Antes de mais nada quero afirmar que este livro constituiu,
para mim, uma bela surpresa. O facto de não ser adepto militante da literatura
fantástica talvez tenha contribuído para acentuar a surpresa. A ideia geral com
que fiquei após a leitura foi esta: a Andreia Ferreira tem futuro na literatura
portuguesa. É óbvio que não estamos perante uma obra-prima. Algo falta ainda para
que o “caso sério” seja um facto. Mas já lá vamos.
Em primeiro lugar, senti este “Soberba escuridão” como um
agradável transporte para o irreal. Esta, creio eu, deve ser a primeira meta de
um romance deste género literário. Foi plenamente conseguida: a escrita
objetiva, límpida, desprovida de adornos fúteis (como tantas vezes vemos por
aí) confere à narrativa esse agradável mérito de levar o leitor a aceitar com
facilidade a saída do lógico, rumo a mundos apenas construídos pelo sonho. Ou
pesadelo, obviamente.
A fronteira entre o irreal e o real vai-se tornando cada vez
mais ténue ao longo da primeira metade do livro para, sensivelmente a partir da
primeira centena de páginas o leitor conseguir aceitar o fantástico como
fazendo parte de um novo cosmos que Andreia Ferreira pacientemente foi tornando
lógico. É este crescendo que, no final, tornará quase inevitável a aceitação de
anjos e demónios como personagens lógicas da narrativa.
A tal linha estreita entre a realidade e a ficção é, afinal,
algo muito mais natural e diria mesmo trivial do que se imagina. Se refletirmos
um pouco, todas as nossas construções mentais, sentimentos ou perceções do mundo
são erigidas sobre esse limiar, influenciadas pelos dois lados. É difícil, na
nossa vida, separar os dois mundos. Porque haveríamos então de os separar na
literatura? A vida de Carla, afinal, não é muito diferente da de qualquer um de
nós. Ela foi um pouco mais além do que o comum dos mortais; pisou terrenos
desconhecidos para nós. Mas, o que serão esses mundos senão a loucura normal em
que todos por vezes navegamos? A loucura, o medo ou o trivial medo da loucura
são os terrenos marginais do fantástico que há na vida de todos nós.
Voltando à narrativa: há dois aspetos que, penso, valorizam
muito esta obra. Um deles é a leitura perfeita da vida de Carla enquanto
adolescente. O mundo da adolescência, nos seus dramas, sonhos e medos, estão
perfeitamente retratados nestes personagens. Um outro aspeto que pode parecer
lateral mas que encaro como fulcral no livro é a presença do gato. O Pequeno
fez-me lembrar algumas das melhores páginas de Murakami: o gato misterioso,
adensando mistérios mas também como elemento positivo naquele mundo de
pesadelo.
Gostava de terminar como comecei: reafirmando que Andreia
Ferreira pode vir a ser um caso sério na literatura portuguesa. Ainda não o é
porque falta, na minha opinião, dar o salto para a análise mais aprofundada da
alma humana; falta aqui algo de Dostoievski. Ou do nosso José Luís Peixoto. Não
o podemos exigir, é óbvio, a uma jovem escritora. Mas será esse o seu desafio:
entrar mais fundo no cosmos mental das personagens. Esquartejar sentimentos,
conflitos interiores. Sair um pouco da narrativa. Isso levaria Andreia Ferreira
a sair do domínio do fantástico. Mas é nisso que consistem as obras-primas: em ultrapassar
limites. Estou certo que será esse o caminho desta jovem autora bracarense.
1 comentário:
Não é bem um gênero que me seja íntimo, mas gosto sim. Os limiares me atarem, sobretudo.
Beijos,
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