O ESTILO
“Esposa e companheira
de Adão Kadmon: Heva, Eva nua. Ela não teve embigo. Contempla. Ventre sem jaça,
bojando-se ancho, broquel de velino reteso, não, alvicúmulo trítico, oriente e
imortal, elevando-se de pereternidade em pereternidade. Matriz do pecado”
Esta simples passagem (da tradução de António Houaiss na
Difel) demonstra bem a dificuldade de tradução e de leitura desta obra. Não é
por acaso que escasseiam as traduções e que este livro adquiriu a reputação de
leitura difícil.
O monólogo interior é um técnica egocêntrica. Joyce escreve
para ele mesmo, da mesma forma que as personagens "falam” para elas mesmas. O
que se escreve são, muitas vezes, simples tópicos do raciocínio do narrador ou
personagem. Esta técnica não deixa de exprimir um certo realismo: porque a
nossa mente é livre, todos nós pensamos para nós próprios e só cada um de nós é
capaz de entender corretamente os seus próprios pensamentos. Escrever como quem
pensa, por vezes com frases e palavras inacabadas, é uma estratégia que contribui para o elevado
grau de dificuldade na leitura deste livro. Outras palavras são mesmo
inventadas, porque a mente não se submete a gramáticas nem acordos
ortográficos. E também porque nenhuma gramática nem nenhum dicionário seriam
capazes de conter todo o pensamento.
Por vezes a amálgama de pensamentos provoca um certo efeito
humorístico quando, por exemplo, se misturam citações de Shakespeare com temas
banais como o preço das maçãs. Mas é assim mesmo a nossa mente.
Também o formato da obra é complexo: cada capítulo tem o seu
estilo, desde a representação teatral até a um inacreditável parágrafo de mais
de 30 páginas de monólogo, narrado pela esposa infiel e boémia.
Para o leitor, a técnica narrativa do monólogo interior é
algo monótona e até maçadora. Mas é assim o pensamento humano – quão maçador
seria se qualquer um de nós escrevesse todos os pensamentos que lhe ocorrem! Os
pensamentos de Bloom entrecruzam-se em diferentes sensações e interrompendo
raciocínios, levando o leitor a becos sem saída como as ruas mais esconsas de Dublim.
Uma narrativa por vezes surreal e a arte de bem escrever levam Joyce até uma
espécie de barroco formal, radicalmente subjetivo. O leitor, muitas vezes
perdido nestes devaneios formais, dá-se conta que a forma se sobrepõe muitas
vezes ao conteúdo, transportando o livro para um colorido fogo de artifício.
O primado do pensamento está sempre patente: o padre Conmee,
por exemplo, revelando um comportamento moral exemplar vai desenrolando
pensamentos profundamente imorais, escandalosos, desmascarando todo o seu mundo
interior.
O ENREDO
O Senhor Bloom vagueia pela cidade de Dublin como Ulisses no
regresso da guerra de Troia. Odisseu (Ulisses na aceção latina) levara dez anos
na sua viagem de Troia até Ítaca. Leopold Bloom leva dezoito horas desde a sua
saída até ao regresso a casa; Ulisses deixara para trás a guerra de Tróia, onde
se tornara herói, recorrendo ao famoso cavalo de madeira que dera a vitória aos
atenienses; Bloom deixa para trás um périplo pela cidade onde comprou rins de
porco para o pequeno-almoço da esposa, uma visita aos correios para levantar a
carta da amante, uma visita ao jornal onde trabalha, um funeral, além de um
passagem por um bar de onde é expulso e por um bordel onde apanha uma notável
bebedeira.
Molly é Penélope. Mas enquanto a heroína grega é a esposa
fiel que esperou Ulisses durante 20 anos, Molly é a esposa perversa, adúltera
que termina o livro recordando aventuras obscenas.
O aspeto mundano, mesmo obsceno, da obra está patente por
todo o livro; por exemplo, o funeral é visto como a cerimónia da pompa da
morte, algo cerimonioso mas sem qualquer misticismo. A narração da cerimónia
termina com reflexões mundanas de Bloom, algumas obscenas, outras cruéis,
horripilantes. “Paz às suas cinzas”, exclama Hynes, amigo de Bloom – uma visão
profundamente materialista da vida e da morte.
