domingo, 29 de agosto de 2010

A Casa Quieta - Rodrigo Guedes de Carvalho

Salvador tem cerca de sessenta anos, é arquitecto. A esposa, Mariana, professora, agoniza à espera da morte, com cancro. António, irmão de Salvador, doente psiquiátrico, é um ex-combatente, à beira da loucura, com trauma de guerra. O pai de ambos é o homem que segurou os cordéis dos fantoches em que transformou os filhos. Por isso, perante António, é-nos difícil perceber se o maior trauma é a guerra ou o pai.
O aspecto mais interessante desta obra é a sua estrutura, bastante original: inicia-se no presente, dirige-se para o passado e depois regressa ao presente, aquando da morte de Mariana. No entanto, fica a sensação de que Rodrigo G. de Carvalho poderia ter conseguido algo mais. Tem talento, a sua escrita é atractiva mas parece ter faltado um pouco de arrojo para construir o seu próprio estilo. As influências de A. Lobo Antunes são demasiado óbvias e o enredo aproxima-se constantemente das fronteiras do cliché.
Como magnífico jornalista que é, Guedes de Carvalho revela uma admirável capacidade de expressão que lhe permitirá certamente empreender obras mais arrojadas.
Não deixa de ser interessante neste livro a análise da figura paternal – o pai que julga resolver tudo com dinheiro e que “força” os filhos a uma carreira de sucesso e o próprio António, filho desprezado, que se transforma em pai ausente, advogado com graves problemas psiquiátricos e que se esquece de ver os filhos crescer.
Enfim, um livro que me desiludiu um pouco e que arrasta, ao longo das suas 260 páginas uma tristeza, uma melancolia profunda que não é, como em Lobo Antunes, servida por uma linguagem poética capaz de compensar esse tom lúgubre.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Norwegian Wood - Haruki Murakami

Este foi o primeiro livro de sucesso de Heruki Murakami, publicado em 1987. O título é inspirado numa canção dos Beatles, com o mesmo nome.
O enredo narra a juventude de Toru Watanabe, no final conturbado dos anos 60, numa universidade japonesa. Toru, como qualquer jovem da sua idade, apaixona-se. No entanto, ele viverá um dilema entre duas paixões: Naoko e Midori.
A famosa geração de sessenta, também no Japão, vivia numa encruzilhada: os movimentos estudantis em confronto com a geração conservadora dos pais, a geração saída da segunda guerra mundial. Este conflito de gerações, (que se sentiu também na Europa) colocava em confronto aqueles que viveram a guerra e construíram a recuperação económica com base numa disciplina férrea e os filhos, protegidos pelos pais mas educados nessa disciplina, condição essencial para o grande objectivo de construir a riqueza material.
Ao longo da obra, Murakami encara estes jovens rebeldes (com os quais Toru não se identifica) como pessoas pouco esclarecidas, para quem a rebeldia era um instrumento de afirmação, mais do que de defesa de determinados ideais. A revolta contra a guerra do Vietname ou contra o sistema universitário eram apenas argumentos para uma geração sem ideais. São ideias revolucionárias que nada alterarão; são ideias ocas, desprovidas de conteúdo.
As paixões de Toru (Midori e Naoko) representam duas forças em confronto: Naoko é a tradição, a calma, a paz. Midori é o futuro, a ambição, a excitação do progresso e do desconhecido. Entre estes dois pólos, Toru procura a sua liberdade, a sua afirmação.
A geração antiga revela-se algo fria em termos de afectos para com os filhos. O pai de Midori diz às filhas, aquando da morte da mãe: “mais valia que tivessem morrido vocês”.
Muito significativa, a terapia de Naoko (que sofre de doença psíquica): o sanatório é uma espécie de paraíso na terra, entre a natureza. É nítida a apologia do mundo natural nos livros de Murakami, por oposição à devassidão do mundo dos homens. Trata-se de uma espécie de cooperativa de saúde onde todos se ajudam mutuamente, porque todos têm algo para ensinar. Por outro lado, todos têm deformações (doentes, médicos, funcionários). A diferença é que só alguns reconhecem essas deformações. Diz Reiko, amiga e terapeuta de Naoko: “o que nos torna normalíssimos é o facto de sabermos que não somos normais”.
Já neste seu primeiro romance, Murakami emprega uma linguagem profundamente simbólica; todas as situações parecem ter sido meticulosamente estudadas para exprimir algo que está para além da realidade e para além do texto.
O “Sargento”, colega de quarto de Toru, representa a geração nova: muito ambicioso, trabalhador, mas sem referência éticas ou morais.
O livro é extraordinariamente envolvente. Sem o misticismo e a fantasia dos seus romances posteriores, Murakami constrói um enredo bem mais linear que envolve o leitor numa espécie de solidariedade para com Toru. Talvez este personagem tenha bastante de autobiográfico; no entanto, os dilemas de Toru (os amores, as opções de vida, a forma de encarar o futuro e o passado) são os dilemas de todos nós. Por isso nos revemos nele. Como diz Reiko (a voz da razão neste livro) “todos somos imperfeitos num mundo imperfeito” e, por isso, não devemos encarar os nossos dilemas com demasiada seriedade. A vida exige leveza – essa leveza do ser que Murakami transporta de forma encantadora em todos os seus livros.
É que a vida, às vezes, encarrega-se de decidir por nós. Assim foi com Toru, um homem perdido nas encruzilhadas…

