sábado, 27 de março de 2010

Parábola do Cágado Velho - Pepetela

Todos os dias, ao entardecer, Ulume observa o cágado, lento como o mundo; o cágado imutável, como o tempo sempre igual, no ritmo moroso do Sol e da Terra… o ritmo pausado da poesia e da natureza.
Guardião da sabedoria ancestral, o cágado todos os dias se revela ao olhar de Ulume que, impávido, absorve dele a sabedoria do silêncio e da tradição, “sabedorias antigas trazidas por todos os cágados do mundo”
Do outro lado da vida há o amor, face reversa da realidade em guerra, também ele envolvido na sabedoria ancestral: “se alguém que pensa morrer tem saudade de uma mulher, então é inútil lutar contra esse amor avassalador”. E Ulume via a granada voar para ele, encarando a morte; foi então que viu no céu o rosto de Munakazi e soube assim que ela seria o seu destino.
Entretanto, as guerras, desde os tempos da caça, iam devorando vidas de gentes que sempre renasciam como frutos da terra.
Terra, tradição, lutas e espíritos: a magia de um povo mártir e sábio que vive com a morte mas sobrevive com o espírito ancestral. Depois de muitas outras guerras, tinha vindo a guerra colonial. Depois houve paz, fartura e alegria. O povo andava feliz. Mas em breve voltara a guerra; uma guerra que ninguém entendia (alguma guerra se entende?). O povo apenas entendia que os filhos partiam e não voltavam. Voltavam soldados desconhecidos que traziam fome e a deixavam na aldeia. Porque o povo tem de contribuir para a guerra mesmo que não a entenda. Mesmo que a guerra seja um monstro sem rosto que nem a sabedoria antiga conhece.
Ulume tem dois filhos; Angola dois monstros que se devoram na guerra. Ulume sofre. Angola vai morrendo, os cágados antigos lamentam e sofrem…
Até quem, no final, é o amor a redimir todos os tormentos; um final belíssimo, magnifica lição de amor. O cágado sempre tivera razão…

terça-feira, 23 de março de 2010

Aravind Adiga - Entre os Assassinatos

Não há esperança. Não há fuga. Há miséria, exploração, pobreza moral e um imenso vazio onde caem as almas e os corpos famintos de milhões de hindus, muçulmanos e cristão, todos juntos no lodaçal do capitalismo selvagem, da exploração, da desumanidade que interessa a alguns, os que vivem desses corpos e dessas almas.
Na Índia já não é só o suor do povo que alimenta as panças inchadas dos poderosos. São os próprios pobres, são os seus corpos e as suas almas, propriedades quase feudais num novo regime senhorial, baseado no dinheiro mas também nas tradições desvirtuadas. Nesta Índia, todos são de alguém; todos procuram o sentido da vida na afirmação de uma qualquer forma de superioridade que garanta alguma paz de espírito e um pouco de pão. No entanto, esse pão e essa paz parecem só ser possíveis à custa de alguém; de outro que seja mais fraco, de um degrau mais baixo que sempre existe na escala social.
Ninguém sobrevive à podridão. Ninguém foge a uma imundície que não é só das ruas, é imundície dos corpos e dos espíritos.
Ziauddin, 12 anos, o trabalhador infantil explorado, criado muçulmano e pequeno ladrão; Abbassi, proprietário de uma confecção sobrevive à asfixia de ter de subornar toda a gente para manter um negócio onde as mulheres bordam até cegar; Xerox, o símbolo da liberdade assassinada, espancado brutalmente por não colaborar com a corrupção; Shankara, pequeno bombista da escola de rapazes, um símbolo de um sistema educativo inenarrável; Keshava tem um sonho: encaixar-se no penúltimo degrau da hierarquia – há-de haver alguém ainda pior que eu…
E o desfile prossegue: Chenaya, condutor de riquexó, é a raiva reprimida da miséria; Soumya, a jovem violentada por um pai miserável, ele próprio o excremento da sociedade; Jayamma, a cozinheira, vítima do sistema de casamentos: condenada à miséria porque o pai não tinha dinheiro para o dote de casamento…
E, num final magnífico, Murali, o comunista desiludido, o homem que procurou por toda a Índia e por toda a vida o caminho para a verdade e a justiça… um caminho inexistente… a amargura de um homem só.
Em suma, trata-se de uma obra magnífica, que ultrapassa “O Tigre Branco” em termos e profundidade de análise. Adiga põe-nos a pensar sobre o futuro, não só da Índia mas de toda uma humanidade que procura a felicidade na afirmação de relações de superioridade sobre os outros, desprezando todo um sistema tradicional de valores que poderia, mau grado as suas contradições, servir de “contrapeso” a uma ordem económica injusta e desumana.
Imagem retirada DAQUI..

