O Humanismo de Vitorino Nemésio, o cheiro da terra de Miguel Torga e o mundo fantástico de Garcia Marquez encontra uma síntese perfeita nesta obra de João de Melo. Como Nemésio, profundamente ligado às raízes açorianas, o autor lê e descreve com entusiasmo e envolvência o viver e o sofrer de gente miserável, à procura de asas para voar sobre outros mares mas sempre peada, agrilhoada por poderes temporais que a sugam e subjugam. Cabem neste domínio o padre Governo e o Regedor Guilherme José. Como em Torga, a terra comanda a gente. O crescer da sementeira é o viver das gentes; a respiração dos animais confunde-se com a das pessoas. A terra está por todo o lado, até no chão das casas. E há um Deus, um ser supremo que ninguém conhece a não ser por sombras medonhas como a do velho e egoísta padre Governo. Como em Garcia Marquez, o fantástico cresce ao longo da obra. Esta começa por referir, em tom quase historiográfico, o povoamento da Ilha de S. Miguel para terminar numa espécie de espiral de fantasia, com homens que comem e vomitam ratos, gentes esfomeadas que pilham cadáveres e um Messias que ressuscita dos mortos para anunciar a revolução. Começando por um título (um paratexto que logo avisa o leitor para o fantástico que envolverá a obra) até ao epílogo escrito em maiúsculas, a obra está povoada de uma linguagem à beira do barroco. Por vezes, o prazer de ler, de saborear a musicalidade das frases eleva o leitor acima do conteúdo, criando nós próprios um universo fantástico julgado impossível. Navegando entre um neo-realismo latente e um neo-barroco formal, João de Melo cria assim uma obra de arte completíssima, onde a forma complementa um discurso claro de revolta contra a opressão, contra uma fome que não é só de pão mas também de liberdade.
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