Uma nota de rodapé para a editora Civilização: a qualidade (sofrível) da capa e do papel bem como a (má) qualidade da impressão estão muito longe de justificar um preço de 22.20 €.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Uma Casa na Escuridão - José Luís Peixoto

Um livro negro. A história de um escritor que traz o amor e a morte no peito. E os mortos: o pai, a escrava madalena e ela – a que ele ama.
No início, o escritor era uma criança que crescia entre auto-estradas de prateleiras de livros. Pouco tempo depois é um jovem solitário. É nessa solidão que inventa, na escuridão, a mulher que ama, instalando-a na sua mente. Palavras meticulosamente escolhidas e sentidas descrevem um amor apenas sonhado. Mas o mais belo dos amores: um amor sem corpo presente. Uma paixão desmedida, interior mas feliz, rodeada de terror: um pai que agoniza, uma mãe que sofre, uma escrava assassinada com um machado na face. Sofrimentos reais. Só o amor é irreal. Só o amor é feliz; um amor que é “o sangue do sol dentro do sol”.
O pai assassinou a escrava madalena para morrer com ela. O sangue dá significado ao amor. Só a morte o perpetua.
A mão do escritor tremia e ele escrevia. Escrevia-a e lia-a. Vivia-a. Amava-a. Em Novembro havia a luz que “vinha da primavera”. Ele é um escritor lido em todo o mundo, mas é um homem só… só com ela no peito.
O livro – docemente melancólico; apaixonadamente triste, tétrico, como se escrito a lágrimas vermelhas e negras.
A escrita – Peixoto brinca com as palavras como Kandinsky com as cores, que vão do vermelho paixão ao negro morte.
O enredo – uma música suave e melancólica, mortal e cheia de vida.
E lá fora, fora do amor e da escuridão de uma casa povoada de gatos, há a morte que mais tarde irromperá portas a dentro, impiedosa e brutal; há o terror anunciado pelo príncipe de calicatri, mensageiro do amor e da morte, da amizade e do terror. E há o resto do mundo: o medo, o sofrimento e a solidão que estão por todo o lado e se juntam no peito das pessoas.
Perante o horror do mundo, o escritor começa por se refugiar em si mesmo, no amor que traz no coração e na mão que trema ao escrever.
De repente um terror surreal invade as palavras; um vento tempestuoso, avassalador, toma conta das frases. A violência mais extrema, descrita com crueldade, sem piedade do leitor (porque a compaixão não existe no mundo); corpos decepados, corações arrancados à espada, ouvidos e olhos trespassados por agulhas… o leitor, aterrorizado, não consegue não consegue parar de ler porque o sangue é tão forte como o amor.
Os soldados matam e torturam como se cumprissem uma espécie de rito trivial, um parêntesis nas suas vidas, que é igual à de todos os outros. Matam porque a vida deles é matar. Violam as escravas porque a vida deles é violar.
As páginas avançam e o sofrimento atroz ultrapassa todas as fronteiras do suportável, dando lugar ao desespero de existir. O terror incendeia as páginas, apenas interrompidas por citações da Bíbila, do Livro dos Salmos, momentos de solidão extrema… nada impedirá que matem a música, torturem e matem as crianças e decepem os escritores.
Nada impedirá a escuridão.
E depois de tanto sangue, sofrimento, terror e escuridão, é possível encontrar um final encantador neste livro? Sim. 

terça-feira, 17 de agosto de 2010

O Hóspede de Job - José Cardoso Pires

Há dias escrevia alguém que, com a morte de Saramago morreram os escritores politicamente comprometidos. Santa ingenuidade! Temo é que com a morte de Saramago e após a morte de Cardoso Pires esteja a morrer o talento e a sensibilidade humana neste país de curta memória.

