sábado, 31 de julho de 2010

A Varanda do Frangipani - Mia Couto

A poesia deste livro nasce logo no título: a “varanda” é Moçambique, na expressão de Eduardo Lourenço, lembrando o aspecto geográfico do país, debruçado sobre o Oceano Índico. O frangipani é uma árvore de Moçambique que tema a característica peculiar de perder toda a folhagem no momento da floração. É uma árvore que morre e renasce; ou apenas uma árvore que, como o país que Mia Couto lamenta, perde a memória?
Sepultado sob o frangipani, Ermelindo Mucanga não encontra a paz porque não fora despedido da vida como a tradição mandava. Por isso consultou o pangolim, animal escamoso, seu companheiro subterrâneo, que o aconselhou a regressar aos vivos para morrer de novo. Para remorrer e assim ser sepultado em paz.
Ermelindo encarna então um polícia encarregado de investigar um assassinato num asilo de velhos. Aí ele testemunhará os maus tratos e a agonia daqueles velhos que são a tradição, a alma de Moçambique, que os políticos e o povo desprezam.
Mia Couto tem magia nas palavras. Este é talvez o livro mais singelo e mais objectivo deste magnífico escritor moçambicano. Numa prosa, como sempre, marcadamente fiel à alma e ao falar de Moçambique, Mia Couto presenteia-nos com uma linguagem poética que nos faz muitas vezes pausar a leitura para sorrir, reler, fechar os olhos e saborear as palavras.
No coração da mensagem está a tradição, os antigamentes onde tudo começou. Uma tradição espezinhada pelos homens e pela guerra, ao ponto de Ermelindo hesitar se quer regressar aos vivos: “Como está a minha terra, não me apetece”…
Na terra dos homens, os velhos vão morrendo; e não é apenas de velhos corpos que se trata; é a tradição que morre, é a alma do povo, assassinada por guerras e ódios. Marta Gino, a enfermeira que dorme nua sobre a terra, sentencia: “Se fôssemos seguidores da tradição, sabe o que fazíamos? Devíamos fazer amor”…
Gina, assim como os velhos do asilo, guardam o segredo que ninguém parece querer conhecer: os homens, a terra, as pedras, as árvores, os animais, todos são irmãos. Porque no princípio, era tudo homens; até que os deuses acharam que todos eram muito iguais; e então transformou alguns em pedras, animais, árvores, etc. É por isso que somos todos parentes de tudo o que existe na terra… mas os homens não querem saber disso… são egoístas e violentos. E a alma de Moçambique entristece como aqueles velhos que vão perdendo o riso, depois os sonhos e por fim as palavras: “é essa a ordem da tristeza”…
Ermelindo volta para o coração da terra. A terra de onde tudo nasce; a terra que nenhuma guerra destrói. A Terra que vive no coração dos homens.
No final, da terra onde se enterram as armas, voaram andorinhas…
Imagem retirada daqui

sexta-feira, 30 de julho de 2010

A História Secreta - Donna Tartt

Desde que li esta opinião fiquei ansioso por ler este livro. E as expectativas, altíssimas, com que parti para a leitura foram correspondidas. Mau grado as suas setecentas páginas, é um livro que se lê de forma muito agradável, cheio de suspense e mistério. No entanto, não se pense que é uma leitura inócua: o tema abordado é inquietante e deixa-nos a reflectir sobre a facilidade com que se comete um crime e sobre as consequências que um acto criminoso acaba por ter na vida de um ser humano. Considero este título algo pobre, demasiado simplista para o alcance da obra (note-se que a tradução respeita o título original).
Seis estudantes de Grego, numa universidade do Vermont, entregam-se ao estudo exaustivo e quase fanatizado da antiguidade grega. A civilização helénica, a sua língua e filosofia invadem as mentes dos estudantes levando-os à encenação de um ritual dionisíaco de onde resulta a morte, aparentemente acidental, de um homem.
Se grandes escritores e filósofos valorizaram o conhecimento como meio de alcançar a felicidade, outros o encaram como fonte de suplícios. É esta a linha que este romance parece seguir: o conhecimento, descontrolado e fanatizado, conduziu estes jovens a uma dramática alienação dos seus espíritos.
A parir daí o remorso e as convulsões da consciência dos seis jovens conduzem-nos a uma espiral de loucura que desembocará num outro crime, precisamente o assassinato de um dos jovens pelos seus companheiros. Este desenlace, anunciado no início da obra está longe de ser o ponto final na estória. Os acontecimentos inesperados sucedem-se e, num ritmo crescente, os cinco jovens encaminham-se para atitudes cada vez mais estranhas mas perfeitamente explicáveis pela admirável análise psicológica de Donna Tartt. O desregulamento emocional e psicológico dos personagens vai muito além do remorso: trata-se de uma inquietação que os persegue como se as suas vidas ficassem condenadas a conviver para sempre com os fantasmas vivos das vítimas. Chegámos ao final do livro com a sensação de que as vítimas não são apenas os que morreram mas também aqueles que mataram.
Já ouvi mais que um criminalista afirmar que qualquer um de nós, qualquer ser humano, é capaz de matar. Isto, evidentemente, em determinadas circunstâncias e perante determinadas motivações. E a naturalidade com que surgem estes crimes, a forma lógica como são apresentados leva-nos a pensar isso mesmo: chaga-se a um determinado ponto em que o assassínio parece ser a única saída lógica para aquelas situações. É isto que inquieta o leitor deste livro: a naturalidade com que se mata e a capacidade que o assassino adquire de se alhear de quaisquer consequências para terceiros.
Um livro brilhante pela emoção mas também pela capacidade de desassossegar o leitor. Divertir e desassossegar, ao mesmo tempo: eis o que só os génios conseguem. Tartt conseguiu.

