Comentário:
Já aquando da primeira leitura que fiz deste livro, há uns quinze anos, fiquei convencido que esta é uma das três maiores obras-primas da história da literatura policial, a par de O Cão dos Baskervilles, de Sir Arthur Conan Doyle e o eterno Crime no Expresso do Oriente, de Agatha Christie.
"O homem que via passar os comboios" tem tudo o que um grande livro deve ter: emoção, ritmo narrativo, ausência de descrições ou assuntos inúteis ou laterais, correção na escrita, objetividade e aquele toque de bom humor que nos deixa a sorrir durante a maior parte da leitura.
Tecnicamente, um dos aspetos mais geniais deste livro é a forma como o autor gere a emoção: nós sabemos quem é o criminoso, sabemos quais são os crimes e a sua justificação. Só não sabemos se Popinga vai escapar.Ou até quando. E isso basta para um tremendo suspense. Só um génio literário é capaz deste desempenho!
Um certo exotismo começa logo com a apresentação do protagonista: Kees Popinga. Ele é um vulgar funcionário holandês, protótipo daquilo a que hoje chamamos classe média, com uma família vulgar e aparentemente feliz. Popinga até gosta do que faz. Mas um dia, como diria um adolescente dos nossos dias "passa-se". A empresa onde trabalha vai à falência e Popinga entra num percurso que o levará de discreto funcionário a um assassino apelidado de louco e perseguido como muito perigoso.
O que é absolutamente incrível é como o autor nos apresenta esse percurso como algo normal, credível. Tudo acontece com uma espantosa naturalidade! Isto só se explica pela genialidade de Georges Simenon, o notável criador do inspetor Maigret, que o notabilizou. Mas se o inspetor belga fez um sucesso absoluto, não tenho dúvidas que este Homem que Via Passar os Comboios é uma verdadeira obra de arte!
Há uma afirmação do nosso herói, Popinga, que resume bem o que se passa com este tipo de criminosos, e que ajuda a compreender a mente criminosa: quando lê no jornal, durante o seu refúgio em Paris, que a família e os amigos diziam que ele não estava no seu estado normal (ao cometer os crimes) Popinga diz: "era antes que eu não estava no meu estado normal".
É óbvio que esta "anormalidade do normal", da loucura que resulta da normalidade, faz lembrar os estudos de Sigmund Freud, sobre a loucura e o seu método inovador, a psicanálise, tão em voga na época em que Simenon escreveu. Mas é muito mais que isso: é a humanidade na sua expressão mais radical. O ser humano não foi criado para se tornar um autómato. Popinga apenas procurava ser ele próprio. Ser livre e feliz. Foi essa procura da liberdade que o conduziu à criminalidade. Certamente, errou e o próprio Popinga reconhece a justiça do castigo que o espera. Mas a sociedade também falhou. E para essa falha não há castigo.
"O Homem que via Passar os Comboios", publicado no ano de 1938, é uma obra que se insere no género da literatura policial, ou não fosse Georges Simenon o criador do celebérrimo comissário parisiense Jules Maigret. Kees Popinga é o protagonista deste divertido e admirável romance, que permite ao leitor realizar um trajecto pelos recantos mais sombrios da psicologia humana.
Empregado de Julius de Coster, o proprietário de uma empresa de abastecimento de navios, Kees Popinga leva uma vida respeitável e tranquila, sem grandes sobressaltos nem preocupações. Até que o seu patrão, confrontado com a inevitabilidade da falência financeira, decide fugir, simulando um suicídio. O sucedido opera uma profunda transformação em Popinga, que assume uma ruptura repentina com a sua rotina diária, profissão, mulher e dois filhos.
Após abandonar a família e Groninga, viaja até Paris, onde passa a viver numa marginalidade que desde sempre tinha ambicionado. Popinga é agora um lúcido assassino, que mata as suas vítimas com um inesperado sangue-frio, ao mesmo tempo que desafia as autoridades policiais ou escreve para os jornais de Paris a rectificar e comentar as notícias que são publicadas a seu respeito."
in: http://static.publico.pt/docs/cmf/autores/georgesSimenon/amanha.htm
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9 comentários:
Um dos livros de G Simenon que nunca li... infelizmente.
É realmente um dos melhores que li, mas ainda tenho por ler o famoso "Crime no Expresso do Oriente".
Efectivamente é um grande, grande livro, que já li também há cerca de 15 anos e que (já depois de eu o ter lido) foi publicado na colecção do PÚBLICO "mil folhas". Na altura gostei muito e pelo que o MC agora diz certamente que agora também irei gostar se o reler (o que nem sempre acontece quando relemos).
Carlos TENS DE LER!!!
Tonsdeazul, minha amiga, o Crime no expresso do Oriente é um livro mágico. Aquele final é sublime. Talvez o melhor desfecho de todos os livros policiais :)
(agora eu pregava-te uma bela partida revelando aqui o final) :)
SEVE, acho que ainda gostei mais da releitura do que da leitura :)
Vamos ver quando arranjo tempo para o Simenon. Tenho bastantes livros dele aqui em casa, em alemão, uma coleção do Maigret em livros de bolso, que o meu marido comprou em promoção, há bastantes anos. Não sei se são todos do Maigret, se também lá está este que leste. Vou averiguar :)
Cristina, este livro, embora não seja volumoso, é uma estória bem mais elaborada que as aventuras do Maigret. E acredita que vale bem a pena.
E lê-se num instantinho :)
Os livros do Simenon não costumam ser volumosos. E afinal, a coleção que temos inclui poucos do Maigret ;) Mas é difícil saber se este está incluído, já estive a dar uma vista de olhos, mas com os títulos em alemão... Pelo menos, não há nenhum que traduzido seja igual a este.
De qualquer maneira, Simenon é um autor que me interessa :)
Tenho de colmatar esta falha. E não me queiras estragar a leitura, Manuel! ;)
Fica o convite para conhecer o Clube do Crime, página dedicada ao catálogo policial da Companhia das Letras, que está republicando a obra de Georges Simenon no Brasil!
Site: http://www.clubedocrime.com.br/
Facebook: https://www.facebook.com/clubedocrime
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