Para compreender o espírito deste livrinho genial é importante saber-se que foi escrito nos anos 50, em memória do irmão mais novo do autor, que morrera num acidente militar.
Importante também salientar que é a primeira obra do autor. E que obra! É maravilhoso verificar como, com menos de 30 anos, Cardoso Pires revelava já um talento literário notável, ultrapassando largamente a influência neo-realista que é patente no livro.
Algures no Alentejo, o livro inicia-se num quartel inútil, com uma conversa inútil entre soldados inúteis. Uma conversa sem sentido, alimentada pelo vinho que engana o tédio e a inércia dos soldados. Soldados que são homens roubados à planície, braços subtraídos às searas, enganando o tempo sob a luz obscura de uma garrafa…
Fora do quartel reina o desespero de um povo esfomeado sob o sol escaldante dos campos de trigo. E a GNR. E a opressão sobre a revolta silenciada.
Multidões de camponeses percorrem os caminhos do desespero. Sem pão nem paz deambulam pela planície em busca de trabalho, perseguidos pela Guarda, como ladrões, como cães escorraçados pelos Senhores da terra que não é de quem a trabalha.
A Guarda e a Tropa sem guerra desprezam os camponeses; até a água lhes roubam. “Para a Guarda isto é a guerra”, diz o Tio Aníbal. É o absurdo de uma guerra em tempo de paz.
Os soldados estão em manobras, divertidos como crianças que brincam com brinquedos caros. E a gente miserável foge da fome.
A sacristia da capela, transformada em prisão é testemunha fria dos tempos; o povo já não reza… “uns vencem os pecados com rezas, outros com a liberdade – era a lei geral, e ambos prestam contas, à sua maneira” (página 132).
Gallager, o especialista americano em guerras e armamentos é o hóspede de Job. Um hóspede que não foi convidado e que se serve da miséria do povo. Ele é a arrogância entre os humildes; a força no meio dos impotentes; o poder entre os deserdados da fortuna.
E João Portela é o sacrificado no altar do poder tirânico de quem reinou com um trono assente sobre por miséria do povo.
Um livro fantástico! Triste como a vida do heróico povo alentejano, vítima incompreendida de uma estrutura política só comparável às mais abjectas ditaduras do terceiro mundo.
Um livro que deve ser lido, relido e divulgado. Para que a memória não se apague nunca.
Imagem retirada daqui.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

As Cidades Invisíveis - Italo Calvino

Mais de cinquenta cidades, imaginadas em tempos indefinidos, num espaço ilusório algures no oriente, preenchem uma viagem onírica que só a mente criativa de um génio podiam fazer nascer.
Kublai Khan, neto do grande Gengis Khan, governava um dos maiores Impérios de todos os tempos: o império Mongol, que se estendia do Irão ao extremo oriental da China, desde a Índia até à Rússia. Mesmo assim, Kublai Khan precisava de Marco Polo para o deliciar com maravilhosas descrições de outras cidades, outros povos, outros sonhos. É do diálogo entre os dois que se compõe este livro, uma obra completamente diferente de tudo quanto se escreveu até hoje.
As cidades descritas por Calvino na voz de Marco Polo são metafóricas, simples pretextos para falar e reflectir sobre a humanidade, sobre sentimentos, sensações e sonhos.
Todas as cidades têm nomes de mulher, para que fique claro que tanto se pode falar delas como de almas e corpos. As descrições partem, obviamente, do famoso livro de Marco Polo, “O Livro das Maravilhas” mas ultrapassam em muito as fantásticas descrições do genovês.
A linguagem de Calvino é profundamente poética, embora sucinta e clara. O seu estilo envolve um toque de surrealismo que lhe dá um tom admirável do fantástico.
A figura de Kublai Khan neste livro é profundamente simbólica: ele representa os limites do poder e do conhecimento; por mais territórios que domine, Khan nunca dominará tudo; por mais terras e gentes que conheça, nunca saberá tudo. Por outro lado, Marco Polo, que parece ter visto tudo o que havia para ver, precisa do sonho e da imaginação para descrever as cidades e as gentes. Porque as cidades não são apenas os pontos do mapa. São pessoas. São vidas que sentem, amam e odeiam, vivem e morrem. No entanto, as cidades imortalizam as pessoas que nelas vivem ou, pelo menos, as suas almas e os seus sonhos.
Ler Calvino é passear nas letras; nele não há uma história contada; há múltiplas histórias que se cruzam no único lugar onde tudo faz sentido: a imaginação de quem lê.
(excelente apresentação gráfica desta edição da Teorema, com a reprodução do famoso quadro de Bruegel, A Torre de Babel).

