domingo, 24 de novembro de 2013

Os Pilares da Terra - Ken Follett


Quando li os dois primeiros livros da trilogia O Século, deste autor, fiquei um pouco decepcionado. Não que a obra tenha pouca qualidade, nada disso. Simplesmente esperava ainda mais. Fiquei nessa altura com a sensação que Follett tinha pretendido fazer uma espécie de Guerra e Paz do século XX, ficando muito preso a esse modelo e, por outro lado, prendendo-se demasiado à verdade histórica e mesmo assim falhando em alguns aspetos.
Nada disso acontece em Os Pilares da Terra.
Aqui aconteceu magia. Aconteceu uma verdade histórica refinadamente retratada e uma criatividade fantástica, num ritmo narrativo alucinante.
Ler estas 1100 páginas foi uma aventura demasiado breve. O leitor é embalado neste ritmo narrativo e, de repente, está no fim do livro.
Antes de mais, uma nota muito positiva para a forma tão verossímil como o autor nos descreve as misérias daqueles tempos (século XII); de como essas misérias, geradoras de uma tremenda violência, eram causadas por profundas desigualdades sociais.
No meio de um ambiente de miséria e injustiça, levantam-se os mosteiros como uma espécie de oásis na desgraça. Os monges beneditinos são, aqui, testemunho do interesse do autor pela história da igreja, mostrando-nos o clero regular como um local onde resta a mais pura bondade e humanidade mas também um microcosmos de todas as misérias do mundo.
No entanto, é nesse microcosmos que se erguerá o símbolo maior da força da humanidade: a pedra que testemunhará o sacrifício, o sofrimento, mas também a coragem e a força do ser humano: a catedral; a maior catedral do mundo.
O cenário político da obra situa-se a partir do final do conturbado reinado de Henrique I de Inglaterra. A sua morte, precedida de conturbados acontecimentos de rebeliões e traições, mergulhou a Inglaterra numa autêntica guerra civil, um período de caos que beneficiou os grande senhores da aristocracia da terra, mergulhando a população servil numa miséria e violência que servem de pano de fundo à odisseia dos personagens desta obra.
O clero assume, na narrativa de Follett, um papel bastante ambivalente; se os monges são o último reduto da caridade e da bondade, não é menos verdade que a igreja se deixa mergulhar no oportunismo, na cobiça dos bens materiais e, pior que isso, nas mais soezes maquinações da guerra política, no acesso às benesses do poder.
O herói do livro, o monge Philip, é uma espécie de síntese entre o humanismo e a necessidade de acompanhar as maquinações politicas. É genial a forma como Follett expõe o processo que levou Philip, um monge honesto, a aceitar negociatas mais ou menos obscuras para se tornar prior e levar a cabo os seus sonhos.
Ao longo do livro deparamos com uma espécie de psicanálise da mente criminosa: de como as injustiças sociais e as condições económicas (miséria material) conduzem ao crime.
Por um lado retrata-se uma Idade Média que nos arrepia pela violência, pela devastação e pela crueldade humana; mas, por outro lado, é nesta Idade Média que encontramos todo a força que o ser humano pode demonstrar, todo o poder de se reerguer, de triunfar mesmo por entre as mais catastróficas adversidades. É entre o sangue e o sofrimento de todo um povo que se erguem, imponentes, as torres e as naves das catedrais.
O enredo deste livro testemunha-nos o triunfo do gótico, esse estilo triunfal que marcou a baixa idade média; Saint-Dennis, essa magnifica catedral parisiense construída pelo célebre abade Suger serviu de modelo para a Notre Damme mas também para a catedral de Kingsbridge que o nosso herói vai construindo.
Uma religiosidade extrema, por vezes totalmente irracional, em que o diabo tem tanto poder como Deus dá o contexto para um mundo em que os homens se assumem como deuses ou demónios. Talvez nessa ambivalência do ser humano resida um dos motivos deste misterioso encanto que a Idade Média desperta em nós.
Não me permito falar do final do livro, para proteger o interesse de futuros leitores deste livro; no entanto não resisto a dizer que é um final grandioso, triunfal e espetacular. Mas também profundamente simbólico: o triunfo do povo. E do espírito sobre a pedra.

Imagem daqui:

(elenco e cenário da série televisiva britânica)

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Como é linda a puta da vida - Miguel Esteves Cardoso


