Sinopse:
Publicadas pela primeira vez em 1978, essas seis narrativas breves e tensas evidenciam as raízes do maravilhoso em Saramago.
Absurdas, líricas, irônicas, elas traduzem um capitalismo em agonia, atmosfera de fim de linha, de sociedades em que os bens de consumo circulam às expensas da própria vida. Daí a escrita que se move em ciclos, emulando ritmos alternados de crise e prosperidade, parodiando a circulação também incessante, distanciada e sem sentido das mercadorias. E, apartada do mundo, a consciência elabora sua vingança. Talvez a maior de todas seja a linguagem, que se destina a ferir e referir as coisas a distância. Daí o permanente poder de crítica desses escritos, capazes de fundir, com extrema habilidade e conhecimento de causa, o poético, o político.
(in http://www.skoob.com.br)
Comentário:
Sendo uma das primeiras obras de ficção da carreira
literária do Grande Mestre, este livro de contos surpreende pela maturidade
literária e pela mestria com que Saramago se expressa neste difícil género que
é o conto.
Muitas vezes tenho afirmado não ser adepto de contos, pela
dificuldade de encontrar obras de qualidade neste género. Infelizmente, para
muitos escritores, os contos são devaneios momentâneos, obras menores fruto de
inspirações isoladas e aos quais falta a devida profundidade de análise. No
entanto, para os génios, um bom conto é
uma obra de arte. É o caso de muito poucos livros; é o caso deste livro.
Mais do que narrativas empolgantes, estes contos são
poderosos exercícios literários, onde Saramago alia uma imaginação fertilíssima a um toque de surreal mesclado com um sentido
de humor discreto mas eficaz. Por outro lado, a sátira, essa arma poderosa que Saramago maneja como poucos.
O primeiro conto, por exemplo, A Cadeira, é um exercício literário notável em torno da cadeira de
onde caiu Salazar. Decrépita a cadeira, decrépito o ditador. Notável o
simbolismo do “bicho” da madeira, destruidor do assento do ditador, em paralelo
com a força humana que derruba ditaduras; o bicho como o operário. O objeto
(cadeira) como o sustentáculo do poder que ruía graças ao trabalho do “bicho”.
O segundo conto, o Embargo,
é uma estória surreal de um homem que sai para o trabalho e fica
misteriosamente preso ao assento do automóvel. O desespero do homem, vítima da
tirania tecnológica e o desespero de um carro que devora gasolina num tempo de
embargo à importação de combustível aos países árabes. Uma obra genial de
sátira política.
No terceiro conto, Refluxo,
um gigantesco cemitério torna-se o centro do Reino; a obra do regime. Havia que
erradicar a morte da cidade e trazer todos os mortos para aquele cemitério,
rodeado de muros enormes, onde os cadáveres seriam isolados da vida feliz dos
vivos. Erradicar a morte. No entanto, ela viria a triunfar. E a morte voltaria
a reinar sobre a cidade. E nem o rei, na sua imensa sapiência e no seu
intocável poder haveria de lhe resistir.
O livro atinge os
píncaros da beleza literária numa pequena obra-prima que é o conto Coisas. Coisas
que desaparecem, um relógio que não avança, um sofá com febre, enfim, um
chorrilho de absurdos. Até que o desaparecimento das coisas se torna uma praga
incontrolável e o caos instala-se na cidade. Tudo são objetos, os homens quase objetos, autómatos perante um poder tão
poderoso quanto ineficaz, tão tirânico como absurdo. Os homens, tornados
objetos numa burocracia kafkiana, desesperam perante essa tirania maior, à qual
nem os tiranos resistem: a tirania das coisas. No entanto, essas coisas com
vontade próprias não são mais qua vontades humanas; vontades de uma réstia de humanidade
que, afinal, se escondia na minoria que resiste. Porque há sempre alguém que
resiste. Há sempre alguém que diz não.
Este conto é, na minha opinião, um verdadeiro épico do
absurdo que há na realidade. Um hino à arte de bem escrever, com um final
verdadeiramente SOBERBO.
Imagem de pintura
mural de autor desconhecido, extraída do blogue http://objecto-quase.blogspot.pt/
4 comentários:
Olá Manuel :D
É difícil passar por cá e não comentar, sobretudo quando os posts são sobre obras do Saramago.
Não li (ainda) este "Objecto Quase", mas graças ao seu comentário vou procurar fazê-lo rapidamente. Não o farei apenas por se tratar de Saramago, mas porque tenho sentido dificuldade (acredito que mais ignorância que outra coisa) em encontrar autores portugueses que dominem a arte do conto.
Ainda há pouco tempo comentei em- http://numadeletra.com/27017.html#comentarios
-a forma como fui alterando a percepção que tinha sobre esta forma de arte. Junto apenas à tal lista um livro que li no ano passado e que é uma preciosidade "A Lojas de Canela" de Bruno Schulz (absolutamente ímpar)
Se o próximo Saramago for "Caim" digo já, em jeito de provocação :P, que, e apesar de adorar a escrita de Saramago, foi o que menos gostei, ao ponto de pensar de depois do "Evangelho" não era necessário regressar a este tema (mas vou passando por cá)
Boas Leituras:)
Pois é,C. Eu também tenho muitas dificuldades em encontrar contos que me satisfaçam. Sabe sempre a pouco ou então parecem meros exercícios literários, sem grande interesse.
Nunca li nada de Bruno Schulz mas já anotei a sugestão.
O próximo é mesmo Caim e parece que estamos em sintonia; até agora não vi nada de novo... a não ser um sentido de humor muito refinado. Talvez por incapacidade minha ou então por só ir a meio, não vejo onde é que Saramago quer chegar com uma leitura tão sui géneris (ou ardilosa?) da Bíblia.
Um abraço
E pronto, por culpa do Manuel Cardoso, lá chegou hoje, via postal, o meu Objeto Quase. Sou um ávido de José Saramago e guardo dois ou tres livros para continuar a ter o prazer de descobrir mais obras novas, nos anos vindouros, do mestre. Mas depois deste post, não resisti a antecipar as coisas, não vá o diabvo tecê-las.
:) eu tambémtenho dois ou três para ler mais tarde: Clarabóia, "aquele do elefante" e o que ele escreveu em jovem, nãolembro o nome...
Mas o Objeto Quase tens mesmo de ler. :)
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