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Daqui a Nada - Rodrigo Guedes de Carvalho

“Daqui a Nada” foi a primeira experiência literária de R. Guedes de Carvalho. Poucos saberão que antes de ser o excelente jornalista que todos conhecemos, já foi era escritor. Na verdade, este livro foi escrito em 1983, quando o escritor tinha apenas 20 anos.
Esta informação é importante porque, na verdade, o livro revela uma clara ingenuidade literária, que o próprio escritor reconhece.
Desde o início é clara a influência de A. Lobo Antunes, tanto no estilo como na temática. No entanto, o enredo demasiado simples e linear deste livro só poderia ser compensado com uma escrita genial como a de Lobo Antunes. Não é o caso, obviamente. Desde o início o autor adopta um tom melancólico, uma tristeza persistente que dá ao livro um aspecto algo monocórdico. A qualidade literária de Guedes de Carvalho está lá. Escondida, velada sob uma escrita criativa mas enfática; elaborada mas algo barroca.
Um homem, duas mulheres e uma jovem de 22 anos – juntos e terrivelmente solitários – a solidão primordial. Inexplicáveis ondas de tristeza bloqueiam a comunicação entre os personagens; poços de solidão, incapazes de amar porque não se tocam, não se conhecem.
Pedro fora feito prisioneiro em Angola, em 1971. Foi dado como morto e a esposa, Marta, acaba por envolver-se com um amigo de Pedro. Este não lhe perdoará. No seu regresso, refugia-se de Marta e da filha, Rita, envolvendo-se mais tarde com Paula, mais nova que ele. Paula é a única personagem “positiva” da estória. Mas permanece longe do centro da cena. Pedro é uma alma torturada pela guerra colonial mas as suas guerras interiores já existiam antes; talvez aquela tristeza primordial, inexplicável… talvez aquela solidão fosse a sua essência.
Mau grado a ingenuidade e o aspecto exageradamente dramático do livro, Rodrigo Guedes de Carvalho, com 20 anos, revela já uma notável sensibilidade em relação ao sofrimento humano, nomeadamente às dramáticas consequências da Guerra Colonial. Uma sensibilidade que certamente terá contribuído para que ele se guindasse à grande figura do jornalismo português que é actualmente.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

A Montanha da Água Lilás - Pepetela

Decididamente, há magia na escrita de Pepetela. Ler este escritor angolano é uma tarefa que não cansa. A sua escrita tem o perfume da terra de África e a poesia de um povo mártir mas também maravilhoso.
A montanha da Água Lilás é conto magnífico, sobre uma estranha comunidade de animais falantes, os Lupis, que habitam uma montanha mágica onde nasce água lilás. Ela será o tesouro dos lupis e a sua perdição.
Trata-se de uma metáfora sobre África. O mundo maravilhoso da natureza, maculado pela ambição desmedida. A desgraça de um povo que quis usufruir de todas as maravilhas que a mãe natureza lhes proporcionou mas que eles se encarregaram de desbaratar.
Destaque para as ilustrações desta edição da magnífica colecção Biis. Mais uma vez está de parabéns a Leya pelo excelente serviço que está a prestar à literatura lusófona, editando preciosidades como esta a preços muito acessíveis.
Este conto, para todas as idades lê-se de um fôlego. Não se consegue parar. Fascinante.
Imagem retirada daqui:
Trata-se de um excelente site sobre o mundo da língua portuguesa.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Quando Menos Esperamos... - Sarah Dunn