Imagem retirada daqui

quinta-feira, 29 de julho de 2010

A Trança de Inês - Rosa Lobato de Faria

A criatividade e a imaginação de Rosa Lobato de Faria parecem não ter limites. Este é um livro lindíssimo. Pedro é um empresário de sucesso que se perde de amores por Inês. Mas este amor está condenado à tragédia. O seu destino será o da loucura, como diria o comum dos mortais. Ele, o louco, é Pedro Rey no século XXII mas também Pedro o Cru no século XIV. Três tempos, três mundos, três destinos, um único amor. Universal. Sem tempo nem medida.
Com assinalável rigor histórico, Rosa L. Faria conta-nos a sempre apaixonante e trágica história de Pedro (Príncipe e depois Rei de Portugal) e Inês de Castro. Transpõe a história para a actualidade e também para o futuro para nos relembrar que o amor e o ódio são intemporais.
Por isso, este é um livro que nos pode fazer sonhar mas também chorar; é um testemunho das emoções mais extremas que um ser humano pode viver; é um testemunho também da maldade, da insensibilidade que assola alguns seres humanos, sempre prontos a defender a mais hipócritas concepções de moral e normalidade, fazendo do amor uma manifestação de loucura.
Se Dostoievski teorizou como ninguém o conceito literário de “loucura normal”, Rosa Lobato de Faria transporta-o para a realidade. Ao ler este livro somos forçados a ver e viver a tragédia. A sentir as emoções à flor da pele. A sofrer com Pedro, a chorar as suas lágrimas.
É um livro enternecedor. O estilo simples e objectivo é um dos grandes trunfos desta escritora; não há descrições inúteis nem reflexões supérfluas e maçadoras com que alguns escritores de sucesso gostam de adornar a prosa. Uma escrita arejada, desempoeirada, simples e bela como a vida.
Talvez por ter sido guionista para séries de televisão; talvez por ter começado bastante tarde a escrever romances; talvez por falta de divulgação, o certo é que Rosa Lobato de Faria ainda não tem a consagração pública que a sua obra merece. Os seus livros são curtos, incisivos, directos, mas tremendamente criativos. Penso que ela merece um lugar de destaque entre os melhores escritores portugueses de sempre. E é uma pena que as nossas televisões só se recordem dela como actriz de séries e telenovelas de qualidade muito duvidosa.
Imagem retirada daqui.

Flashman – A Odisseia de um Cobarde - George MacDonald Fraser

O subtítulo da obra dá o tom e encarrega-se de, por si só, nos prenunciar uma magnífica leitura de férias. É um livro divertido, muito bem-humorado, repleto de peripécias que envolvem o leitor numa alucinada viagem desde Inglaterra às profundezas do Afeganistão.
O primeiro grande mérito deste livro é a leveza da história, que não nos exige grande reflexão. A leitura é fácil e fluida, ideal para fazer descansar as células cinzentas.
Henri Flashman é um aluno falhado, um boémio que acaba expulso da escola por embriaguez. Aldrabão filho de aldrabão, desde cedo se habitua a enganar tudo e todos. O seu lema é fingir sempre. Fingir mas também enganar, roubar e fugir. Aliás, a grande especialidade de Flashman, como distinto militar, é fugir cobardemente em qualquer situação de perigo mas, graças a uma sorte extraordinária e a uma habilidade saloia, acaba sempre por ser bafejado pela sorte, de tal maneira que se torna o maior dos heróis do exército inglês.
Inicialmente, ele é apresentado como o anti-herói. Ele é capaz de cometer actos tão abomináveis como esvaziar o revólver do adversário de um duelo ou envolver-se com a própria amante do pai. Mas, à medida que se torna um herói da guerra, ele vai-se tornando, na mente do leitor, um verdadeiro herói, de tal maneira somos levados a “torcer” por ele nas encrencas em que se envolve. Ele é o maior dos aldrabões, mas é um aldrabão divertido e optimista. Um aldrabão feliz.
Em suma, trata-se de um livro que nos encanta pelo aspecto juvenil, leve e despretensioso de um grande romance de aventuras. No entanto, também nos ajuda a compreender melhor os meandros desse grande império inglês que, em pleno século XIX dominava boa parte do mundo. Neste caso, trata-se da Índia, ou melhor, do império asiático que os ingleses tentavam estender desde a Índia até ao profundo e enigmático Afeganistão.
Uma excelente tradução e uma capa apelativa e muito bem conseguida, completam o ramalhete de um magnífico entretenimento para férias.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Contos Russos - Dostoiévski, Andréev, Tolstói

