“O Tambor” é a história de Óscar, um jovem que a vida fez anão, disforme e desprezado, na cidade de Danzig, a moderna Gdansk. Óscar, internado num hospital psiquiátrico após a segunda guerra mundial narra a história da sua vida, desde o nascimento no meio rural da Alemanha dos anos 20, até que a loucura da humanidade se confunda com a dele próprio e o encerre com os grilhões da normalidade. Nesse cárcere final Óscar revive o passado como se fosse o tambor a contar-lhe a história; na verdade, ele confunde-se com o próprio tambor que o acompanhou durante toda a existência. Ao longo da obra, Grass coloca várias vezes o tambor a falar na primeira pessoa, confundindo-se ele próprio com o personagem principal.
À medida que Óscar vai tocando tambor, vai-se apercebendo que ele se torna um instrumento de poder, como a flauta de Hemlin. É ele que faz o povo chorar, como a cebola que se descasca. É a ele que o povo segue, como os ratos seguem o flautista. É a sátira ao poder mas, principalmente à fraqueza de espírito de um povo despersonalizado, anónimo e apático. É a crítica à indiferença do cidadão comum perante as atrocidades da guerra. Óscar simboliza essa massa anónima que “toca tambor” enquanto a matança prossegue.
Óscar é um personagem frio, completamente imune a qualquer sentimento, exptuando o amor pela mãe. Pormenor marcante da narrativa: Óscar entrega o pai adoptivo, bem como o pai verdadeiro às tropas nazis sem qualquer piedade. A sua aparente loucura não é mais do que uma estratégia de sobrevivência.
Num mundo marcado por uma guerra em que se matam freiras que se confundem com franceses, e que perante as atrocidades de Hitler um povo toca tambor, o surreal emerge da superfície real das coisas. E a vida sobrevive, o sentido das coisas passa apenas por aquilo que está “à mão”, nada mais interessa; nem a Pátria, nem a família nem qualquer Deus. Tudo vive ao ritmo do tambor.
Ao longo de toda a obra, Grass deixa bem vincada a sua mordacidade, a sua escrita quase cínica, em busca do grotesco que emerge da vida. Toda a realidade se confunde com o grotesco e o fantástico, sem nunca sair da mais banal sobrevivência quotidiana. Por todo o lado, o sofrimento, mas um sofrimento normal, habitual, como se a vida não tivesse sentido sem esse sofrer. Nem que seja preciso descascar cebolas para chorar ou maltratar uma mulher para a amar. O sofrimento caminha sempre lado a lado com a vida e a felicidade.
6 comentários:
Continuo a seguir o teu blogue. Apesar das férias. Apesar de nem sempre comentar.
Agora estou com "No teu deserto", do Sousa Tavares.
Não me interessa o que se diz dele, muito menos que ele não tem em grande apreciação a nossa classe. Bolas, gosto de o ler!
Abraço amigo
Olá Teresa. ´Há tempos ofereceram-me o "Equador". Recuso-me a ler tal coisa. Se calhar tenho medo de gostar da escrita dele :)
Olá Manel
Primeiro: belas leituras de férias!
Segundo: avança sem medos para o "Equador", vale a pena, apesar do autor!
Terceiro: a temática do "Tambor" é comum a muitos autores alemães do pós-guerra.É a procura angustiada de uma resposta para um fenómeno que perece inexplicável, como o nazismo. O que levou o povo mais culto da Europa atrás do Tambor? Sabemos responder, somos professores: falamos das crises, da propaganda, etc. Mas fica sempre uma interrogação angustiante: como é que eu reagiria se estivesse "lá"? De que lado estaria eu? Também marcharia hipnotizada pelo rufar do tambor?
Bom regresso de férias e bom ano de leituras
Teresa
Exactamente, Teresa.
G. Grass viu o mundo cair-lhe por cima quando, na década de 90, confessou o seu passado "colaboracionista" no famoso livro "Descascando a Cebola". Mas isto é muito complicado... perante aquela estupidez colectiva e aquele medo todo... nem quero imaginar como eu próprio reagiria! Na verdade é muito fácil ficar sentado num sofá vendo televisão e chamar traidor a quem esteve no Inferno...
Boa noite Manuel. Só neste momento é que O li,por um acaso...e aqui estou embrulhando-me na leitura e conhecendo o diferente e que bem me soube..
"No teu deserto", de Sousa Tavares, e apesar de eu também pertencer à vossa classe, ao lê-lo concluo que as coisas e as pessoas nem sempre são o que parecem...
Manuel dê uma espreitadela e depois diga-me o que sentiu.
Inspirou-me o seu "relato" de Livro de Mia Couto...
Parece que vou ter mesmo de ler MST.
Prometo. Vou ler. Não se admirem é se, depois, aparecer aqui um comentário "a destoar" dos outros ;)
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