Quando comprei este livro procurava apenas uma coisa bem leve para este Verão monotonamente tórrido. Uma coisa light, mesmo. Enganei-me. Comprei uma obra que me surpreendeu. Talvez a maior surpresa literária do ano.
Quando levei o livro para casa, ia receoso: “levarei eu aqui mais uma mensagem moralista tipicamente norte-americana do tipo A Cabana”? Nada disso. Correndo o risco de algum exagero, afirmo mesmo que há muito tempo procurava uma obra assim: que encarasse a vida como ela deve ser vivida: leve, sem o peso atrofiante do moralismo. Uma obra que mostrasse que é possível ser feliz sem andar desesperadamente à procura de algo. Que é possível ser feliz sem um guião. Uma obra que reconhecesse que um código moral rígido, pré-fabricado, pode ser uma teia onde se enreda a vida, atrofiando-a.
Este livro é como a vida (tal como ele merece ser vivida): leve e despretensiosa. Sarah Dunn nunca será prémio Nobel porque escreve simples, sem ambições intelectuais profundas, sem reflexões filosóficas, sem considerações políticas, sem análises psicológicas complexas. Os seus personagens são gente simples, com problemas reais como os nossos. Não morrem de amor nem enlouquecem de paixão. Vão ao psiquiatra como quem vai ao supermercado buscar legumes para a sopa. Como o norte-americano comum dos tempos que correm.
Depois há o sentido de humor: um traço contínuo que se mantém ao longo de todo o livro. E personagens fascinantes: Amanda tem um cão de água português, um casamento feliz com Mark e um flirt sem dramas com Jack, alimentado pelo prazer do risco.
Holly, 35 anos, divorciada, escritora fracassada, tem um cão canceroso mas feliz porque não tem consciência do cancro e assim esperará pelo seu momento; pelo seu caminho. Holly escreve guiões para séries menores, do canal Nicklodeon. Após inúmeros “casos” falhados, enamora-se de Jack. Advirá daqui um drama e conflitos profundos? Não, é apenas a vida. São apenas os caminhos normais.
Leonard, gay, toxicodependente, guionista fracassado e ex-milionário, é um infeliz, dramaticamente excluído, condenado à perdição? Não, é um ser humano como nós, à espera do momento. E ele surgirá, apresentando-lhe um caminho.
Catherine namora há um ano com Spencer. Descobre que ela a traía com uma “maluca” e com várias outras. Será o fim da linha? Não. Apenas linhas curvas do destino.
Depois há Betsy, que nos conduz ao ponto mais alto do livro (a meu ver): ela aproxima-se dos 40 anos. Desespera. Só, sempre só, com muitas paixões falhadas e um emprego sem ambições. Conhece Lennie. O Grande Lennie! O homem que lhe mostrou que não há problema nenhum em ser vulgar! Diz ele que o grande problema das pessoas é terem egos demasiado exigentes. Bravo, Lennie. Para Betsy, ele é a paz. Finalmente!
Por vezes seguimos caminhos que nos parecem os mais lógicos, os mais racionais, apenas porque esses são os caminhos que qualquer pessoa racional seguiria. E esquecemos que o nosso caminho não tem de ser o mesmo da maioria. O nosso caminho é sempre o caminho certo.
O moralismo de Holly cai por terra quando vai descobrindo que os caminhos que as pessoas seguem não são minimamente influenciados por essas ideias que por vezes lhes queremos impor. Spencer, numa frase banal, resume tudo: “temos de dar um desconto às pessoas”. Esse é o problema do moralismo – não encarar as pessoas como seres autónomos, capazes de seguirem os seus próprios caminhos. 
Imagem retirada daqui.