Quem está habituado a confrontar-se com as sofridas personagens de Dostoievski, com os seus profundos dilemas morais, com as culpas e redenções de que são feitas as suas vidas, não deixa de ficar absolutamente surpreendido com a natureza satírica e cómica do primeiro conto desta obra: O Crocodilo, um conto infelizmente incompleto de Dostoievski.
Trata-se da história fantástica de um homem que, num centro comercial, é engolido inteiro por um crocodilo em exposição. Aquilo que à partida seria uma grande desgraça é descrito da forma mais surrelista que se possa imaginar. O “engolido”, que permanece vivo, vai falando para o exterior e em breve se apercebe que está numa situação bastante cómoda, da qual pode tirar grandes dividendos, nomeadamente sob a forma de dinheiro e fama. À sua volta, muitos procuram explorar ao máximo a situação. E o seu único amigo, aquele que o tenta libertar, vai esbarrando com uma tremenda máquina burocrática. Os burocratas chegam mesmo a equacionar a hipótese de considerar lesado o dono do crocodilo porque o homem se meteu lá dentro, invadindo propriedade privada.
Também a situação profissional do “engolido” é muito dúbia: estará ele prisioneiro, ou em férias, ou em serviço?
Mas à medida que o tempo passa vêm ao de cima as evidentes vantagens económicas de manter o homem na barriga do animal: um crocodilo com um homem dentro rende muito mais dinheiro em qualquer exposição. Além disso, o próprio se dá conta que naquele estado poderá ser muito útil à humanidade, estudando o crocodilo por dentro e dedicando-se à reflexão. É certo que seria considerado, por alguns, como um mandrião. Mas não são mandriões os grandes homens da governação e dos negócios?
O segundo conto, Lázaro, de Leonid Andréev, é uma bela e fantástica reconstituição da vida de Lázaro depois de ter sido ressuscitado por Jesus Cristo.
Lázaro venceu a morte, diz a Biblia. Andréev diz-nos que ele a transportou consigo depois de ressuscitado. Por todos os sítios onde Lázaro passasse, os homens que o olhassem nos olhos, comungariam dessa morte. E Lázaro, com a morte no corpo e na alma, espalharia a mais profunda escuridão… A morte, afinal, era invencível. Nem a ressurreição teria sido capaz de a vencer.
A morte é também o tema do terceiro e último conto: A Morte de Ivan Illitch, de Leon Tolstoi. Já escrevi em vários sítios que este conto, ou pequeno romance, é uma obra-prima da literatura mundial. É uma visão absolutamente sublime da morte. O comentário a esse conto encontra-se aqui.

terça-feira, 20 de julho de 2010

O Marinheiro que Perdeu as Graças do Mar - Yukio Mishima

O cenário é tradicional: um rapaz de 13 anos, Noboru, enfrenta os ciúmes provocados pela relação da mãe, Fusako, com um marinheiro, Ryuji. Mas por detrás deste cenário (ilusório e superficial) esconde-se um mundo inteiro de contradições espirituais, um cosmos complexo que o rapaz vai construindo interiormente, por oposição ao mundo real e um quadro simbólico em que o mar (que Ryuji transporta no sangue)  funciona como símbolo do poder maior, o poder que destrói.
Como se vê, a ideia-base é semelhante à de O Tempo Dourado, obra maior de Mishima: o confronto do Eu interior com o mundo e a ideia de expiação do mundo pelo poder do Eu. Só o poder que destrói é criador. No entanto, o confronto de Ryuji com o amor carnal é o pólo oposto ao do poder – é o lado fugaz e mesquinho do ser humano.
O homem tem como obrigação expor o seu poder sobre o mundo; a violência torna-se justificável perante a mesquinhez, a ignorância e o egoísmo do ser humano. Matar é o acto supremo de exercício do poder; a morte é o único acesso à perfeição.
Tal como em O Templo Dourado, Mishima exibe o seu impressionante fascínio pelo mar: o mar representa o poder destruidor. “O pavoroso poder do mar”.
Ruyjan, marinheiro que trocou o mar pelo amor, foi despojado do seu heroísmo porque o trocou pela vida na terra. É por isso e não por qualquer tipo de ciúme que Noboru o odeia. A sua morte pode ser a única solução. Sem piedade, porque a piedade é um obstáculo às mentes superiores que Noboru representa. A mulher é o elemento do mundo, é o obstáculo maior a essa glória. A morte, por seu turno, é associada à glória. Porque a glória é amarga.
Esta apologia da violência, do poder e da morte tornam a escrita de Mishima terrivelmente inquietante. Ela só é compreensível à luz dos conceitos de honra do código dos samurais que Mishima respeitará até à morte quando, em 1970 se suicidou cumprindo o cruel ritual japonês sepukku, vulgarmente conhecido por haraquiri.
Uma escrita perturbadora, inquietante mas absolutamente genial pela profundidade de espírito, pela visão clara se bem que radical do destino humano.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

