domingo, 17 de março de 2013

A Caverna - José Saramago

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Sinopse:
A caverna é uma história de gente simples: um oleiro, um guarda, duas mulheres e um cão muito humano. Esses personagens circulam pelo Centro, um gigantesco monumento do consumo onde os moradores usam crachá, são vigiados por câmaras de vídeo e não podem abrir as janelas de casa.
É no Centro que trabalha o guarda Marçal. Era para o Centro que seu sogro, o oleiro Cipriano, vendia a louça de barro que fabricava artesanalmente na aldeota em que vive - agora, os clientes do Centro preferem pratos e jarros de plástico. Sem outro ofício na vida, Cipriano perde a razão de viver. E a convite do genro, muda-se para o Centro, essa verdadeira gruta onde milhares de pessoas se divertem, comem e trabalham sem verem a luz do sol e da lua.
Enquanto isso, em baixo dos diversos subsolos, os funcionários do Centro descobrem uma estranha caverna. Driblando a vigilância, Cipriano consegue entrar lá dentro. O que descobre é aterrador.
Nesta versão moderna do mito da caverna de Platão, José Saramago faz uma apresentação sutil da face cruel do mundo capitalista e tecnológico.
Comentário:
Este livro é mais uma prova da imensa capacidade de José Saramago para nos surpreender. Nada na sua obra de ficção se assemelha a A Caverna. Podemos dizer que há aqui alguns tons de neorrealismo que ele desenvolvera em Levantado do Chão. O ambiente rural e a exploração do trabalho pela dinâmica capitalista, são assuntos aqui revisitados. Mas os pontos de contacto com as obras anteriores a esta (2000) são muito poucas. A versatilidade de Saramago ficava a qui bem vincada.
Há, neste livro, uma referência clara à Caverna de Platão: os cadáveres que hão-de ser encontrados no final do livro “somos nós”; nós, os que apenas vemos sombras; nós, os que não passamos de espetadores impotentes perante aqueles que nos comandam como marionetes; nós, que moldamos o barro, que somos criadores, no fundo, não passamos de fantoches.
Os bonecos que Cipriano Algor, Marta e Marçal moldaram “somos nós”, também eles; são as criaturas que um Deus menor um dia houve por bem inventar e lançar aos leões. O resto são sombras; são mundos inacabados, sempre distantes, sempre inacessíveis a quem está condenado a apenas sobreviver. No entanto, por maior que seja a injustiça, todo o homem é um Deus. Pode ser apenas um deus menor, assim mesmo com letra minúscula; mas ao moldar o barro, a família Algor assume o sagrado.
E no fim há sempre a liberdade; a liberdade de penetrar bem fundo na Caverna; a liberdade de dizer não ao Centro Comercial ou a tudo o resto. E a liberdade maior, aquela que Cipriano encontrará em Isaura Estudiosa; a liberdade de amar.
Pelo meio fica a imensa caminhada do criador de bonecos e moldador de barro. Uma caminhada penosa, escondida, mas onde há sempre algo que nunca diz não. Algo que escapa à tirania do Centro comercial e de todos os desuses do mal: o cão. O Achado, que um dia deu luz à vida de Cipriano.
Enfim, estamos perante um livro cheio de poesia que reforça no leitor aquela ideia que há muito assimilou: que José Saramago é um homem único; um homem em quem a sensibilidade humana, a bondade, o sentido de solidariedade estarão sempre vivas, por mais milénios que continuemos limitados às sombras da Caverna de Platão.

domingo, 10 de março de 2013

Todos os Nomes - José Saramago

 
Sinopse:
O protagonista é um homem de meia idade, funcionário inferior do Arquivo do Registo Civil. Este funcionário cultiva a pequena mania de coleccionar notícias de jornais e revistas sobre gente célebre. Um dia reconhece a falta, nas suas colecções, de informações exactas sobre o nascimento (data, naturalidade, nome dos pais, etc.) dessas pessoas. Dedica-se portanto a copiar os respectivos dados das fichas que se encontram no arquivo. Casualmente, a ficha de uma pessoa comum (uma mulher) mistura-se com outras que estás copiando. O súbito contraste entre o que é conhecido e o que é desconhecido faz surgir nele a necessidade de conhecer a vida dessa mulher. Começa assim uma busca, a procura do outro.
 