sábado, 7 de agosto de 2010

O Homem do País Azul - Manuel Alegre

Constituído por dez pequenos contos, O Homem do País Azul foi publicado pela primeira vez em 1989, 15 anos após o 25 de Abril. Na escrita de Alegre estão ainda bem patentes as memórias da luta contra o fascismo, a guerra colonial e o exílio. Mas como é peculiar na prosa do maior poeta português da actualidade, a escrita torna-se uma viagem ao interior de si mesmo, deixando bem vincadas várias marcas autobiográficas. Assim, o primeiro conto, que dá título à obra é uma reflexão sentida e profunda sobre o exílio de Alegre durante a ditadura. A questão essencial é esta: pode uma causa individual substituir e anular um ideal de liberdade individual? Manuel Alegre, um herói da liberdade, fala-nos de um revolucionário enigmático, Vladimir, que é o símbolo da liberdade individual e, ao mesmo tempo, universal. Ele é a síntese da liberdade, a voz da esperança, a voz de Abril.
Em todos os contos parece haver um denominador comum: a procura incessante do destino humano, de um sentido para as lutas interiores e exteriores que todos os seres humanos empreendem nesse desafio a que chamamos vida; como se todos procurássemos uma pedra, como o personagem do conto “A Pedra”, um simples calhau, uma lápide ou um padrão das descobertas onde um nome se revelasse. Mas, como o herói do conto, muitas vezes acabamos por encontrar, após esforços desmedidos, nomes escritos ao contrário, no outro lado da pedra. Alegre explica: é que “todos os nomes estão escritos no avesso de uma pedra virada para o esquecimento”. Talvez o sentido esteja sempre escondido do outro lado.
Um outro denominador comum na escrita de Alegre é a fuga ao conformismo. No conto “A grande subversão” estabelece-se um curioso paralelo entre a rotina de uma família burguesa e a cadência monótona do conformismo perante o regime salazarista. Os rituais domésticos (da infância de Alegre?) pareciam marcar o ritmo triste e monótono dos dias da ditadura. Até que um gesto, uma fuga, um movimento de desordem criassem o caos da libertação. 

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

O Outono do Patriarca - Gabriel Garcia Márquez

O genial escritor colombiano afirmou um dia que este livro era uma transgressão total da gramática. Com claras influências (a meu ver) de William Faulkner, Marquez assume um estilo absolutamente inovador para a época, não usando parágrafos e multiplicando os narradores, o que dá à leitura um ritmo alucinante, quase impedindo o leitor de pausar a leitura.
Trata-se de uma obra marcante na literatura sul americana: um ditador, general sem nome, algures nas Caraíbas governa mergulhado na ignorância, cultivando o obscurantismo. É, obviamente, uma caricatura, mas estão ali todos os sinais marcantes dos modernos e antigos déspotas.
Ler este livro é como caminhar numa paisagem fantástica, imaginária mas que a todo o momento nos evoca situações bem reais, sinais de um mundo louco dirigido por generais caducos e dementes; um mundo real como este em que vivemos.
Imagine-se um palácio de governo herdeiro do passado colonial algures nas Caraíbas. As vacas e as galinhas, que o general presidente alimenta e cuida como se esse fosse o mais nobre dos seus deveres, povoam o palácio, distribuindo pelos aposentos os seus sagrados dejectos e assomando mesmo às janelas e varandas. A bosta de vaca seca é usada pelo general para fazer fogueiras que aquecem o palácio.
O general presidente canonizou a mãe por decreto; só a morte da mãe lhe amoleceu o coração.
Morreu algures entre os 107 e os 232 anos (nunca se soube ao certo). Teve uma terceira dentição, calcula-se que por volta dos 150 anos de idade.
Vendeu o mar aos americanos que o levaram para o Arizona.
Teve mais de 500 filhos, todos nascidos aos sete meses de gestação. A um deles nomeou-o general ao nascer.
A mãe afirmou um dia sobre ele: “se soubesse que o meu filho vinha a ser Presidente da República, tinha-o mandado à escola.”
O general presidente não pode ser coração mole. Ele tem de se manter acima de todos os mortais, seguindo à risca o conselho que alguém lhe dera em jovem: “o coração é o terceiro colhão”.
Embora usufrua de centenas de concubinas, que possui sempre sem tirar as botas nem a roupa, só uma paixão o dominou: Manuela Sanchez.
Nunca precisou de ministros para a governação, com excepção do Ministro da Saúde, seu médico pessoal. Mas nem mesmo este alguma vez o conseguiu curar de um terrível e descomunal testículo herniado. Mandou assar o Ministro da Defesa, seu homem de confiança nos primeiros tempos de governação, servindo-o com um raminho de salsa na boca num jantar de cerimónia.
Em suma: um livro cheio de humor, um marco histórico na literatura mundial. 