sexta-feira, 19 de março de 2010

História de Uma Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar - Luís Sepúlveda

Tudo começa com uma maré negra: os humanos, essa espécie estranha, absurda, com quem é perigoso, até, miar. Zorbas, o gato grande, preto e gordo, assim como os seus camaradas, sabe miar a linguagem dos humanos mas só o faz em situações de emergência, porque os humanos são muito perigosos…
Este livrinho de Sepúlveda é uma pequena maravilha! Ao lê-lo sentimos a magia de ser criança e também o encantamento que só os animais nos sabem oferecer. Eles, os gatos, dão-nos aqui um exemplo que teimamos em esquecer: que a união faz a força; que a solidariedade nos pode fazer felizes.
Todos achamos estranho que um gato possa ensinar uma gaivota a voar. E achamos estranho porquê? Porque não percebemos nada da verdadeira fantasia; porque não temos imaginação suficiente para ver a verdade que há na fantasia; porque temos uma aversão natural a tudo o que é diferente – porque somos humanos, horrivelmente normais!
Só nós, os humanos não conseguiremos, nunca, voar. Porque nunca entenderemos que “só voa quem se atreve a fazê-lo”. Só voaremos quando perdermos o medo de tirar os pés do chão. E às vezes bastava fechar os olhos e sonhar. Mas não, temos medo! E ficámos tão presos como aquela gaivota com as asas cobertas de petróleo…
Ler este livrinho é um exercício de libertação e de regresso ao mundo maravilhoso da imaginação. Este livro é um imenso sorriso…
Uma opinião diferente sobre este livro: AQUI

sábado, 13 de março de 2010

Invisível - Paul Auster

Ao 13º romance, Paul Auster presenteia-nos com um livro surpreendente. Este grande escritor, verdadeiro génio da literatura mundial, demonstra-nos como é possível inovar, mesmo quando as fórmulas tradicionais garantem o sucesso.
Começando pelo fim: pela primeira vez na carreira literária, Auster escolhe um final pouco surpreendente; digamos que surpreende pela falta de surpresa; um final previsível mas, incrivelmente belo!
No entanto, não deixam de estar presentes os temas mais recorrentes na obra de Auster: a angústia do escritor, a solidão e a luta interior pela procura da identidade; sempre a identidade, a eterna procura de um destino que dê sentido à existência, a demanda de objectivos que expliquem a existência; a necessidade de correr riscos; a procura dos limites onde a vida começa a ganhar sentido: “É o medo que nos leva a correr riscos e a ultrapassar os nossos limites normais”.
A história de Adam Walker é uma saga incrível. Ele é o homem comum, como qualquer de nós, a quem tudo pode acontecer. A sua vida é marcada pelo confronto com Born, o anti-herói, o fantasma real, o inimigo visível e invisível. Walker flagela-se por ter sido pouco corajoso perante a maldade de Born. Toda a sua vida foi destroçada quando, na verdade, ele teria sido, apenas, a vítima. A culpa! A culpa, esse conceito tão subjectivo, essa condenação tantas vezes imposta por nós próprios, muitas vezes apenas uma construção mental com a qual, sadicamente, nos auto-destruímos.
E, pairando sobre vidas à procura de sentido, o mortos. Sempre os mortos, invisíveis, por vezes mais vivos que os próprios vivos, na solidão de quem não consegue nunca escapar às garras da memória e da culpa. Memória e culpa que se confundem, como se uma lembrança pudesse transportar o peso insustentável do remorso. A vida e os seus paradoxos: por vezes não conseguimos escapar ao invisível; ele esmaga-nos. Outras vezes queremos tornar invisível o real e não há fuga possível. O ser humano será sempre atormentado pela sua própria mente, pela eterna necessidade de pensar e sentir.
Em suma, um livro diferente de todos os que Auster escreveu até hoje. O melhor, como alguma crítica afirmou? Impossível responder. Diferente.
Genial, como sempre! Apenas!