Comentário:
Decidi empreender a leitura deste livro por duas razões essenciais: porque não lia MEC há mais de vinte anos e porque tinha gostado muito dos dois livros que li nessa época: O Amor é Fodido e, principalmente, um livro que continuo a considerar genial, A Causa das Coisas. As expetativas eram, portanto, muito grandes e quando assim é o risco de deceção é muito maior. Infelizmente foi o que aconteceu e, indo direto ao assunto, fiquei dececionado.
Nesta obra, constituída por crónicas jornalísticas, encontramos um Miguel Esteves Cardoso muito mais sereno, mais adaptado ao mundo e, talvez, mais feliz, tendo em conta o período negro que passou na sua vida pessoal, com a doença da esposa, Maria João.
Mas o leitor, no seu egoísmo de cliente de um produto cultural mas também de diversão, não queria um MEC acomodado e sereno. Queria o “velho” MEC contestatário, crítico, mordaz. Aquele que com Paulo Portos (este ainda mais transformado nos dias que correm) dirigia um jornal cheio de humor e crítica, O Independente.
Neste livro damos conta que esse velho MEC já não existe. A qualidade da sua escrita continua lá, com um estilo direto, sintético, claro. Mas apenas encontramos amostras dispersas daquilo que mais o distinguiu como escritor e jornalista: a crítica.
Quando, mais ou menos a meio do livro, vemos MEC confessar que ama este país, chega a confirmação: este não é o mesmo MEC.
Mesmo assim, o livro vale por outra característica típica deste excelente ser humano que é Miguel Esteves Cardoso: pela transparência com que nos expõe os seus sentimentos e emoções; não há dúvida que a sua escrita continua a ser transparente, honesta e frontal. Mas aquele sentido de humor requintado, cheio de crítica, tornou-se agora mais raro e só em alguns capítulos, como naquele episódio hilariante em que nos presenteia com um comentário à cozinha francesa. O uso do palavrão, no título mas também em alguns capítulos, continua a ser uma técnica bem explorada por MEC: usado com a propósito, conferindo um tom de humor à escrita.
No entanto, no final da leitura, damos conta que o próprio título do livro esconde uma outra deceção: não corresponde ao conteúdo e só se explica como forma de o fazer notar nas prateleiras dos hipermercados, junto dos livros da SIC.
Em suma: não é um mau livro, mas está longe desse clássico que é A Causa das Coisas. Talvez a experiência da vida e a paixão notável pela Maria João tenham tornado MEC um homem mais feliz. Valha-nos isso, porque ele merece.


sábado, 2 de novembro de 2013

A Feira dos Assombrados - José Eduardo Agualusa


Sinopse
Publicada pela primeira vez em 1992, A Feira Dos Assombrados, tem como cenário a velha cidade do Dondo, às margens do Rio Quanza, em Angola, nos últimos dias do século XIX. Tudo começa com a descoberta de um misterioso cadáver: O primeiro corpo que o rio trouxe ainda nos pareceu humano. Tinha as partes todas de que somos compostos, a pele lisa e sem escamas, como a nossa, e os enormes olhos abertos guardavam até um resto de luz e de calor. A partir desta descoberta, o Dondo, lugar inteiramente apartado do mundo, vai mergulhar num estranho pesadelo. Uma alegoria sobre a presente situação política e social de Angola.

Comentário
É uma limitação minha, reconheço, a pouca apetência para ler e gostar de contos. Talvez por esse motivo, esta foi a obra de Agualusa que menos me entusiasmou.
Estas estórias parecem-me algo insipidas quando comparadas com os livros de maior folego deste grande escritor angolano. Seja como for, não deixam de marcar presença os mais significativos traços da sua escrita: a fantasia, a ingenuidade do falar do povo, a poesia da linguagem falada, naquela mescla sui generis do português com a voz da terra africana. Por exemplo: (o boato) “ faz acontecer; dá acontecência ao insucedido.” Repare-se na forma simples, sintética, como se alia a musicalidade da língua à verdade ingénua e, ao mesmo tempo, profunda da sabedoria popular.
No conto principal, que dá título ao livro, Agualusa faz entrar em cena a sua paixão pela história de Angola, nomeadamente pelo período final do século XIX. Aí se cimentou a presença portuguesa na ocupação da terra angolana. E é de uma forma crua, quase brutal que Agualusa nos transmite a imagem do colonizador:
Os ratos não tardaram a fugir, transferindo-se para o norte com as suas veneradas doenças de ofício, as suas balanças viciadas, as suas quinquilharias baratas, o seu vinho triste, os seus ferros de educar gentio. E por ratos quero dizer os comerciantes portugueses, quase todos antigos degredados, a medrosa cáfila de pequenos artífices e as inevitáveis putas, ávidas aves que vêm e que voam…” É a tristeza nua e crua da verdade histórica, de uma nação brutalmente colonizada e espoliada.
Nesse conto, o mais extenso, na típica mescla de fantasia e realismo que carateriza este autor, dá-se conta do aparecimento de uma série de misteriosos cadáveres, trazidos por um rio, o Quanza. Simbolicamente, o primeiro cadáver surge no dia 31 de janeiro, o dia em que a monarquia portuguesa foi pela primeira vez abalada. Sobreviveu, no entanto, como sobreviveria a miséria moral do colonizador, assim como a terra sedenta de liberdade.
Na verdade, este conto destaca-se dos restantes não só pela sua extensão mas principalmente pelo simbolismo do seu conteúdo; os cadáveres trazidos pelo rio são as oferendas negras de uma realidade externa que fez Angola mergulhar no terror, no medo, na tristeza.

Mau grado toda a poesia desta escrita e todo este simbolismo, o leitor fica algo dececionado; de Agualusa espera-se sempre um pouco mais.