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Anjos e Demónios - Dan Brown

Neste livro, Brown imagina um atentado contra o Vaticano pretensamente perpetrado por uma organização antiga e que se julgava extinta, os Illuminati, que reunia cientistas perseguidos pela Igreja desde o século XVI. Os seus primeiros grandes mestres teriam sido Galileu e o grande escultor do Vaticano, Bernini. O método utilizado para ameaçar o Vaticano de destruição total (após terem assassinado o próprio Papa) seria a antimatéria, uma substância com capacidade destrutiva centenas de vezes superior à energia atómica. Brown não consegue escapar ao cliché (o certo é que sem ele dificilmente obteria sucesso), escolhendo um herói super inteligente que resolverá todo o enigma. Para evitar a destruição total da Cidade de Deus, o director do CERN (centro europeu de investigação cientifica onde se desenvolvera a investigação) apela a um especialista em simbologia religiosa para resolver o problema (Robert Langdon). Ele será o herói do livro, juntamente com (o cliché total) uma bela mulher (Vittoria Vetra), filha e parceira de investigações do cientista assassinado pelos Illuminati e que fabricara as primeiras amostras de Antimatéria. É a maior dessas amostras que os assassinos colocam no Vaticano e que os nossos heróis vão tentar recuperar.

As relações entre a ciência e a religião são tema de discussão e de atritos há milhares de anos. A luta continua e continuará. Durante séculos, a Igreja Católica recorreu a meios pouco piedosos para tentar afirmar a sua supremacia na busca da verdade. Muitos foram os cientistas sacrificados nos altares, masmorras e fogueiras. Galileu é apenas o mais visível dos tenebrosos processos da Inquisição. É este o tema que, com coragem e conhecimento de causa, Dan Brown aborda.
Em primeiro lugar, devo dizer que, a julgar por este livro (o único que li de Brown) continua a ser muito despropositada e exagerada a polémica movida por alguns meios católicos. Alguns dos argumentos que defendem a Igreja Católica nesta querela com a ciência, são muito bem defendidos e fundamentados por Brown. No entanto, os maus católicos existem e seria disparatado alguém ter a veleidade de o negar. Assim como os maus cientistas. Não é apenas à Igreja Católica que Brown aponta o dedo acusador: é às Igrejas, à ciência, à Comunicação Social e à maldade humana em geral. Ao Satanás que existe em todo o ser humano.
Para lá das querelas religiosas, há três verdades a meu ver inegáveis na escrita de Brown: a sua infinita imaginação, a capacidade de manter um nível inimitável de suspense e conhecimentos profundos de História, de Física e do funcionamento das mais secretas estruturas da Igreja.
A criatividade de Brown é insuperável: quando o leitor julga ter descoberto o “infiltrado” ou o “traidor”, Brown encarrega-se de o surpreender mostrando-lhe como a pistas que seguira eram falsas. A surpresa do leitor só é superada pela surpresa seguinte. E é assim até ao final do livro: as revelações sucedem-se de forma cada vez mais incrível mas raramente descambando na inverosimilhança que por vezes perturbam este tipo de narrativas. Essas anomalias raramente acontecem em Brown: todos os acontecimentos acabam por encaixar numa lógica perfeita.
Trata-se de uma excelente leitura para férias, desde que a leitura seja acompanhada por uma boa dose de espírito crítico e um certo desprendimento em relação a preconceitos e pré-conceitos. Não fossem os inevitáveis clichés e estaríamos perante uma obra-prima da literatura de suspense. Mesmo assim, Brown fica bem perto desse estatuto.
*Tom Hanks e Ayelet Zurer como Robert e Vittoria no filme de Ron Howard (2009)

domingo, 1 de agosto de 2010

A Melhor Leitura do Mês

Julho foi um excelente mês, tanto em termos de quantidade (14 livros lidos) como de qualidade.
Mau grado a terrível concorrência, o vencedor é o único dos 14 livros que considero uma verdadeira obra-prima. Um livro que está na História da grande literatura universal. And the winner is...

Aí está: O Grande Gatsby, de ScottFitzgerald - um livro fabuloso: nota 10 em 10.
De seguida, sete livros que considero de qualidade excepcional mas sem o fôlego e a qualidade literária do Grande Gatsby
A História Secreta – Donna Tartt
Olhai os Lírios do Campo - Erico Veríssimo     
O Templo Dourado - Yukio Mishima     
Coração das Trevas - Joseph Conrad 
Flashman, a Odisseia de um Cobarde – George MacDonald Fraser
Contos Russos – Dostoievski, Andréev, Tolstoi  
A Conspiração Contra a América – Philip Roth