O Templo Dourado - Yukio Mishima

Yukio Mishima é com justiça considerado o mais talentoso escritor japonês do século XX. O meu interesse por Murakami levou-me a tentar descobrir as entranhas da literatura nipónica e não foi difícil descobrir este magnífico Mishima onde Murakami foi certamente buscar uma das suas mais significativas influências.
Este livro, o seu maior sucesso, conta-nos a estória de um jovem que, nas imensas dificuldades que encontrou durante a infância e juventude, encara o templo dourado como uma espécie de sonho, de mundo ideal, que vai norteando a sua vida.
A paisagem natural, deslumbrante e descrita com um fascínio muito peculiar, contrasta com a vida e os sentimentos de Mizogushi: tudo na sua juventude foi catastrófico – o fim trágico do seu primeiro amor, uma mãe que nunca amou, a morte prematura do pai, a miséria material, o contexto trágico da segunda guerra mundial, com a bomba atómica e a derrota do Japão e, acima de tudo, a sua gaguez, que o impedia de ter um comportamento social normal. Tudo era negativo, assustador e trágico. O Templo Dourado era o sonho que alimentava os seus sonhos e a sua imaginação; o seu mundo interior.
Ser solitário era uma fatalidade. E essa solidão conduziu-o a uma vida interior intensa; a hostilidade do mundo não era, no entanto, motivo de infelicidade. A sua solidão e o seu carácter introspectivo davam-lhe uma quase felicidade porque nada pedia ao mundo. A realidade era como era, como tinha de ser e talvez um dia o seu mundo se sobrepusesse a ela… ele não precisava de se transformar para se adaptar ao mundo; todo o seu mundo existia na alma e o sonho era, ao mesmo tempo, o invólucro e o coração desse mundo interior.
Kashiwagi, seu companheiro de escola, com os seus pés chatos, encara a sua imperfeição de forma positiva – como se, sem ela, ele passasse despercebido o que, isso sim, seria trágico. Tem orgulho em que todos olhem para ele, mesmo que essa atenção se deva à deficiência. O amor, por exemplo, levaria a que ele se diluísse no mundo; não é isso que ele quer. “Substituíra o amor pelo desejo, facto que me dera a paz”. Kashiwagi só pode ser feliz se mantiver essa distância em relação ao mundo, essa distância que lhe permite manter uma perspectiva superior em relação ao real.
A morte do melhor amigo de Mizogushi leva-o de novo à mais profunda solidão. Resta-lhe Kashiwagi, aquele que vive segundo o desejo. Este carácter hedonista do amigo, leva Mizogushi e deambular entre o Kashiwagi e o sonho do Templo Dourado – entre os apelos do mundo e o seu imenso eu interior. “O templo Dourado surgiu entre a vida e eu”.
Após, finalmente, entrar para o seminário do Templo Dourado, as aventuras amorosas do Prior e o descrédito que a religião instituída lhe vai provocando, leva-o a fugir do Templo. Foge da impotência que vê em tudo. “Fujo da ideia que tenho de beleza que me amarra, do desleixo, das condições em que vivo, da gaguez…” Mas será mesmo disso que foge? Ele fugiu para o mar. E o mar é poder!
Na fase final do livro, após o regresso ao Templo, ele assume um estado de alma a que nós, ocidentais chamaríamos loucura. O seu Eu interior anseia por assumir um papel de divindade e a remissão do mundo (sintetizado no Templo Dourado) só pode dar-se pela destruição. Na alma de Mizogushi não há lugar para a compaixão. O mundo não a teve por ele; por isso, ele não a deve ao mundo. O mundo e o homem caminham para a destruição e assim terá de ser…
Esta visão apocalíptica do mundo (que tem muito a ver com a terrível derrota do Japão na segunda guerra mundial e que provocou a ruína do seu sistema imperial) surge como o desembocar de todo um caminho em que o Eu se opõe ao mundo, num afastamento progressivo e trágico. A destruição do templo mostraria aos homens que tudo é perecível.
E o mundo não voltará a ser o mesmo quando morrer o imperecível. Quando o Eu assumir a divindade em pleno. Porque todo o homem anseia ser Deus.
 Imagem: o templo budista conhecido como Templo Dourado, no Japão. Imagem retirada daqui.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Uma Cana de Pesca Para o Meu Avô - Gao Xingjian


Este livro é um hino à simplicidade da vida e da escrita, que por vezes teimamos em complicar, talvez porque ainda não aprendemos com os orientais a beleza que há nas coisas simples.

Embora aparentem uma certa desconexão, estes contos complementam-se entre si: a paz e a felicidade de um quotidiano simples, cortado por um certo determinismo trágico; a beleza de um viver natural contrastando com a fatalidade do devir... tudo acontece porque tem de acontecer...

O primeiro destes contos do prémio Nobel chinês dá o tom para toda a obra: a alegria simples de um casal modesto, na visita a um tempo abandonado. Tudo simples, singelo, ingénuo. Ausência de sonhos e ilusões mas também de tristeza e lamentos.
O segundo conto narra a estória de um acidente em que um homem de bicicleta, com uma criança, é atropelado por um autocarro. O ajuntamento caótico de pessoas junto do acidente faz lembrar um formigueiro em torno de um bocado de açúcar. A curiosidade mórbida vai dando lugar a conversas especulativas, a interpretações disparatadas. Toda a catástrofe se transforma numa mera trivialidade e numa ocasião de convívio entre os transeuntes. E persiste a vida monótona de sempre…
Neste conto evidencia-se um certo determinismo: tudo acontece porque tem de acontecer, tudo é banal e inelutável. Tudo poderia ter sido diferente mas a todas as horas há crianças que morrem. Tudo é banal.
A normalidade da morte é também abordada no terceiro conto: o nadador não morre por causa de uma cãibra e de mordeduras de medusa mas bem podia ter morrido. Seria normal… talvez por isso ninguém quis ouvir a sua história.
Nada muda, nada pode ser alterado no conto seguinte: num banco de um parque, ele e ela reencontram-se mas nunca se encontraram; a vida separou-os porque sim. Agora, nada pode mudar porque ninguém muda e ninguém muda ninguém. Observam uma rapariga que chora, noutro banco. Não vale a pena consolá-la. Ninguém consola ninguém: nem elas a ela nem eles a eles próprios. 
O quinto conto, que dá titulo ao livro, é uma obra de arte em termos de criação literária. A nostalgia das recordações de infância, num ambiente bucólico destruído pelo progresso.
A cana de pesca é o símbolo da tradição, do paraíso perdido; o lamento angustiado de um mundo moderno feito de horários e rotinas; recordações de infância destruídas pelo cimento, pela poluição, pelos homens…
A linguagem, belíssima, profundamente poética descreve uma infância triste, em torno de um avô que faz lembrar a pureza da água do rio e o encanto das tradições ancestrais. Este tom assume uma beleza extraordinária ao contrastar com a tristeza das palavras usadas para descrever, de forma pungente, o rio que secou, as árvores que mataram, a aldeia que o progresso destruiu.
O relato da destruição da aldeia é intercalado com um relato de futebol, simbolizando o contraste entre a memória milenar e o presente fugaz, superficial, banal.
O sexto e último conto assume uma forma peculiar. Não é propriamente um conto, uma vez que não há uma estrutura narrativa linear mas sim um conjunto de imagens descritas, de instantâneos. Perpassa neles a monotonia dos dias, na sua beleza calma mas também nas tristezas e amarguras. O mar está sempre presente, constante e calmo, testemunha fiel dos tempos. A poesia do quotidiano. A nudez de uma mulher paira sobre espíritos e corpos. A água é a vida que escorre sobre os corpos. 

