terça-feira, 29 de maio de 2012

O Inverno do Nosso Descontentamento - John Steinbeck




O Inverno do Nosso Descontentamento é um título feliz, poético e bem adequado a esta obra. Trata-se de um dos últimos livros de John Steinbeck. Por este motivo é considerado por muitos como uma das obras mais “maduras” do grande escritor. Pessoalmente, acho mais adequado encarar este romance como uma obra em que o autor se desvia bastante das características básicas dos seus livros anteriores. Mas vamos mais devagar.
Este livro trata de um homem bom, como tantos personagens de Steinbeck. Um homem simples e bom, proveniente de uma família abastada de uma pequena cidade conservadora americana: New Baytown. No entanto, Ethan é o último herdeiro de um património misteriosamente perdido no tempo do seu pai e acaba por se tornar um modesto empregado de um avaro comerciante, proprietário de uma loja (Murillo), onde Ethan é o único e modesto funcionário.
Ao longo de todo o enredo, Ethan personifica a luta entre a moralidade do homem bom e a ambição de um enriquecimento que, aos poucos, se vai revelando incompatível com essa mesma moralidade. Até às últimas páginas do livro, mantém-se este dilema, assim como um outro: a identidade do personagem em confronto com a identidade da família, das suas raízes familiares.
Penso que aquilo a que os críticos chamam a maturidade literária do autor materializa-se neste livro mas de uma forma não obrigatoriamente positiva para o leitor; Steinbeck ganha neste livro uma intensidade reflexiva que não detetamos em Ratos e Homens, Tortilla Flat ou mesmo na sua obra prima, As Vinhas da Ira. Mas, pelo contrário, perde, a meu ver o que ele tem de mais extraordinário: a singeleza, a simplicidade, a humanidade das suas personagens. Aqui, Ethan tem alguns desses traços de humanidade típicos do autor, mas, lentamente, vai questionando toda essa humanidade, à medida que vai equacionando a hipótese de renunciar à honestidade para ceder à tentação do crime.
É sem dúvida, a obra mais reflexiva que li deste autor. Aquilo que ganha em profundidade psicológica perde, a meu ver, em ritmo narrativo. Mesmo assim, no final resiste a crença infinita de Steinbeck no ser humano. 

quinta-feira, 24 de maio de 2012

O que o dia deve à noite - Yasmina Khadra



É um livro muito interessante; estamos perante uma daquelas obras que classificamos como muito boas mas que não ficam muito longe da linha que demarca a genialidade.
Tudo parte de uma aliança bem conseguida entre a realidade e a ficção; por outras palavras, entre a História e a Fantasia.
Estamos na terra de Camus: a Argélia colonial, ocupada pela França até 1962. O enredo acompanha o tempo de vida de um argelino de origem árabe nascido em 1927 e, portanto, ator e personagem dos dois grandes conflitos que marcaram esse martirizado país do Norte de África: a segunda guerra mundial, com a ocupação nazi e a guerra da independência. Younes (Jonas para os colonialistas e não-árabes em geral) é um jovem nascido na miséria que, depois de ser educado por um tio, consegue entrar no círculo social da elite colonial. Younes coloca-se assim entre dois mundos em conflito permanente e tudo se encaminha para o grande drama: o momento em que ele terá de tomar partido. Por um lado a voz do sangue: da comunidade árabe injustiçada e quase escravizada; por outro lado, a voz do progresso e da riqueza. Pelo meio, os amores de Younes, sempre marcados pela guerra, tanto a guerra politica como as diversas guerras sociais e étnicas que trespassavam aquele país.
A escrita de Khadra é, acima de tudo, de uma sensibilidade extraordinária. Ele escreve com uma delicadeza que nos comove com facilidade. É quase com ternura que o autor nos fala da voz da terra e do sangue que Younes ouve constantemente; e a voz da honra: Isra, o pai de Younes prefere a miséria à desonra de aceitar ajuda do irmão rico. Esta impossibilidade de saír da miséria sem perda da honra dá a todo o enredo um tom cinzento, sombrio, triste… belo mas triste.
Para estes árabes da Argélia, o mais difícil era arranjar uma razão para sobreviver… no entanto, no meio da miséria, há sempre algo a que um homem se agarra para ser feliz. Nem que seja uma canção ou um poema…
Por vezes, a escrita de Khadra assume tons verdadeiramente poéticos, tanto na forma como nas mensagens que transmite. Para além disso é um intenso grito contra a prepotência política que justificou o colonialismo; contra esta escravatura moderna que justifica a dominação com uma pretensa e ridícula superioridade civilizacional.
Um aspeto interessante é a forma como o autor demonstra a crescente atração do personagem principal pela violência, ele que era um profundo pacifista. De facto, perante determinados níveis de injustiça, a violência começa a encontrar justificações…
Em conclusão, penso tratar-se de um livro que merecia maior divulgação, de um autor que surpreende pela criatividade literária, com marcada influência de Albert Camus: em muitos aspetos , este Younes faz lembrar Mersault, de O Estrangeiro, principalmente pela sua personalidade algo difusa e incontornavelmente desenquadrado do meio em que vive…

