quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Em busca do carneiro selvagem - Haruki Murakami


É muito interessante, depois de ler uma dúzia de livros de Murakami, descobrir que as grandes caraterísticas da sua escrita já “estavam lá”, no início da sua carreira. De facto, este Em Busca do Carneiro Selvagem, publicado pela primeira vez em 1982, faz parte da “trilogia do rato” (alcunha de um dos personagens) com que o génio nipónico iniciou a sua carreira literária.
Mas quais são, afinal, esses traços distintivos que já se podem identificar neste livro? Antes de mais essa fantasia do mundo real que, como disse alguém, só um oriental podia criar. Se Murakami não fosse oriental, a sua escrita nunca poderia ter esta magia. Pessoalmente nunca me atraiu a chamada literatura de fantasia (com honrosas exceções, é óbvio) mas a fantasia de Murakami é completamente diferente. Há ali uma magia, qualquer coisa como uma magia real, que não nos deixa sair do mundo concreto. E tudo aparece com naturalidade; até um carneiro que se mete dentro da gente, numa fantasia cheia de simbolismo. Para o leitor mais distraído talvez se torne difícil descortinar esse simbolismo. Sem querer revelar muito do enredo e muito menos do seu belíssimo final, deixo aqui uma dica de interpretação: será Deus um carneiro? :)
Um outro traço distintivo de Murakami é o sentido de humor discreto mas eficaz e criativo. É um prazer ler este autor pelo sorriso constante que nos desperta, para além de um estilo muito claro, muito fluente.
Este não é o melhor livro do autor nem poderia ser. Nota-se um certo experimentalismo na escrita. Por exemplo, os frequentes flashbacks nem sempre são bem enquadrados, cortando o ritmo narrativo, que se torna muito oscilante: ora bem fluido, despertando o interesse do leitor, ora algo monótono devido aos referidos saltos temporais. 
Mas a escrita de Murakami nunca deixa de ser excecional. Se este não é o melhor livro do autor, também é verdade que exibe uma qualidade refinada e noutro autor qualquer este livro seria uma obra-prima. E um desafio para os leitores mais “entendidos” que eu: alguém me saberá interpretar a presença dos gatos em todos os livros de Murakami? Será apenas o gosto do autor pelos bichanos ou haverá também algo de simbólico nisso?

Sinopse
Ambientado numa atmosfera japonesa, mas com um pé no noir americano, Murakami tece uma história detectivesca onde a realidade é palpável, dura e fria, e seria a verdade de qualquer um, não fosse um leve pormenor: é uma realidade absolutamente fantástica. Um publicitário divorciado, que tem um caso com uma rapariga de orelhas fascinantes, vê-se envolvido, graças a uma fotografia publicitária, numa trama inesperada: alguém quer que ele encontre um carneiro! Mas não é um carneiro qualquer. É um animal que pode mudar o rumo da história. Um carneiro sobrenatural…
Murakami dá a esta estranha história um tom que só um oriental pode imprimir a uma crença, fazendo-a figurar como um facto da realidade. Coloca, de uma forma genial, a fantasia na aridez do mundo real.

4 comentários:

Denise disse...

Manuel :)

Pode ser "polémica" a questão que colocas. Pode ser Deus o carneiro?
E depois daí fui reler certas passagens e repara bem: o quanto ignoramos, as coisas mais importantes da vida, valorizando tantas outras, incertas, com base numa "certeza" de maior felicidade, de promessas, de sonhos que parecem tão possíveis nessa busca...

Murakami é mesmo "qualquer coisa".

Boas leituras!

Unknown disse...

Olá Denise
Em Murakami, mais importante que a figura de Deus, é a procura. A vida é uma sucessão de incertezas que colocam o ser humano numa inquietude constante. Vivemos no frémito de querer saber algo sobre o que pode existir para lá da realidade. Daí a fantasia e o aspecto algo surreal de muitas das suas personagens e situações.
Mas sim Murakami é mesmo "qualquer coisa". :)

Teté disse...

Li este livro também recentemente, gostei como gosto de tudo o que o autor escreve, mas concordo que ainda está longe do seu melhor e "refinamento" atual - numa fase experimental, dizes tu e calculo que acertadamente.

Só não "encontrei" esse simbolismo de Deus no carneiro que é diferente do rebanho, mas pronto, nem todos "lemos" do mesmo modo.

Quanto aos gatos desconfio que a resposta é prosaica, como de simplesmente gostar dos bichanos, mas tinha uma certa curiosidade de saber a verdadeira resposta do escritor...

Beijocas e boas leituras!

Unknown disse...

Teté, um dia um escritor destes novos que pouca gente conhece perguntou-me o que eu achava da escrita dele. Eu disse que se notava muita influência de Auster e ele contrapôs: - Eu nunca li Auster. :) Isto para dizer que as a literatura é uma arte e como tal, todas as interpretações são válidas. Felizmente :).
Por falar em Auster; uma vez, numa entrevista, ela disse: Deus me livre de impor ou sequer sugerir uma interpretação para is meus livros. Cada leitor faz a sua. E aquele carneiro que entra no corpo da gente, que adquire poderes extraordinários sugeriu-me a ideia de Deus. Mas é óbvio que não passa da minha subjetividade :)