quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

4 e 1 Quarto - Rita Ferro

Óscar Wilde. Não um livro, mas a vida. Foi para onde o enredo desta obra me levou a mente, quando terminei a leitura. Há vidas que são feitas de excessos. É o caso dos quatro personagens principais desta obra. Um livro que desmistifica, destrói, arrasa, perturba.
Um livro que violenta descaradamente o nosso sossego apenas aparente em que a maioria de nós vive. É que há quem transponha os limites do interior e passe para a vida as tempestades que todos nós, os comuns, mantemos guardadas. Foi o que fizeram Nuno, Teresa, Carlota e Inácio, quatro amigos que repartem a cama, os instintos, o corpo. Não, a alma, não!
Desde logo o fogo do amor desgovernado é apresentado como uma competição, por vezes ferozmente desenfreada, outras vezes dissimulada.
Passada a euforia dos desejos libertados, o jogo do amor revela um descarado jogo de poder: Nuno subjuga Teresa com a sua cultura livresca e uma personalidade inquebrantável; Teresa e Nuno subjugam Inácio, o amante passivo e submisso; entretanto, Carlota altera as regras de jogo e subjuga todos os outros, incluindo o próprio Nuno, se bem que de forma transitória, porque a luta persiste e agrava-se.
A espaços, o triunfo da superioridade feminina: primeiro Teresa, depois Carlota avassalam Nuno e Inácio, mas tudo é efémero: o charme, o instinto social, armas de ataque, acabam inexoravelmente por revelar a fragilidade de quem ama.
Por vezes, o amor como doença ou vício que destrói: “nunca chega! Nunca basta”, lamenta Nuno. E o amor como metáfora do vida sob a forma de paradoxo:
- Gozando ou sofrendo? Pergunta Nuno.
- As duas coisas. O mal é bom. Responde Inácio.
Ou ainda “as coisas que importam não são ainda as que importam” (Teresa). Mero jogo de palavras? Não, é o jogo da vida, da ambivalência que existe em quase tudo o que fazemos e sentimos.
Ao longo da obra, vai-se revelando a fragilidade dos laços que unem o quarteto. A ilusão, a festa do corpo vai deixando de ser suficiente para camuflar a falta de amor, de conhecimento dos outros e, atroz, impõe-se uma espécie de egoísmo sofredor que invade aquele mundo que nunca deixou de ser dividido por quatro. (Interessante verificar como a explicação dos fenómenos interiores é mais acessível a quem lê do que aos personagens).
Ir mais longe na análise de todo o significado da obra implicaria aqui revelar parte do enredo e o seu desfecho. Por esse motivo, não resta outro remédio a quem lê estas palavras senão ler o livro.
Em suma, uma obra muito interessante ao nível da análise das paixões, na reflexão sobre o eterno peso dos preconceitos e, fundamentalmente, sobre o risco que é a vida. Transgredir determinadas fronteiras e pagar o preço da liberdade: eis o destino de quem vive desacomodado.

10 comentários:

Teresa Diniz disse...

Já folheei o livro e não me atraiu. De resto, esta autora tem uma escrita que não me cativa. Que hei-de fazer?
Bjs

Unknown disse...

Nada, Teresa. Quando assim é...
eu acabei por gostar por ser diferente, mas não perdes nada de extraordinário.

c.a. (n.c.) disse...

Excelente análise. Concordo consigo. Comecei a ler o livro, mas desisti quando ia sensivelmente a um terço, precisamente porque, ao contrário do que o título e a capa sugerem, o tema não é o amor mas sim as relações de poder (ou o poder nas relações), abordado, a meu ver, de forma superficial (ou demasiado «epidérmica» para o meu gosto...)
Em qualquer caso, nada a apontar à escrita em si, que é clara, «escorreita», agradável, e por isso se lê bem.

Poeta do Penedo disse...

Caro Manuel Cardoso
eu tenho lido todas as tuas excelentes análises aos livros que aqui nos apresentas, mas como não os li, não comento, porque comentar uma análise a uma obra que se não conhece, corre-se o risco de se fazer um comentário sem nexo.
Não li este livro (para variar), mas já tentei ler a autora. Estou como a Teresa: desisti. E porque cada um de nós é diferente, eu coloco a Rita Ferro naquele grupo de autores portugueses que escrevem bem, mas não para mim. Felizmente que a literatura portuguesa deu uma volta e surgem autores portugueses cuja escrita me é muito mais assimilável, que não me provoca digestões difíceis.
Até quando um livro que eu tenha lido, até quando Manuel Cardoso?
Com amizade.

Unknown disse...

Poeta, lembras-te daqueles programas radiofónicos de discos pedidos? Não queres pedir um livro? :) :):)

Anónimo disse...

Olá Manuel
Li esse livro e apesar de bem escrito, de cativar e prender...fica faltando algo.
Algo que no fim nos faça pensar que adoramos o livro e que temos pena de o voltar a colocar na estante.
Enfim, faltou isso e algo mais...
Um abraço
Cristina

Ana C. Nunes disse...

Depois de ler esta crítica, vou ter mesmo de comprar o livro.
Adorei ler isto.

MJ FALCÃO disse...

Mais do que o livro -que não li- gostei é da música! Parabéns!

Dominique Sampaio disse...

Primeira vez que comento e visito seu blog... Achei interessante a sua análise da obra, apesar de não conhecer a autora nem o livro. Quem sabe um dia eu esbarre com ele e acabe lendo-o?

Bjs!

Unknown disse...

Cristina
parece-me que (e também a julgar pela generalidade dos comentários) a literatura tem de ser algo mais mais que entretenimento. Talvez o que falte neste livro sejam ideias significativas para nós. Não andarei longe da verdade se disse que é um livro que não nos fala ao coração...
é um livro que cativa, que pelo menos na primeira parte desmistifica, arrasa ideias feitas mas depois... bem, eu confesso que não pude ir muito longe na crítica porque teria de desvendar parte do enredo, mas não resisto agora a ir um pouco mais longe: uma das coisas que me decepcionou na parte final do livro foi o tom pessimista e moralista que se descobre na mensagem da autora; desilude porque há formas de vida que não são necessariamente más. O ser humano tem capacidade para ser feliz em muitas e distintas circunstâncias...
A análise da autora é, de facto, demasiado epidérmica, como diz a c.a. e isso impede-a de admitir que podia haver esperança numa opção de vida como aquela; podia haver amor entre quatro pessoas; pode haver felicidade sem os padrões judaico-cristãos a que nos submetemos...
MJ Falcão, obrigado por gostares da musica; já várias pessoas ficaram entusiasmadas com estas músicas; isso surpreende-me porque não são artistas muito conhecidos. No entanto, devo dizer que acho estranhissimo como a Katie Melua e os "The Pogues" não têm mais sucesso e não são mais conhecidos em Portugal. Somos mesmo um país de gostos estranhos :)