O céu é a luz inextinguível.
*Imagem retirada daqui.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Coração das Trevas - Joseph Conrad

Em finais do século XIX Conrad, antes de se tornar escritor, foi um marinheiro polaco (nessa altura sob o domínio da Rússia). Portanto, este livro tem fortes traços auto-biográficos, sendo possível associar Marlow, protagonista deste livro, ao próprio autor.
Isabel Fernandes, no excelente prefácio desta edição (editora Vega) salienta a forte e múltipla simbologia da noite nesta obra, bem como em outras de Conrad. De facto, todo o enredo, toda a viagem fantástica de Marlow decorre entre sombras, escuridão e trevas, dando à obra um notável tom de beleza nocturna, nostálgica e triste.
Marlow é um marinheiro que empreende uma viagem ao interior de África, subindo um rio, entre a tenebrosa selva da África tropical. O objectivo da viagem é encontrar o fantástico kurtz, um homem misterioso que se embrenhara na selva e por lá ficara. Este enredo terá dado p mote ao grande filme de F. F. Copolla, Apocalypse Now.
O pano de fundo deste enredo é a moderna colonização de África, no final do século XIX, por parte (principalmente) da Inglaterra e da França. Época de mudança para a moderna sociedade industrial capitalista, época de charneira, de ponte entre dois séculos e duas mundividências.
Logo no discurso inicial de Marlow é notória a apologia da “missão” civilizadora da Inglaterra, face a África, camuflando (obviamente) o interesse económico na aquisição de marfim e de matérias-primas para as grandes indústrias emergentes do capitalismo triunfante.
Relativamente à visão dos indígenas, que alguns associaram a um certo racismo, penso ser visível alguma influência do Bom Selvagem de Rousseau – indígenas ingénuos embora agressivos na defesa da sua terra, do seu mundo.
 Tudo neste livro é, no entanto, misterioso (impressionante a forma como, ao longo do livro, Kurtz vai sendo apresentado como um ser misterioso) e tenebroso. O episódio do ataque dos indígenas é genial na forma como é descrito, com notável emoção. Conrad consegue criar um ambiente de medo, de imprevisibilidades, transformando a escrita numa teia envolvente, capaz de enredar o leitor numa prisão da qual não consegue, nem quer, libertar-se. Um dos momentos mais dramáticos do livro, quando o homem do leme é atingido pelas flechas dos indígenas, transporta uma tremenda carga simbólica – é a morte do homem que guiava todos os destinos; tudo isto envolto em nevoeiro, sombras e escuridão.
Kurtz, no entanto, continuava a ser a meta, o farol que persiste para lá da escuridão. E continua a envolvência do mistério, com toda a insuficiência de palavras que a realidade impõe, nunca explicando tudo, talvez porque nada é totalmente explicável.
E eis que o mistério maior é desvendado: Kurtz é apresentado. Ele sacrificara a sua vida pelo marfim. Matara pelo marfim. A sua vida, no entanto, realizara-se na selva. Fora dela fica a morte. Misturou-se com ela, diluiu-se nela, como que formando um ser único e indivisível.
À medida que o barco descia o rio, no regresso, a vida de Kurtz “esvai-se rapidamente, vazando, vazando o seu coração para o mar do tempo inexorável” (!). E a escuridão continua medonha.
Kurtz descobrira o horror. Vivera na sombra cinzenta da morte. E tivera algo a dizer: “ele era um homem notável”, conclui Marlow, o narrador marinheiro, alter-ego de Conrad.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Dalí e Eu - Stan Lauryssens

Desde há muitos anos que tenho uma paixão quase obsessiva pela pintura de Salvador Dali. Por isso, quando vi a capa deste livro, como o famoso bigode do grande Mestre catalão, com um título como este, na estante da FNAC, nem pensei duas vezes antes de o comprar. Esta minha atitude que dispensou qualquer hesitação, é explicada pelo autor logo no início do livro, com uma frase de apenas duas palavras: “Dali vende.” A minha compra impulsiva é a prova mais recente desta verdade. E julgo também que foi por isto ser verdade que o autor escreveu este livro.
O livro é, basicamente, uma recriação auto-biográfica. O autor transporta o seu próprio nome para o herói do livro e, ficamos a sabê-lo pelo texto da contracapa, foi ele próprio protagonista de uma história idêntica à que é relatada.
O joven Stan, “fabricante de buracos de queijo belga” depressa percebeu que Dali era um filão. Ou melhor, as obras falsas de Dali. Stan é um aldrabão entre os aldrabões que enchem o mundo da arte. Pior que isso: Dali era, ele próprio, o maior dos aldrabões, ao falsificar os seus próprio quadros, usando centenas de assinaturas diferentes, assinando quadros em branco para depois serem preenchidos com reproduções ou mesmo encomendando milhares de quadros aos seus assistentes para depois se limitar a assiná-los (outras vezes nem isso). Ler este livro é como caminhar em círculos no interior de um manicómio onde todos procuram os caminhos mais absurdos para a sua realização pessoal.
Mas outras aldrabices colossais, a meu ver, preenchem este livro: as do próprio autor, que nos brinda com pormenores escabrosos de uma vida de Dali, num relato em que a sua imaginação terá tido um papel importante.
Dali vigarista, empresários de arte vigaristas, vendedores vigaristas mas… quem aldrabam estes vigaristas? Serão mais honestos os que compram, usando dinheiro ganho em negócios pouco claros? Quem dá uma fortuna por um quadro falso usará apenas dinheiro honesto? E nós, leitores, não entraremos também nesta cadeia de intrujões e trapaceiros? Depois de lermos coisas como esta, vamos aldrabar quem? Talvez os que lêem os nossos comentários ao livro… quem nunca aldrabou que atire a primeira pedra.
Salvador Dali era um louco, todos o sabemos. Obviamente, o conceito de “louco” é relativo e Dali considerava-se apenas… surrealista. No entanto, a sua vida, as excentricidades que este livro descreve e (julgo eu) exagera, fazem dele um verdadeiro louco. Mas um louco pouco saudável, ao contrário daquela loucura que qualquer ser humano procura para ser apenas feliz.

