segunda-feira, 16 de julho de 2007

Limpeza de Sangue - Arturo Pérez Reverte

Aí está um verdadeiro romance de capa-e-espada! Admirador indefectível de Alexandre Dumas, Reverte presenteia-nos com um livro de aventuras bem refrescante, divertido e emocionante. A época histórica escolhida é bem marcante para nós, portugueses; é a época de Filipe IV, o terceiro de Portugal, de quem nos livramos em 1 de Dezembro de 1640. O enredo passa-se em 1621, quando Filipe IV era um jovem rei sem “mão” para governar um país dominado por interesses e intrigas, onde pontificava a terrível Inquisição e o nosso conhecido conde duque de Olivares, um fidalgo talvez mais poderoso que o próprio rei mas preocupado, acima de tudo, em sugar as finanças portuguesas para financiar as guerras na Flandres e Holanda. O livro é o segundo de uma trilogia que descreve as aventuras do capitão Alatriste (referência ao incontornável Cervantes) com o pano de fundo na terrível guerra da Flandres, onde combatiam as tropas de Filipe IV e onde o nosso capitão viveu batalhas terríveis. Esta obra não é uma obra-prima. Não tem “fôlego” para isso. Nem tinha que ter. O seu propósito não é afirmar as grandes qualidades de Reverte, já confirmadas noutras obras, mas sim o de divulgar uma época fantástica da história de Espanha, em que este país dominava o mundo. Estávamos no período áureo do Império Espanhol. Ao mesmo tempo, pretende-se mostrar que há determinados males que não são de hoje: a corrupção, a tendência para uma religiosidade falsa como Judas, a corrosão do poder político e os desmandos daqueles que se dizem a “elite”, mais virada para a aparência do que para a verdade. São fenómenos que permanecem mas têm raízes históricas muito bem explanadas por Reverte. Aliás, o grande mérito desta obra é o conhecimento profundo da realidade histórica que reverte revela. O fenómeno da Inquisição, por exemplo, é explanado com grande significado. O recurso a este tribunal tão desumano e hipócrita foi uma das razões para um certo atraso estrutural do sul (católico) da Europa, ao provocar a fuga de talentos e dinheiros para a Holanda, Inglaterra e outros países do Norte. Esta preocupação pelo “pano de fundo” leva o autor, muitas vezes a dar mais importância à “paisagem que ao retrato”; ou seja, a descrição da época por vezes ofuscando o próprio enredo, a história que pretende contar. Enfim, trata-se de um livro agradável, de fácil e rápida leitura, leve e simples. Um excelente exercício de divulgação histórica, bem apropriado para uma leitura de férias.

sexta-feira, 6 de julho de 2007

O Meu Mundo não é Deste Reino - João Melo

O Humanismo de Vitorino Nemésio, o cheiro da terra de Miguel Torga e o mundo fantástico de Garcia Marquez encontra uma síntese perfeita nesta obra de João de Melo. Como Nemésio, profundamente ligado às raízes açorianas, o autor lê e descreve com entusiasmo e envolvência o viver e o sofrer de gente miserável, à procura de asas para voar sobre outros mares mas sempre peada, agrilhoada por poderes temporais que a sugam e subjugam. Cabem neste domínio o padre Governo e o Regedor Guilherme José. Como em Torga, a terra comanda a gente. O crescer da sementeira é o viver das gentes; a respiração dos animais confunde-se com a das pessoas. A terra está por todo o lado, até no chão das casas. E há um Deus, um ser supremo que ninguém conhece a não ser por sombras medonhas como a do velho e egoísta padre Governo. Como em Garcia Marquez, o fantástico cresce ao longo da obra. Esta começa por referir, em tom quase historiográfico, o povoamento da Ilha de S. Miguel para terminar numa espécie de espiral de fantasia, com homens que comem e vomitam ratos, gentes esfomeadas que pilham cadáveres e um Messias que ressuscita dos mortos para anunciar a revolução. Começando por um título (um paratexto que logo avisa o leitor para o fantástico que envolverá a obra) até ao epílogo escrito em maiúsculas, a obra está povoada de uma linguagem à beira do barroco. Por vezes, o prazer de ler, de saborear a musicalidade das frases eleva o leitor acima do conteúdo, criando nós próprios um universo fantástico julgado impossível. Navegando entre um neo-realismo latente e um neo-barroco formal, João de Melo cria assim uma obra de arte completíssima, onde a forma complementa um discurso claro de revolta contra a opressão, contra uma fome que não é só de pão mas também de liberdade.

quinta-feira, 5 de julho de 2007

Retrato do Artista Quando Jovem - James Joyce

O Retrato do Artista Quando Jovem, é o primeiro romance de James Joyce. Stephen Dedalus é o herói da obra, alter ego do autor. Daí o seu carácter marcadamente autobiográfico. O nome atribuído ao herói, Dedalus, é uma referência óbvia ao mito helénico. Tal como o herói grego, também Stephen queria voar. Assim como Joyce. Os três procuraram sempre a libertação, por entre uma realidade mesquinha e atrofiadora. O livro relata a juventude de Stephen, passada entre realidade profundamente marcantes na personalidade de Dedalius/Joyce: o colégio de Jesuítas, com os seus métodos espartanos de ensino, a cidade de Dublin, suja e dominada pela eterna querela política face à dominação inglesa e uma família abastada mas que, gradualmente, cai na ruína. A perpétua luta pela independência da Irlanda obcecava os seus concidadãos. Mas Dedalus coloca-se para lá dessa realidade: “Quando a alma de um homem nasce neste país, lançam-lhe logo redes, para a impedir de voar. Fala-me de nacionalidade, de língua, de religião; eu vou tentar voar para lá dessas redes”. E mais adiante: “A Irlanda é uma porca velha que devora a sua ninhada”. Perante tudo isto, o jovem Dédalus anseia por voar mais alto. Procura nos poetas, vasculha em Aquino, refugia-se nas profundezas do saber, mergulha na lama de Dublin, entre poetas e prostitutas, submerge no mais profundo misticismo jesuítico mas nada lhe permite construir as suas asas de cera. O seu mundo seria outro. Mas, para lá chegar, foi preciso viver. É desta vida multifacetada e mortificada que Joyce dá conta, numa obre genial em termos estéticos. Ao longo do livro evolui uma escrita ao alcance apenas dos mais geniais dos escritores. A beleza das palavras, a melodia da narração, bem respeitada por esta tradução, eleva bem alto o génio deste escritor que cuidava os seus textos como se preciosidades fossem. E eram! O estilo é profundo, voltado para o interior, para as profundezas da alma. Os diálogos, curtos e raros servem apenas para espelhar a alma de Dedalus, usando o monólogo interior de forma quase sistemática e inovadora para a época. Por toda a obra é manifesta a inquietude de Joyce perante os dilemas mais profundos da vida e a função do pensamento religioso. Uma terrível guerra interior, travada entre a moral católica e a atracção da realidade mundana perpassa a mente de Stephen de forma impiedosa e marcante. No final dá-se o triunfo da vida; o triunfo de um mundo sobre o qual as asas de Dédalus hão-de pairar para sempre.