quinta-feira, 17 de maio de 2012

A Queda - Albert Camus



Imagine-se sentado num café noturno, em Amesterdão. Um conterrâneo seu senta-se a seu lado e desata a falar. Fala, fala, fala… um longo monólogo. É esta a técnica narrativa de Camus neste romance. Um advogado, auto intitulado “juiz-penitente”, Jean-Baptiste Clamance é o único que fala. O outro, que nós nunca conhecemos limita-se a ouvir e desempenha o mesmo papel que o leitor: um ouvinte e nada mais.
Todo o discurso é tenso, por vezes divertido, outras vezes revoltado, mas sempre sentido e refletido. É um livro difícil, confesso; nem sempre é fácil ao leitor descobrir as ideias que Camus pretende transmitir. No entanto, algumas dessas ideias são suficientemente claras para que as possa inserir neste comentário:
Clamance é um hedonista; ele sobrevaloriza-se; considera-se um exemplar quase perfeito da humanidade. Chega mesmo a irritar o leitor, fazendo crer que toda a humanidade é má, é odiosa mas a sua pessoa é superior a tudo isso. Prepotente, Clamance/ Camus transforma o seu discurso uma verdadeira ofensa ao leitor que, como que manietado, se sente obrigado, apenas e só a continuar a ouvir / ler as sentenças superiores de Clamance.
Mas a parte final do livro, após “A Queda”, marca uma reviravolta que se torna algo dramática: é o reconhecimento do fracasso da solidariedade. E isto dói porque nos revemos em Clamance, o homem que ouviu o grito da mulher que caia mas nada fez porque fazia frio e chovia. Será esta a essência da humanidade? É esta, pelo menos, a essência de Clamance, em contraste com o homem brilhante com que se apresenta na primeira parte da obra.
Assim, as qualidades humanas enunciadas na primeira parte de nada velam; todos os valores morais não parecem ser mais do que motivos de vaidade. É a descrença total no ser humano…