sábado, 10 de julho de 2010

A Conspiração Contra a América - Philip Roth

Muitos apontam Phiilp Roth como um eterno candidato ao prémio Nobel. A verdade é que o seu estilo, a sua capacidade de transformar a linguagem escrita numa forma de vida justificam largamente esse estatuto.
Este livro é uma pérola. Baseado na sua própria experiência como membro da comunidade judaica norte-americana, Roth constrói uma história com traços auto-biográficos que, ao mesmo tempo, marca a literatura contemporânea com uma nova concepção do romance histórico.
Toda a obra é marcada por um esforço de auto-compreensão e de explicação de um dos maiores dilemas morais do século XX: até que ponto a guerra é defensável, perante situações extremas de violência e injustiça.
Um dos aspectos mais notáveis desta obra é a clareza da linguagem: um estilo directo, sem artifícios, simples e objectivo. No entanto, por detrás dessa clareza de linguagem há um mundo complexo de dilemas e de dúvidas. Philip Roth, um miúdo de nove anos, principal personagem desta história, é filho de judeus num bairro judaico de Newark, no início da segunda guerra mundial. Na Alemanha, Hitler iniciara já a sua perseguição aos judeus, com o objectivo macabro de exterminar o povo judeu. Neste cenário, Roth imagina o que seria a América se um simpatizante de Hitler chegasse à presidência. É neste ponto que o autor passa da realidade histórica para a ficção, pintando o quadro de uma América liderada por Lindbergh, um famoso aviador com simpatias nazis, que aqui assume o papel de Presidente dos Estados Unidos da América, derrotando Franklin Roosevelt.
Ao longo da ascensão dos nazis, o leitor vai vivendo a amargura da comunidade judaica e vai sentido vagas de revolta. Ondas sucessivas que se sucedem sem que as anteriores tenham desaparecido.
A ignorância, o preconceito e a maldade que advém desse mesmo preconceito, alimentam monstros que se escondem por detrás de quem acredita nas boas intenções do ser humano. E o leitor, impotente perante a força do mal vai fazendo crescer as ondas de revolta…
Imaginada quanto aos factos, esta história é bem real quanta às atitudes e à maldade humana.
A família do jovem Philip sofre na carne e na alma toda essa maldade, toda a crueldade do preconceito e de alguns interesses cruelmente egoístas.
Perante a catástrofe iminente, a própria comunidade judaica divide-se, tal como previam os planos dos líderes fascistas: uns aceitam a dominação e acreditam, com ingenuidade, nas suas boas intenções, outros opõem-se ferozmente e outros ainda tentam “passar ao lado”, continuando preocupados apenas com a sua vida material. Esta divisão em três facções provoca conflitos graves entre a comunidade judaica, o que vai alimentando ainda mais o monstro. Dividir para reinar ou, neste caso, fomentar o ódio para alimentar o ódio maior. E chegamos assim ao grande motivo de reflexão para todo o mundo em que vivemos. Até que ponto se justifica a oposição à violência, com a violência? Até que ponto podemos confiar numa democracia que pode disfarçar a mais cruel das ditaduras?
Em conclusão: trata-se de uma obra notável como documento de um período histórico que continuará a ser motivo de reflexão e exemplo do pior que a alma humana pode gerar.
Não é um livro que dê respostas; não as poderia dar. Mas é um livro que levanta questões que serão sempre fundamentais para a compreensão do espírito e da vida humana. Talvez a única verdade seja que, como diz Roth, “não podemos fazer tudo certo sem fazer também alguma coisa errada”. 

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Olhai os Lírios do Campo - Erico Veríssimo

