste conto, Murakami coloca em paralelo a necessidade de dormir com a rotina insustentável da vida. Dormimos como quem morre 8 horas por dia. Todos os dias, rotineiramente. Assim, a insónia é vista como libertação. No entanto, parece haver sempre um preço muito elevado a pagar pela liberdade, como o que teve de pagar o jovem quem fabricava elefantes…
Raros são os escritores que combinam tão eficazmente o real com o imaginário. Murakami fá-lo com um toque de bom-humor que torna a sua escrita tão simples e bela. No entanto, este formato (contos) impede uma linha de pensamento, uma mensagem, que nos habituamos a ler nos livros de Murakami. Daí que este livro não me tenha entusiasmado tanto como qualquer outro deste genial escritor japonês.
Avaliação pessoal: 8/10