terça-feira, 13 de julho de 2010

Coração das Trevas - Joseph Conrad

Em finais do século XIX Conrad, antes de se tornar escritor, foi um marinheiro polaco (nessa altura sob o domínio da Rússia). Portanto, este livro tem fortes traços auto-biográficos, sendo possível associar Marlow, protagonista deste livro, ao próprio autor.
Isabel Fernandes, no excelente prefácio desta edição (editora Vega) salienta a forte e múltipla simbologia da noite nesta obra, bem como em outras de Conrad. De facto, todo o enredo, toda a viagem fantástica de Marlow decorre entre sombras, escuridão e trevas, dando à obra um notável tom de beleza nocturna, nostálgica e triste.
Marlow é um marinheiro que empreende uma viagem ao interior de África, subindo um rio, entre a tenebrosa selva da África tropical. O objectivo da viagem é encontrar o fantástico kurtz, um homem misterioso que se embrenhara na selva e por lá ficara. Este enredo terá dado p mote ao grande filme de F. F. Copolla, Apocalypse Now.
O pano de fundo deste enredo é a moderna colonização de África, no final do século XIX, por parte (principalmente) da Inglaterra e da França. Época de mudança para a moderna sociedade industrial capitalista, época de charneira, de ponte entre dois séculos e duas mundividências.
Logo no discurso inicial de Marlow é notória a apologia da “missão” civilizadora da Inglaterra, face a África, camuflando (obviamente) o interesse económico na aquisição de marfim e de matérias-primas para as grandes indústrias emergentes do capitalismo triunfante.
Relativamente à visão dos indígenas, que alguns associaram a um certo racismo, penso ser visível alguma influência do Bom Selvagem de Rousseau – indígenas ingénuos embora agressivos na defesa da sua terra, do seu mundo.
 Tudo neste livro é, no entanto, misterioso (impressionante a forma como, ao longo do livro, Kurtz vai sendo apresentado como um ser misterioso) e tenebroso. O episódio do ataque dos indígenas é genial na forma como é descrito, com notável emoção. Conrad consegue criar um ambiente de medo, de imprevisibilidades, transformando a escrita numa teia envolvente, capaz de enredar o leitor numa prisão da qual não consegue, nem quer, libertar-se. Um dos momentos mais dramáticos do livro, quando o homem do leme é atingido pelas flechas dos indígenas, transporta uma tremenda carga simbólica – é a morte do homem que guiava todos os destinos; tudo isto envolto em nevoeiro, sombras e escuridão.
Kurtz, no entanto, continuava a ser a meta, o farol que persiste para lá da escuridão. E continua a envolvência do mistério, com toda a insuficiência de palavras que a realidade impõe, nunca explicando tudo, talvez porque nada é totalmente explicável.
E eis que o mistério maior é desvendado: Kurtz é apresentado. Ele sacrificara a sua vida pelo marfim. Matara pelo marfim. A sua vida, no entanto, realizara-se na selva. Fora dela fica a morte. Misturou-se com ela, diluiu-se nela, como que formando um ser único e indivisível.
À medida que o barco descia o rio, no regresso, a vida de Kurtz “esvai-se rapidamente, vazando, vazando o seu coração para o mar do tempo inexorável” (!). E a escuridão continua medonha.
Kurtz descobrira o horror. Vivera na sombra cinzenta da morte. E tivera algo a dizer: “ele era um homem notável”, conclui Marlow, o narrador marinheiro, alter-ego de Conrad.

1 comentário:

Ricardo Antonio Lucas Camargo disse...

Este se coloca dentre os meus romances prediletos desde 2008. Chama-me a atenção a história de uma lealdade que se deteriora até se converter, pelo abandono, em uma feroz hostilidade, bem como a reflexão acerca da impotência da Razão para conter a Besta que habita dentro de todos nós. Ligações com Os quatro Cavaleiros do Apocalipse, de Blasco Ibañez, vêm a aflorar naturalmente.