"Erico Veríssimo é um dos mais conhecidos escritores brasileiros do século XX.
Faleceu em 1975 tendo publicado mais de 30 livros, entre romances, livros de viagens, biografias, contos e livros infanto-juvenis.
Olhai os Lírios do Campo é um dos seus primeiros grandes êxitos. Publicado em 1938, narra a vida de Eugénio, um jovem nascido na pobreza, que luta pela afirmação numa sociedade marcada pelas ambições materiais. A partir daí, Eugénio travará uma encarniçada batalha entre a ambição pelos bem materiais e a necessidade de repensar a sua própria personalidade, na busca da sua harmonia interior.
O livro inicia-se num tom realista, típico da época, com traços bem nítidos de influência socialista na forma como se debruça sobre as injustiças sociais e as desigualdades. No entanto, desde logo Veríssimo vai mais longe, empreendendo uma viagem ao interior da alma de Eugénio, um ser complexo, perdido entre uma infância miserável, sofrida e uma idade adulta onde vagueia entre um casamento por interesse com Eunice (que lhe deu todos os confortos com que sonhara) e uma vida de médico modesto, ao serviço dos pobres.
Pelo meio, a paixão da sua vida, Olívia, aquela que lhe apontou as estrelas do céu e os lírios do campo, que, no entanto, na sua ânsia revoltada, Eugénio se vai recusando ver.
Todo o livro é a história dessa intensa luta interior, dessa guerra que todos nós travamos entre o material e o espiritual, entre o nosso Eu que se perde constantemente, escondido muitas vezes nos sítios que, de tão óbvios, se tornam improváveis e o mundo lá de fora, que é sempre o mundo para onde olhamos com avidez, o mundo do dinheiro, do poder, da exterioridade.
Para Eugénio, a guerra torna-se insuportável, porque sabe que os Lírios e as estrelas estão ao seu alcance. Sofre porque não resiste à tentação de redimir a miséria com a conquista do poder, com a ganância, a tentação de uma vida fácil. No entanto, a alma de Eugénio anseia por paz; uma paz que ele não encontra no mundo material.
Na infância, Eugénio convive com a miséria de um pai alfaiate pobre, um pai que ele não consegue amar porque o associa à miséria. Daí a humilhação. Na escola, na rua, ele é constantemente humilhado por ser miserável. E a raiva cresce. A pobreza torna-o insensível e egoísta; e os extremos tocam-se: em breve a humilhação se transforma em prepotência, numa ânsia freudiana de superioridade, de afirmação brutal sobre o mundo… um mundo tenebroso, que a mente sofrida de Eugénio vê em construções mentais tenebrosas, cheias de revolta e mesmo ódio…
Eugénio tem vergonha. Vergonha da pobreza, da humilhação e… do pai. É nítida aqui a influência das teorias de Freud, em voga na época. Eugénio ama o pai pela piedade que este lhe desperta, mas detesta-o pela falta de ambição, de orgulho e pela humildade extrema. Durante a adolescência, na rua, Eugénio, junto dos amigos, finge que não conhece o pai. Estas e outras recordações negras marcarão a vida de Eugénio, que o atormentam constantemente.
Eugénio é um ser que pensa. Ou seja, um ser que sofre. Não pára de encontrar contradições: trabalha e estuda para ter um futuro melhor que o dos pais; no entanto, recrimina-se por se achar superior aos pais.
Chegados a este ponto, velhas e profundas questões assolam a mente do leitor:
- É mais revoltante a pobreza causada pela injustiça social ou o desprezo que a sociedade dedica aos mais pobres, vendo-os como portadores de uma espécie de doença contagiosa?
- Perante estas injustiças, valerá a pena questionar a vida, pensar, problematizar? Não será mais feliz o idiota, o imbecil que nada questiona? Ou haverá uma espécie de meio termo entre o sofrimento de quem pensa e a idiotice de quem passa ao lado de tudo isto?
Olívia dará a resposta.
No final da formatura, Olívia e Eugénio aparecem-nos unidos pela humilhação da sociedade e pela pobreza. Juntos na infelicidade manifestam, no entanto, atitudes completamente diferentes: Eugénio procurará vingar-se da vida, construir o seu império, dominar, triunfar, ser rico…
Olívia, essa, tenta que Eugénio veja os lírios do campo e as estrelas do céu. Mas a sua ânsia de poder é imparável. E vai sofrendo: com os pacientes que morrem, com os miseráveis que tenta curar a ajudar, com as guerras e revoluções. À sua volta persiste a miséria e a injustiça. E ele próprio não consegue sair dela. E pensa. E sofre.
Conhece Eunice, filha de um grande empresário e casa com ela. Ama Olívia mas tem de a sacrificar para conseguir a ambicionada riqueza, o estatuto social, o reconhecimento e a desnecessidade de trabalhar. Operários morrem na fábrica do sogro, outros trabalham em condições miseráveis, mas na alta sociedade não se fala de sentimentos; isso é “coisa de pobre”.
Tudo se passa como se Eugénio fosse um somatório de dois “Eus” que não se encontram por serem contraditórios: Eugénio foge de si; não pára para ver as estrelas. E até ao final do livro, Eugénio lutará.
Mas estrelas hão-de triunfar. Para Eugénio ainda haverá redenção. Olívia morrerá. Mas não a vida. Anamaria, a filha de ambos será a porta-voz dessa redenção. Eugénio deixará de “escarafunchar” as feridas; deixará de procurar a culpa; deixará de procurar vingar-se da vida. Descobrirá a verdadeira vida, após a morte de Olívia. A vida simples de quem se despe da vaidade e do egoísmo. A paz de quem recusa o materialismo capitalista e uma sociedade feita de aparências e injustiças. A paz de quem vive com os outros e para os outros."

segunda-feira, 5 de julho de 2010

O Pintor de Batalhas - Arturo Pérez-Reverte


Quem se habituou às sensacionais histórias de aventuras, autênticos labirintos de intrigas e episódios rocambolescos, dos anterires livros de Perez Reverte, quem se habituou a ver nele o moderno contador de histórias de capa e espada, como as famosas aventuras do capitão Alatriste, não deixa de ficar surpreendido logo nas primeiras páginas desta obra.
Admirador confesso que sou deste escritor, confesso que fiquei inicialmente desagradado com esta mudança brusca. Deparei com um Reverte estranhamente reflexivo, mas, ao mesmo tempo, algo óbvio: as suas concepções do ser humano, a sua visão pessimista da alma humana, o halo negro que ele apenas bosquejava nos seus romances anteriores, aparecem aqui cruamente explícitas: o ser humano como um “rematado filho da puta” (pág. 82). Assim, declaradamente. Com todas as letras.
É, portanto, uma mensagem algo confessional: neste romance, a intriga ficcional envolve como uma nuvem bem clara, a concepção negativista de Reverte sobre a natureza da alma humana.
Depois de trinta anos a fotografar a morte, nas guerras mais cruéis das últimas décadas do séc. XX e início do XXI, Faulques, decide dedicar-se à pintura para representar a imagem que não conseguiu obter pela fotografia: aquela que representasse todo o caos do Universo; aquela que explicasse a geometria da desordem, a ordem do caos. Assim, começa a pintar um grande mural, no interior de uma torre de vigia circular. Aí é visitado por um ex-soldado croata que tinha sido fotografado por ele. A foto, premiada internacionalmente, capa de revista, tinha contribuído para uma série de desgraças que destruíram por completo a vida do jovem, em virtude de por esse meio ter sido identificado pelos inimigos. Os diálogos intensos, dramáticos, entre pintor e soldado preenchem as páginas deste livro, em que ambos percorrem um olhar angustiado pela vida, pela tragédia que compõe a vida humana.
A geometria do caos: eis o que ambos procuram. E só a arte poderia delinear esses traços geométricos, descobrir as linhas claras com que se desenha a vida. Uma visão amargurada e pessimista da alma humana mas que deixa o leitor perplexo perante o realismo dessa mesma visão.
Não são, afinal, os fotógrafos de guerra que procuram a morte e a divulgam. Não são eles os portadores da violência e da maldade. É a morte que os procura, porque a morte está na vida, está presente nas linhas ortogonais dessa ordem oculta a que talvez possamos chamar destino.
A ciência e o amor nada explicam, nada remedeiam. São apenas analgésicos. Como Olvido (note-se a simbologia do nome), a mulher que Faulques amou. Ela permitiu-lhe apenas alimentar a vida. Ela foi o analgésico para a maldade e para o ódio. Só a arte, a pintura, ainda que assumidamente medíocre, permitiu a Faulques e ao próprio soldado compreender essa ordem escondida, essa normalidade do mal.
Um livro profundamente reflexivo, amargurado, mas real, sentido, que vai ao âmago das questões essenciais da vida humana. Um livro ambicioso, em que Reverte prescinde daquela dimensão lúdica tão característica dos seus livros, para ensaiar uma abordagem intelectualmente elaborada e filosoficamente profunda da vida humana e dos caminhos ignóbeis que a humanidade traça.
 * Quadro que compõe a capa da edição ASA deste livro