Comentário:
Por detrás do Sr. José, há outro Sr. José. Porque por detrás de cada um de nós, há um Sr. José escondido, o mesmo é dizer, há outra pessoa. A solidão do Sr. José impeliu-o para a criação de um “eu” alternativo. Vítima de um mundo que o isolou, que o tornou autómato, ele procurou acabar com a solidão procurando alguém pelo nome; vasculhou na Conservatória e depois na vida real. Se fosse hoje, procuraria na internet; mas eram os verbetes da conservatória do Registo Civil que estavam à mão.
Começou por procurar os famosos; mas porquê dar importância aos famosos? Só eles importam? Então o Sr. José preferiu procurar uma mulher comum; ele não sabia o que iria encontrar; aliás, será que ele procurava ou fugia? O Sr. José precisava de encontrar alguém ou antes fugir daquele mundo absurdo em que vivia? Talvez as duas coisas.
Na descrição da Conservatória e na forma como ela comanda a vida das personagens, podemos ver traços profundamente kafkianos neste livro de Saramago. Aquela Conservatória, com as mesas a marcar uma rígida hierarquia entre os funcionários, aquele chefe autoritário (pelo menos na aparência) e toda a frieza da burocracia, fazem lembrar, a cada passo, o Processo, de Franz Kafka: a solidão e o absurdo da vida. Mas também a injustiça e o desprezo pelo cidadão comum, típico desta sociedade capitalista e burocrática em que vivemos.
O final do loivro, para além de surpreendente, é uma pérola literária; uma obra-prima de delicadeza, de sensibilidade, de HUMANISMO.
Globalmente, penso que se trata de uma das obras mais perfeitas de Saramago. A sua análise do espírito humano é brilhante; Saramago dá-nos uma autêntica lição de como analisar os comportamentos humanos quando confrontados com a solidão e a banalidade estupidificante da rotina. O Sr. José fazia sempre a mesma coisa. Fazia tudo perfeito. Não cometia um único erro. Nunca se atrasava e nunca se desleixava. Em resumo: era infeliz e só.
Uma mulher desconhecida mudaria a sua vida; uma mulher que nunca conheceu. Podia ter sido outra coisa qualquer. Qualquer objetivo. Qualquer coisa que fosse de facto sua. Qualquer coisa que fizesse dele um INDIVÍDUO e não uma peça banal da máquina.

terça-feira, 5 de março de 2013

O Noventa e Três - Victor Hugo




Até onde pode um ser humano chegar, quando se encontra nas situações mais extremas que se podem imaginar? Esta pergunta poderia ser o subtítulo desta obra. O extremo do sofrimento, o limiar da raiva contida, o limite da injustiça… tudo neste livro nos faz tremer; é inacreditável até onde pode chegar o ódio, a violência do ser humano sobre o seu semelhante, em nome de ideais que por vezes nem se conhecem, por obediência a líderes que nada têm de benevolentes.
A luta contra a injustiça e a denúncia de uma sociedade fundada sobre a desigualdade, conferem a Victor Hugo o estatuto de escritor revolucionário mas, acima de tudo um grande e profundo humanista. A sua própria dor sente-se nas linhas da sua escrita. A dor de quem escreve com alma, com a paixão pelos ideais da Revolução francesa, mas com toda a consciência dos excessos dos próprios revolucionários que, em nome da justiça não hesitavam em cometer os mesmos crimes e a praticar a mesma violência.
Gouvin é o herói romântico que Hugo escolheu para representar o revolucionário que, esse sim, procurou combater o mal com o bem. Acabará mal, como é lógico.
O enredo desenrola-se no ano do título, em plena guerra da Vendeia, que opôs os revolucionários republicanos, herdeiros da Revolução Francesa, proclamando os ideias de Liberdade, Igualdade e Fraternidade e, do outro lado, os realistas, saudosistas da monarquia, com o apoio dos interesseiros ingleses.
Um dos aspetos que mais impressiona o leitor, nesta obra, é desapego dos personagens em relação à própria vida; é a forma por vezes heroica, outras vezes louca como enfrentam a violência do inimigo, com que se expõem às balas. E no meio de heróis uns e idealistas outros, o povo de pé descalço; milhões de soldados miseráveis jogando a vida como se a morte fosse o destino fatal de uma procura a que chamam vida.
Escrito em 1874, quando V. Hugo contava já 72 anos, este livro é o culminar de uma carreira literária brilhante; é a súmula de uma imensa obra, onde brilham estrelas como Os Miseráveis e Nossa Senhora de Paris. Sem a profundidade histórica do Corcunda de Notre Damme e sem a beleza e a profundidade de Os Miseráveis, este O Noventa e Três compensa o leitor com um ritmo narrativo alucinante, privilegiando os diálogos e a emoção do enredo.
Sem dúvida, mais uma obra grandiosa da enorme literatura francesa do século XIX.
Obrigatório para quem aprecia a grande literatura universal.
Nota dez em dez.