domingo, 7 de março de 2010

Eusébio Macário - Camilo Castelo Branco



Quando Camilo Castelo Branco escreveu esta obra, em 1879, fervilhava-lhe no cérebro um tédio nauseado provocado pela abundante literatura bucólica do século XIX. Por isso, todo o livro é uma sátira sarcástica mas bem-disposta a esse tipo de literatura em que os personagens parecem viver no jardim do éden, rodeados de borboletas coloridas, flores campestre e passarinhos de canto melodioso. Em vez disso, CCB descreve-nos a natureza minhota pejada de moscas, porcos e estrume. Em vez dos amores perfeitos de Júlio Dinis, CCB apresenta-nos as aventuras sexuais do padre Justino, gordo e sebento ou as investidas do José Fístula nos bordeis de prostitutas baratas de Braga, onde estudava para padre.
Eusébio Macário é um boticário da região de Basto, no Minho profundo, que sabe de cor as mezinhas e remédios para todos os males. Mas é também um exemplo de sujidade, boémia saloia e devassidão.
A filha, Custódia, é uma moça roliça, gorda, penugenta, cheia de “desejos animais” e muitos ardores, “com cheiros de mulher suspeita”.
O filho, José Fístula (!) estudara para padre, onde se tornara devasso, bêbado e cliente de prostitutas sujas e mal-cheirosas. Voltara para casa pobre esfarrapado e tornara-se auxiliar do pai. Tocava fados que faziam tremer as nádegas do pai, animando os serões etílicos do pai e do padre.
O padre Justino vive com Felícia (“é ela abaixo de Deus”), uma mulheraça frescalhona, farta de carnes e seios intumescidos, a quem se agarrou quando duvidara da existência de Deus, acreditando que o Céu estava roto por causa da vitória dos liberais. Mais que mulherengo, é boémio e devasso, não se contentando com as frescuras de Felícia. Tornara-se herói quando matou um lobo a tiro e até foi promovido a abade e disputado por políticos com ambições eleitorais.
O abade, já de carnes amolecidas, atormentado por irritações, congestões, enterites e hemorróides não deixa de deitar o olho a Custódia, gabando-lhe as curvas roliças.
O irmão de Felícia, Bento, chegado do Brasil, é bruto e ignorante, gordo e feio. Mas desdenha do “país atrasado”. Recebido com honras de fidalgo, é feito comendador e espera o título de Barão.
Com o casamento de Custódia com o Barão Bento, Eusébio Macário, José Fístula, Felícia e Custódia tornam-se membros da mais fina sociedade nortenha.

terça-feira, 2 de março de 2010

Opinião - Grandes Personagens

Caros amigos, gostava de partilhar convosco um assunto em que tenho pensado: os grandes personagens que me marcaram enquanto leitor.
Revendo os meus livros, encontro nove que claramente se destacam e que passo a expor sem ordem hierárquica:
  1. Emma, em Madame Bovary, uma mulher cheia de carácter, lutando contra o preconceito, apenas para ser feliz.
  2. Aliocha de Os Irmãos Karamazov, um jovem guardião da sensatez perante loucuras e paixões. O herói que não julga nem condena. O homem de paz por excelência.
  3. Zossima de Os Irmãos Karamazov. O guardião da verdade e da virtude. Um velho clérigo cheio de sabedoria.
  4. Florentino Ariza de O Amor em tempos de Cólera. Comia pétalas de rosa e bebia frascos de água de colónia para se sentir perto de Fermina. Tocava violino para ela escolhendo o lugar da serenata conforme o rumo do vento para que ela o escutasse.
  5. Nathan Glass em As Loucuras de Brooklin. Com 72 anos e uma doença terminal, este apaixonado pelos livros redescobre novos laços de ternura, renasce para a vida. A solidão como caminho para a felicidade.
  6. Kincaid, de As Pontes de Madison County. Um homem íntegro, feliz embora solitário, livre embora rendido à paixão, sonhador embora seguro de si. Um herói real.
  7. Falcão de A Saga de um Pensador: a rejeição da razão em nome da liberdade. O símbolo da felicidade em harmonia com a natureza e o mundo.
  8. Heatcliff de O Monte dos Vendavais um homem dominado pelas paixões. Uma paixão inexplicável à luz da razão e conjunto de atitudes e traços de personalidade determinados pelas emoções e sentimentos. É ódio, amor, medo e paixão. Um vendaval.
  9. Nakata, de Kafka à beira-mar; o velho e bom Nakata que fala com os gatos, faz chover sanguessugas ou peixes, depois de ter sido vítima de um estranho acidente, na sua juventude. É a sabedoria, a calma, a perfeição do espírito.
Gostava agora de saber da vossa opinião...