sexta-feira, 2 de julho de 2010

A Melhor Leitura do Mês

O mês de Junho, para mim, foi pródigo em grandes leituras!
Tendo terminado o Guerra e Paz e Anna Karenina no mesmo mês, isto só podia dar empate J.

Para os dois, dez de zero a dez!
No entanto, não posso deixar de destacar outras grandes leituras deste mês: A Sombra do Vento (8,5); A Condição Humana (8,5/10); Sputnik, Meu Amor (9) e O Rapaz do Pijama às Riscas (9).

O Grande Gatsby - Scott Fitzgerald

Talvez nunca se tenha escrito em palavras tão claras a fragilidade das relações humanas. A fragilidade da amizade, corroída pelo interesse egoísta e iludida pela força estridente da frivolidade. Talvez nunca se tenha escrito em palavras tão eloquentes a força de um amor, a abnegação com que um ser humano se pode entregar a um amor desmedido mas terrivelmente humano.
Gatsby era um grande homem! Um ser humano que todos nós gostaríamos de ter como amigo. Mas aquele mundo grandioso que ele próprio construiu acabou por lhe devolver apenas o travo amargo, ácido e atroz da incompreensão e da ingratidão. Do egoísmo. Do interesse pequenino que há nos espíritos que apenas procuram o prazer fácil na bondade dos outros.
O enredo, magnificamente construído num estilo simples e belo, passa-se nos famosos anos 20 dos Estados Unidos da América, época de libertação, do Jazz, da afirmação triunfal (embora provisória) da prosperidade capitalista americana. Num ambiente de alegria, riqueza material e crença num futuro radioso, os “amigos” do grande Gatsby nasciam como cogumelos em torno da sua portentosa mansão; as festas até de madrugada encantavam a sociedade. Contudo, havia um mistério em Gatsby. Um amor de perdição. Uma paixão muito mais forte que as suas festas, a sua fortuna e as centenas de “amigos”.
Fitzgerald apresenta-nos então um Gatsby generoso, abnegado no seu propósito de recuperar um amor perdido. Mas os obstáculos serão muitos. Toda a força da sua personalidade, todo o poder que o seu ser emanava seria posto à prova num meio onde (por detrás das aparências) se escondiam os mais atrozes e revoltantes defeitos do ser humano. A inveja, a ingratidão, a frivolidade e, acima de tudo, a inacreditável tendência do ser humano para usar os outros como fantoches de vidas assentes no prazer fácil.
Uma leitura mais ligeira poderia concluir que Fitgerald critica a decadência moral e o materialismo. Mas é muito mais que isso. Muito mais mesmo: a tão propalada decadência moral, que os moralistas de todas as épocas apontam não é mais do que a face visível da tremenda maldade humana. E não é uma questão de épocas; é uma questão de natureza humana, capaz de criar um Grande Gatsby mas também grandes demónios disfarçados de gente. Da mesma forma, o materialismo não é o grande inimigo da bondade e da felicidade; é o que está por detrás dele: o egoísmo, esse monstro que nos ataca ferozmente, porque tomos somos humanos.
Este é um livro inesquecível. Um livro que marca indelevelmente quem o lê e sente este drama da fragilidade dos laços que criamos na nossa vida. Haja sensibilidade no leitor e certamente ele repensará a forma como se relaciona com os outros. Afinal, o que queremos deles? Teremos nós a coragem para assumir que os outros não são apenas instrumentos dos nossos interesses? Saberemos que, perto de nós, existem “Grandes Gatsbys” que porventura mereçam a nossa admiração e amizade? Saberemos nós, de facto, o valor da amizade?
Este é um livro excepcional. Um livro que diverte quem lê e ao mesmo tempo capaz de nos fazer repensar muitas das nossas atitudes perante os outros. Em 140 páginas, que se lêem de um fôlego, Fitzgerald faz o nosso retrato, pintado com as cores vivas e alegres da bondade, da generosidade, do amor e da esperança, mas também com as cores tristes e revoltadas do pior que o ser humano é capaz de construir na sua vida.
Eu, pessoalmente, não vou esquecer Jay Gatsby tão cedo… o Grande Gatsby…

Na imagem: Robert Redford e Mia Farrow como Gatsby e Daisy em "The Great Gatsby", filme de 1974. Imagem retirada daqui