terça-feira, 15 de maio de 2012

O Xangô de Baker Street - Jô Soares



Jô Soares há muito que nos habituou a rir. Poucos como ele nos conseguem arrancar uma bela gargalhada. Ler este livro sem gargalhar é um desafio, eu diria insuperável
A ideia básica do livro é muito interessante: nos finais do século XIX cruzam-se no Brasil famosas personagens reais com outras de ficção mas já consagradas pela literatura: Sherlock Holmes e o seu inseparável Watson deslocam-se ao Brasil, por solicitação do Imperador D. Pedro II para investigar o estranho caso de um Stradivárius desaparecido e que o velho Rei tinha oferecido em segredo a uma das suas amantes. O pior é que o ladrão é também um horrível assassino de mulheres e Sherlock terá de desvendar todos os mistérios.
O enredo é enriquecido com a descrição do Rio de Janeiro daquela época, com as aventuras diletantes de um grupo de poetas de onde se destaca o famoso Olavo Bilac e uma célebre diva francesa, a atriz Sara Bernardt.
A eficácia do humor deste livro deve-se em grande parte ao contraste entre o british Sharlock Holmes e a aparência devassa dos brasileiros. No entanto não tardou muito que o detetive se rendesse à devassidão e acabasse por se render aos encantos do samba e até da canábis. Por outro lado, Sherlock vai-se revelando cada vez mais desastrado, caindo em situações ridículas… aliás, o humor de Jo Soares assenta, acima de tudo, no ridículo; na primeira fase do livro, o leitor é levado a pensar que o autor pretende ridicularizar os brasileiros, em contraste com os elementos estrangeiros. Mas não. Depressa se descobre que Jô Soares ridiculariza tudo e todos, desde um Rei decrépito, poetas devassos, uma atriz famosa mas de mau génio, um Inspetor de polícia quase demente e, acima de tudo, um Sherlock Holmes idiota e incompetente.
Se bem que salpicado por alguns clichés, é um livro que se lê com muito agrado. Não é uma obra prima nem pretendo sê-lo: creio que o autor apenas pretendeu escrever uma sátira divertida. E conseguiu-o. Deixando-nos com vontade de ver o filme com Joaquim de Almeida no papel de Sherlock Holmes e Maria de Medeiros como Sarah Bernardt.
Uma nota especial para o final: é absolutamente surpreendente e divertido.


quinta-feira, 10 de maio de 2012

Cloning Adolf - Cristina Torrão (ebook gratuito)


Tal como havia feito Luís Novais, também Cristina Torrão resolveu presentear os seus leitoras com um livro colocado gratuitamente à disposição no seu blogue.
Cloning Adolf é um livro completamente diferente dos outros por si anteriormente publicados; é um livro hilariante.
A estória é simples e original: um grupo de fanáticos nazis, no século XXII rapta um cientista famoso para que este proceda à clonagem de Adolf Hitler a partir de “um carvãozinho” que viria a dar que falar: tratava-se de um pedaço do corpo carbonizado de Hitler em 1945. A parte de Hitler a partir da qual se constrói o clone é … os genitais J: humor torna-se hilariante.
O cientista, o Doutor Solari, com a sua bela e sensual (tinha que ser) assistente conseguem levar a bom porto o projeto ao mesmo tempo que desenvolvem uma paixão, como direi… explosiva.
No final deparamos com um  Hitler, digamos, muito fraquinho… um louco que pretendia eliminar as mulheres porque não podiam ter um bigodinho como o dele…
No meio dos fanáticos, como acontece em qualquer canto do mundo, também havia um português: o hilariante José Cebolo, um nazi que gostava de bom vinho e boas comidas (só um português podia curar as mazelas de Hitler com vinho tinto). Alguns dos outros fanáticos eram verdadeiros “cromos”, com nomes hilariantes, como era o caso do grande chefe Kornflock.
Os fanáticos deixam bem claro o simplismo do discurso radical: eles são contra os estrangeiros e mal se apercebem que, uns em relação a todos os outros, são estrangeiros; a total ignorância histórica é comum a todos os fanáticos.
Para lá do ridículo, mesmo com gargalhadas, este livro não deixa de nos fazer refletir: é impressionante a capacidade que o ser humano tem de renegar a sua própria personalidade, anular-se totalmente e cultivar a mais patética insanidade. Alguns dos personagens deste livro são exemplos perfeitos de seres humanos que perderam tudo quanto se possa considerar “vontade própria” ou personalidade. E essa “desconstrução” do ser humano é assustadoramente possível. Basta que se cultive a ignorância e a estupidez. Será a estória contada neste livro apenas uma comédia de ficção científica? Ou não estaremos nós perante, bem no centro do nosso mundo, alguns fenómenos de estupidificação crescente? Não caminhará o nosso mundo para a mais absurda estupidez? Receio bem que sim…
O livro está disponível aqui: 

