Quem leu “Os Livros que Devoraram o Meu Pai” e “Enciclopédia da Estória Universal” não esperava uma coisa destas! Depois de dois livros bem divertidos, em que a fantasia e o humor predominam, eis um livro bem sério. Um caso sério, diria mesmo. Magnífico. Não me canso de escrever esta ideia: a nova literatura portuguesa tem verdadeiras pérolas por explorar.
Afonso Cruz demonstra neste livro uma grande versatilidade. Esta obra é um verdadeiro ziguezague de ideias. O leitor entra, direitinho e certinho numa história de guerra passada na cidade alemã de Dresden, durante a segunda guerra mundial mas dá por si, passadas algumas páginas a ziguezaguear entre as mais díspares personagens, em diferentes espaços e tempos. E assim vai deambulando pelas páginas, vai-se perdendo e, a espaços, tem a sensação de voltar a cruzar caminhos com os que já percorrera. Como se se tratasse de um labirinto em que percorremos tantos corredores que de vez em quando nos surpreendemos ao encontrar as nossas próprias pegadas.
Num tom manifestamente surrealista, com um estilo límpido e claro, este livro prima pela originalidade. A linguagem simbólica surpreende-nos com ideias aparentemente estranhas mas carregadas de significado. Alguns exemplos:
- Vogel reza recitando as letras do alfabeto hebraico porque Deus limita-se a jogar Scrabble – as pessoas enviam-lhe as letras e ele arruma-as em novas palavras, correspondentes às necessidades de quem reza. “E Deus nem é um grande jogador, como se vê pelas bombas que caem lá fora”.
- Na loja de pássaros de Vogel, as gaiolas eram metáforas; algumas gaiolas existiam dentro dos pássaros, porque se abríssemos a gaiola de fora, eles não fugiam. Porque a maior gaiola é a liberdade. É por isso que os pássaros não fogem. E por isso Vogel vivia entre metáforas. É dentro de nós que podemos ver as prisões e o mal, quando fechamos os olhos.
- Enquanto caem as bombas, Boifaz Vogel continua a vender pássaros. As pessoas compram pássaros entre toneladas de bombas. Deus teria de fazer um puzzle para reconstruir a cidade de Dresden: juntar morte mais morte para formar vida.
E quem é, afinal, o Kokoschka do título? Um personagem secundaríssimo mas que transmite uma ideia fundamental do livro: Oscar Kokoschka mandara fabricar uma boneca igualzinha à sua ex-apaixonada (Alma, que havia sido esposa de Mahler). Levava a boneca para todo o lado; até a levava à ópera. Como nós, os comuns dos mortais. Quem de nós não costuma levar as suas bonecas à ópera. Ou, por outras palavras, quem de nós não costuma exibir as nossas aparências, as nossas ficções?
Não é só Oscar; todos os personagens são secundários, perante a primazia das ideias ziguezagueantes deste livro.
Um livro original, profundo, simplesmente bem escrito.
Ah, e a arte. A arte que está por todo o lado neste livro. Duchamp. Schiele. Klimt. Os artistas que a vida imita.
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