domingo, 17 de janeiro de 2010

Kafka à Beira-Mar - Haruki Murakami

Kafka à Beira-Mar é uma obra magnífica por conseguir aliar um intenso ritmo narrativo a uma caminhada reflexiva capaz de nos fazer, por várias vezes, voltar a página atrás e parar para reflectir. A linguagem, cheia de simbolismo, cativa o leitor pela ironia e acima de tudo pela fantasia. O interior do ser humano é analisado em detalhe, à luz da sabedoria oriental, num meio irremediavelmente ocidentalizado como é o Japão moderno.
O enredo aborda o percurso de Kafka Tamura, um jovem de 15 anos que foge de casa e um homem idoso, o interessante Nakata, que fala com os gatos, faz chover sanguessugas ou peixes, depois de ter sido vítima de um estranho acidente, na sua juventude. Ao longo do seu atribulado percurso de fuga, Kafka parece fugir de si próprio; amaldiçoado por uma negra profecia lançada pelo pai, foge de quê? É este o coração do livro: de que foge o ser humano?
Em primeiro lugar, desde as primeiras páginas, Murakami transmite a ideia de uma acentuada crença na bondade natural do ser humano; a maioria dos personagens são naturalmente bons, o que vem, pelo contraste, reforçar a maldade atroz do pai de Kafka.
Nakata, velho e bom, encarna a ausência de conhecimento como fonte de felicidade; o velho que fala com os gatos ficara estúpido mas não sabendo o que são recordações, não sabe o que é o sofrimento.
Ao longo da obra, principalmente na primeira parte, Murakami evidencia todo o seu fascínio pelo conhecimento clássico, nomeadamente dos Gregos antigos. Na vida, como em Aristófanes, o ser humano parece destinado a procurar a sua “metade perdida”, com a qual se completará. Estabelece também um paralelismo com o teatro grego, na relevância que dá ao destino, como uma espécie de desígnio incontornável sobre a vida humana, nomeadamente a tragédia. Na vida humana a tragédia parece ser consequência das virtudes e não dos defeitos ou problemas.
Realce também, nesta primeira parte da obra, para a valorização dos conhecimentos tradicionais da cultura japonesa, como por exemplo o conto de Genji, na explicação dos “espíritos vivos”.
Mas o tema central deste livro é, sem dúvida, o destino. Numa espécie de luta interior, Kafka luta pela sua própria identidade, tentando conciliar o destino com o livre arbítrio. A fuga é antes de mais uma tentativa desesperada de escapar ao destino. No entanto, como afirma o seu amigo Oshima, “podes fugir mas não te podes esconder”. E, assim, a vida será sempre uma luta. Ao longo dessa luta, é fundamental a imaginação; aqueles que não a usam tornam-se ocos, desprovidos de conteúdo. É essa imaginação que permitirá ao ser humano lutar e triunfar contra o destino. O destino é poderoso mas não é invencível.
Quando Kafka foge, afinal, foge para onde? Inicialmente para a biblioteca, depois para a floresta: são esses os locais onde ele se pode encontrar. É a eterna procura do “eu”! No entanto, é dentro dele que se encontram as respostas. O seu “eu interior”, personificado pelo “rapaz chamado corvo” funciona como a sua consciência, a sua voz interior.
Ao longo da obra parece notar-se um certo corte com o conhecimento enquanto caminho para a felicidade; o verdadeiro conhecimento é precisamente aquele que provém do “eu interior”. É nesse sentido que Nakata, o velho, considerando-se “estúpido” porque esqueceu tudo o que aprendera na escola, é o mais sábio porque encerra todo o conhecimento místico que dará luz a todos os mistérios que o enredo encerra. A própria biblioteca não é vista como local de conhecimento mas de solidão; é aí que o espírito pode encontrar a verdade, não nos livros mas em si mesmo.
Em conclusão, trata-se de uma obra de grande alcance filosófico e místico, cheia de simbolismos e onde o mistério e a fantasia resumem todo o lado não racional do ser humano, lado esse que é fundamental na procura da identidade e do verdadeiro sentido da vida.
Imagem: Salvador Dali, Swans Reflecting Elephants

9 comentários:

Sofia disse...

Excelente comentário!
Este livro foi o único que li de Murakami e, desde as primeiras páginas, tive a certeza de que passou definitivamente a ser um dos meus escritores favoritos.
Um nome que (espero) esteja na lista dos próximos Prémios Nobel!

Kézia Lôbo disse...

Oie primeiro passando para retribuir a visita...
Adorei a sinopse e resenha do livro, nao conhecia o escritor...
Vou seguir...
XD

Maria disse...

Muito interessante o teu blog, recomenda-se. Beijinho

Ju Haghverdian disse...

Por um segundo me lembrou Édipo Rei. Essa coisa de tentar fugir do destino, de fugir mas não se esconder, todo o desdobramento do personagem é vão. Oshima pode ser o Oráculo... não?!

Talvez eu tenha que parar com essa mania de fazer comparações =D


Então, terminei O morro dos ventos uivantes ou Monte dos Vendavais, da Emily Brontë, mas não consigo por em palavras os meus pensamentos, já escrevi, reescrevi mas ainda não tá bom! Posso colocar o link da sua resenha quando conseguir publicar a minha?

Abraços!

Unknown disse...

Sofia, eu também não conhecia. Nestes 10 anos do século XXI já muitos e bons novos livros. Mas continuo à espera de uma obra-prima. Este foi um dos que mais se aproximou desse conceito. Mas creio que Murakami já é demasiado conhecido para ser Nobel :)
Kézia, obrigado pela simpatia.
Maria, bem-vinda ao blog :)
Ju,
fazer comparações é essencial; então com os gregos à mistura, tudo é comparável :) Aliás, o próprio Murakami diz que a vida é feita de "ligações"; os livros também :)
Sim, Oshima funciona como uma espécie de Oráculo; um guia mas sempre num plano místico, um "não-sei-quê" de misterioso, a palavra que apenas se antevê, sem explicitar, sem cair no concreto.
Quanto ao Monte dos Vendavais, o que tu dizes é algo que eu sinto muitas vezes: há livros que, pela sua riqueza, quase nos intimidam. Fica difícil dizermos tudo o que sentimos quando a realidade nos abala! Quando o livro nos mexe nos sentimentos ou na sensibilidade, ficamos quase paralisados, não é?
É claro que podes colocar o link da minha resenha. Podes até copiar e colar; fico até vaidoso por valorizares o que escrevi.

Beijinhos para vocês

Paula disse...

Murakami,
Gosto de me lançar em Murakami, mergulhar nesse mar sem sentido que por vezes acaba fazendo sentido.
"Os passageiros da Noite" foi o que menos sentido fez quando o li, mas gostei e acho que por isso mesmo.
"Sputnik Meu Amor" é outro muito bom :P
Um abraço

Unknown disse...

Paula, maioria das coisas que li sobre ele dizem que Sputnik Meu Amor é a sua melhor obra. Mais um para a fila :)

branca de neve disse...

Acho que este vai ser o meu primeiro livro deste autor. Pelas críticas parece-me um dos melhores dele e gostei muito da tua crítica e do teu blog. Parabens

Anónimo disse...

Um dos piores livros que li ...., parei quando a falta de gosto do autor e a estupidez ficou a níveis que ultrapassam o humano