O pano de fundo de “As pessoas felizes” é o Porto burguês dos últimos tempos do Estado Novo. A cidade e a região são dominadas socialmente por uma burguesia de carácter forte, tradicionalista, aparentemente aberta mas profundamente marcada pelas regras de um conservadorismo que situa a meio caminho entre a base rural e um formalismo urbano anacrónico. No entanto, o formalismo é imprescindível à manutenção de um cosmos social rígido e que se procura perpetuar. Os tempos são de crise, as dificuldades económicas e as convulsões sociais parecem abalar esta sociedade petrificada mas esta sobrevive num estertor de desespero e resistência.
As convenções enleiam as pessoas numa teia dentro da qual elas procuram ser felizes. Mas trata-se de uma felicidade bem delimitada por essa mesma teia: tudo se passa como se o mundo burguês fosse um microcosmos onde nenhuma emanação do espírito pode penetrar. A vida interior é algo que a personagem principal (Nel) traz para esse mundo mas é precisamente essa vida interior que não lhe permite fazer parte desse conjunto de pessoas felizes. O mundo da aparência tem de triunfar, mesmo que isso signifique a castração do ser humano enquanto ser pensante e individual. Por isso, Nel é a ameaça à estabilidade da família; ela representa os tempos perigosos que se aproximam (o enredo desemboca nos inícios dos anos 70) e não apenas a mulher desprezada na sua qualidade de ser desprovido de senso. A exclusão de Nel é a exclusão do individualismo, do espírito crítico, do pensamento autónomo. Ser mulher é, neste enquadramento mental, por si só, um factor de exclusão a não ser que ela se enquadre num esquema hierárquico onde assuma um papel de sevícia ou de idolatria: a mulher só pode ser respeitada se inspirar admiração ou viver na submissão. Qualquer existência individual que escape a esta concepção hierárquica da sociedade, é rejeitada.
Num estilo profundo, trabalhado e comprometido, Agustina transpõe para este livro o sentimento de uma mulher “do Norte”, tão encantada quanto desiludida perante a beleza de uma região e a altivez de uma sociedade desprovida daquela dimensão humana que permitiria a sobrevivência do ser individual e autónomo.
É esta a impressão que me fica deste livro: um intenso lamento perante uma elite social de coração empedernido, acomodada a valores anacrónicos e defensora de paradigmas mais velhos que o vinho que fez a prosperidade da região.
Não é um livro fácil porque a alma humana nada tem de fácil; e porque não é uma estória que Agustina nos conta; é uma reflexão sentida e complexa de uma escritora genial. Nobel, diria eu.
8 comentários:
Olá Manuel,
Ainda não li nada da autora. Quando passar pela livraria vou ver. Fiquei curiosa...
Um abraço :)
Olá Paula, eu também não tinha lido nada dela. É uma escrita profunda, sentida, complexa e por vezes complicada. Exige algum esforço e cheguei a pensar, a meio do livro, se valeria a pena continuar o esforço. Mas penso que acaba por valer a pena.
Um abraço.
Olá Manuel, grata surpresa a minha ao vê-lo entre meus amigos do blog, estou maravilhada com que encontrei aqui, já que não fico sem um livro de cabeceira...Como a Paula disse acima, fiquei também curiosa e com certeza estarei procurando nas livrarias aqui em SP...obrigada pela dica, ...:)
Te convido pra conhecer meu outro espaço, o Tudo mais um Pouco...lá escrevo um pouco mais no que no Palavras...
Abraços pra ti...:)
http://andreabgalvez.blogspot.com
Ola Manuel, uma vez mais, é certo e sabido que existem autores intensos e que por vezes de tão intensos amedrontam o leitor, é o caso de agustina bessa-luis que não é uma escritora facil, mas claro, que tal como o manuel referiu, é recompensador no final. eu sou da opiniao que quando nao dá é melhor parar. e continuar noutra fase. ou entao ir lendo muito devagar, senão pode ser traumatizante e nunca mais sequer se conseguir olhar para um livro desse autor.um abraço manuel é sempre bom poder voltar ao seu espaço e comentar excelentes artigos. um abraço e ate breve.
nuno chaves
Olá Manuel,
A crítica que fez deixou-me cheia de vontade de ler Agustina, cuja autora ainda não deixei que me deslumbrasse pela sua escrita (por falha minha, admito).
Continue a alimentar o seu blog com as suas opiniões tão cativantes. Passarei por cá mais vezes.
O meu blog é: http://favouritereadings.blogspot.com/
Um abraço,
Joana
Olá Manuel,
Ainda recordo quando li pela primeira vez Agustina, eu que no começo, ainda que goste, adore ler, ler é viajar para mim, pensei será que vou gostar e como ouvia as mais variadas opiniões, confesso que fui totalmente surpreendida e apaixonei-me pela sua forma de escrever que não é de todo fácil, mas que me fascina, gosto de profundidade, talvez porque eu própria tenha facilidade em recuar e avançar e voltar a recuar e, depois retomar de novo, até os meus amigos me dizem isso, não perco o raciocínio...,e vou até ao fundo, aprofundo o mais que puder e souber...
Excelente este post e muito bem dedicado.
Abraço de Luz
Olá amigos (as) Andrea, Nuno, JM e Luz. Obrigado pela vossa preciosa participação. Parece que estamos todos de acordo numa coisa: ler também é um desafio. Quando não se gosta "à primeira", concordo em absoluto com o Nuno, devemos por de parte, pelo menos provisoriamente. Mas, de vez em quando, faz bem ao espírito fazer um esforço. Esta conversa dava pano para mangas: ler deve ser diversão, viagem, como diz muito bem a Luz. Mas pode também ser aventura; e uma boa aventura requer uma certa dificuldadezinha.
A este propósito até aproveitava para referir um autos que é o mais brilhante neste aspecto, de desafio à inteligência e à imaginação. Um autor muito difícil, mas tremendamente compensador quando se chega ao fim: Wiliam Faulkner. Penso que tenho neste blog 2 ou 3 apontamentos sobre livros seus que li em tempos.
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