Eis um livro que é vítima do preconceito e de uma certa ignorância medieval. É verdade que usa uma linguagem que, na vida comum, podemos adjectivar de obscena. É verdade também que não é um romance com uma linha de rumo definida, o que torna a leitura, por vezes, algo complicada. Não é, portanto, um livro fácil nem de perto nem de longe um livro erótico. A sua natureza auto biográfica e a profundidade filosófica do enredo aproxima-o mais do existencialismo de Camus do que da literatura erótica com que tantas vezes foi conotado.
Miller escreve como pensa e como sente. Daí que a sua linguagem seja absolutamente livre. Livre como o pensamento e os instintos humanos que o comandam.
Não é também um livro divertido. Longe disso. Porque a vida de Miller (e de Joe, o alter-ego do autor, personagem principal desta obra) nunca foi fácil nem divertida. Vagabundo em Paris, com empregos precários ou mesmo sem emprego, Joe vagueava pela vida à procura de um sentido para uma existência irremediavelmente perdida nas ruas e vielas do sofrimento.
Quase todo o enredo se desenrola em Paris (exceptua-se uma passagem por Dijon, onde Joe foi um inenarrável professor de inglês). O encanto, o mistério e a sedução de Paris estão por todo o lado, mesmo no meio da miséria. Paris exerce uma atracção fatal sobre Joe que, no entanto, vê nos parisienses os maiores obstáculos. Os outros são sempre o inferno, como afirmou Sartre.
Mau grado estes aspectos muito ligados ao existencialismo, Miller é profundamente influenciado por Dostoievski, que cita várias vezes. A vida de Joe faz lembrar, por diversas vezes personagens do mestre russo, como Trofímovitch de Os Possessos ou Michkin de O Idiota. Joe, como Miller, é um pessimista. O tom melancólico da obra resulta da monotonia de uma vida em que o sexo, a comida e a bebida são os refúgios únicos do inferno mundano, como se fossem necessidades básicas, as únicas que poderiam tornar a vida simplesmente suportável.
Outro aspecto notável é a forma como Miller consegue exprimir os seus sentimentos e percepções de uma forma por vezes marcadamente surrealista: as reflexões de Joe confundem-se com os seus sonhos e pesadelos como na pintura de Dali ou na obra-prima de Boris Vian, Outono em Pequim.
Em suma, podemos dizer que se trata de uma obra que exige reflexão e uma leitura muito atenta. Em grande parte é uma imensa reflexão sobre a vida, o espelho de uma existência sofrida.
Não posso, no entanto, considerar este livro uma obra-prima. Falta-lhe a dimensão lúdica. Faltam-lhe os motivos de interesse que um grande romance tem de envolver. Obviamente, essa nunca foi a preocupação maior de Miller. Trata-se de uma obra marcadamente introspectiva, pelo que o prazer de ler nem sempre triunfa.
Avaliação pessoal: 8/10
10 comentários:
Estou à espera deste livrinho :)
Gostei muito da tua opinião, agora ponho-me a pensar se vou gostar de ler :P
Abraço
Estava curiosíssima de saber a tua opinião (bem como a da Paula).Eu vou mais ou menos a meio, mas confesso que já me apeteceu pô-lo de parte.Precisamente porque não é um livro de leitura fácil,por não ter um fio condutor coerente (acho eu).Devia ter ficado para leitura de férias,quando a cabeça está mais disponível.
Mas vou acabá-lo.
Um abraço
Isabel
Gostei do seu post, era essa a ideia que guardava do "Trópico de Câncer" e do Miller. Chocante, duro mas com muitas outras coisas.
Abraço
o falcão
Olá amigos
(estou a escrever como anónimo porque, sem saber porquê, não consigo fazer login)
Paula, não leias já. Como diz a Isabel, é melhor deixar para as férias. É um livro que deve ser lido por se tratar de uma obra absolutamente histórica mas julgo que não será propriamente uma leitura divertida para ti, como não foi para mim. Confesso que me apeteceu fazer como a Isabel, deixar para depois, ainda por cima porque estou numa fase assustadora em termos de trabalho (querem corrigir-me uns testezinhos?) :)
Um abraço para vocês.
PS- Paula, adoro a tua nova foto. Foi assim mesmo que te imaginei :):):)
Troco os teus testes por alunos terriveis que me descontrolam até quase à histeria...
Queres?
Isabel
Nããããããooo
arranja-me mais testes :):):)
Ah!
Também achei que não!!!
( cada um tem a sua cruz... )
Isabel
Ja ouvi falar muito dese livro ,ainda não tive a oportunidade de ler. mas farei em breve .
abraços !
Oooo Henry Miller é bom. ele é meio louco e chocante...
QUero ler!
Moisés, é um livro que mesmo que precise de um esforço extra para ler, merece ser lido.
Olá Kézia
é como dizes, é louco, é chocante mas ~também é muito filosófico. Em certas passagens custa um pouco a ler
Enviar um comentário