segunda-feira, 7 de maio de 2012

A Fenda - Doris Lessing


A Fenda é um livro profundo e complexo. Mais do que uma narrativa, é uma reflexão sobre a importância das relações entre homens e mulheres na origem e evolução da humanidade.
O enredo é narrado por um aristocrata romano do tempo de Nero.
A visão feminista de Lessing, de uma forma muito inteligente, começa por fazer uma ligação clara entre a mulher e a terra: a Fenda é uma referência à anatomia feminina mas também a um acidente geográfico do local onde vivia a comunidade: uma fenda sagrada, onde eram executados sacrifícios sagrados.
Uma comunidade primitiva, estranhamente composta apenas por mulheres dava à luz sem intervenção masculina. Todos os bebés assim gerados eram do sexo feminino. Até que um dia acontece o impensável: nasce um rapaz. Ou melhor, um Monstro, como lhe chamaram, devido a certas protuberâncias anatómicas que exibia. Essa anatomia levou a que os Monstros fossem também conhecidos pelos Esguichos. Estava quebrado o equilíbrio. Em breve se gerou uma nova comunidade, só de Esguichos e começa a odisseia das relações entre os dois grupos; uma relação que evoluirá entre o encantamento e a “guerra dos sexos”.
Esta visão mais ou menos histórica da origem da humanidade levar-nos-ia, pela lógica das cronologias, ao Paleolítico; no entanto, todas as pistas que Lessing nos deixa sobre essa cronologia, levam o leitor a situar o enredo nos primórdios da civilização grega. De facto, muitas das realidades descritas têm como referentes claros alguns aspetos da mitologia grega. Por exemplo:
- a época em que só as mulheres (Fendas) representavam a espécie humana é vista como uma espécie de “Idade do Ouro” primordial.
- as águias são encarregadas de transportar os rapazes para a comunidade masculina, logo que nasciam das Fendas. Este papel vai-se tornando, ao longo do livro, o de justiceiras, apelando sem dúvida para a águia do mito de Prometeu.
- A comunidade feminina faz lembrar o episódio da fuga para a ilha de Lesbos por parte das mulheres de Atenas.
- Os sacrifícios rituais e a morte dos bebés rapazes praticada pelas Fendas tradicionalistas faz referência à tradição de infanticídio nalgumas comunidades gregas primitivas, sendo a de Esparta a mais conhecida.
Globalmente, parece nítida a visão feminista desta obra. Pessoalmente, penso que Lessing vai muito além disso. O bucolismo e a ausência de um conceito de moral à maneira romana ou judaico-cristã colocam esta comunidade primitiva sob uma moral natural que contrasta claramente com o mundo vivenciado pelo narrador, um Romano que, ainda assim, considera a sua sociedade como “devassa”. Quer dizer, Lessing parece encarar a história da humanidade como um caminho desde essa moral natural até às formas mais modernas de moralismo.
As “Velhas Elas”, conservadoras, têm nessa comunidade um papel fundamental como elemento conservador da sociedade; no entanto o seu poder é claramente posto em causa pelas mulheres jovens e as relações mais abertas com a comunidade masculina acabam por triunfar.
Por outro lado, temos a importante questão do poder: depois de se tornar real a união entre as comunidades de homens e mulheres, o primeiro líder é um homem. E todos, incluindo as mulheres, aceitam o seu poder de uma forma natural. No entanto, por mais poder que esse homem tenha, ele vive atormentado por uma dúvida permanente: “o que vai ela pensar disto?”

quinta-feira, 3 de maio de 2012

A melhor leitura de Abril

Desta vez foi muito difícil escolher a melhor leitura do mês.
O segundo volume de 1Q84 não me entusiasmou tanto como o primeiro mas, mesmo assim, é uma obra genial.
Embora sem ser uma obra de grande fôlego, O Milagre de São Francisco foi uma leitura deliciosa. Um livro singelo e de uma humanidade tremenda.
A Cidade dos Prodígios, de Eduardo Mendoza é um marco histórico na literatura espanhola. Um livro magnífico sobre o tempo mítico de uma cidade de Barcelona que, há pouco mais de 100 anos começava a lançar as bases da metrópole que hoje é.
E Gaibéus, de Alves Redol é talvez um dos maiores marcos dessa geração magnífica de escritores neo-realistas que marcaram o século XX português.
Dito isto, a escolha, embora difícil acaba por recair no grande mestre japonês:


quarta-feira, 2 de maio de 2012

Aviso à navegação

Quando um crítico literário disser que um determinado livro é mau, avisem para eu comprar.