Joyce coloca na voz de cidadãos ébrios irlandeses uma série
de juízos muito críticos em relação aos estrangeiros e particularmente aos
judeus. Bloom é um dos visados, simplesmente por ser judeu. Esta xenofobia é
uma das razões pelas quais o autor assumiu posições muito críticas em relação à
sua pátria, não só por razões políticas e religiosas mas também por este
obscurantismo.
À medida que o enredo progride vai-se acentuado o tom jocoso
da crítica acérrima à igreja, ao mesmo tempo que a descrição de cenas boémias
se vai adensando em linguagem obscena.
No auge da orgia, a narração assume um tom surrealista, com
pormenores impensáveis, como a entrada em cena de Shakespeare, em diálogo com
Bloom, Dedalus (que representa Telémaco, o filho de Ulisses) e as prostitutas.
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA OBRA
Joyce relativiza e distorce o tempo: a história humana reduzida
à história do “eu”. Todo o cosmos se transformou numa espécie de micro cosmos,
numa vida interior condensada em menos de vinte e quatro horas.
Trata-se de uma obra em que o espírito irlandês está bem
patente: sobre um fundo de misticismo e religiosidade quase fanática,
desenham-se vidas boémias e mesmo devassas.
Joyce consegue colocar em causa todos os padrões literários,
artísticos e mesmo morais da época, obtendo uma brilhante simbiose entre dois
polos bem afastados entre si: a cultura grega, com toda a sua mitologia, feita
de heróis e lições de moral e, por outro lado, a arte bem irlandesa de beber
até cair.
O primado do pensamento atinge o seu auge no capítulo final:
Molly Bloom, uma Penélope devassa, carregada de um erotismo radical, exprime-se
numa linguagem chocante e obscena. É o culminar de uma obra onde o classicismo
é transportado para o mundo dos sentidos; talvez seja esse o valor maior desta
obra tão marcante na literatura do século XX.
Todos nós encaramos o gregos antigos como criadores de
mundos carregados de ideias solenes; os criadores da filosofia e de grandes epopeias.
Mas este Ulisses é a expressão de um herói carnal, profundamente humano, carregado de instintos.
Penélope / Molly supera todas as fronteiras da moralidade
burguesa da época em que Joyce escreveu (entre 1914 e 1921). Estamos perante
uma Penélope feminista e libertária, a anunciar novos tempos.
Em conclusão: trata-se de uma obra difícil, muito complexa,
tanto pelo estilo como pelas inúmeras referências (explicitas e implícitas) ao
universo homérico. A Odisseia está por todo o lado e não é um leitor comum, como
eu, que consegue identificar a maioria dessas relações. Por outro lado, Joyce
escreve como quem pensa; como se escrevesse apenas para ele mesmo, obrigando o
leitor a um esforço “homérico” para seguir os seus raciocínios.
5 comentários:
Com camandro, conseguiste ler "Ulisses" de Joyce?
Clap! Clap! Clap!
Confesso-te que por duas vezes o tentei ler e por duas vezes cheguei à pág. 20, mais ou menos. Não consegui, tal o aborrecimento.
A Odisseia de Homero, adoro!
Mas este Ulisses?
Acho que nunca, e não coloco minimanente em causa a qualidade e a importância da obra.
Abraço!
depois de "A Montanha Mágica – Thomas Mann" agora "Ulisses - James Joyce", onde vai para tu Manuel?
Bem referindo-me a este Ulisses e pelo teu comentário não o devo ler para já... ainda estou muito "verde" para tal.
Abraço
Manuel estou deveras impressionada!! É mesmo como o Ângelo diz, primeiro Thomas Mann, depois Joyce... Duas obras deste calibre lidas num curto espaço de tempo, é obra!! :)
Depois de ler a tua opinião, não creio que consiga ler Ulisses tão cedo...
Estou a ler todos os livros traduzidos pela Relogio D'Agua (o ultimo dele foi Cartas A Nora) e vão lançar Ulisses lá para Abril ou Maio. Já li vários revciewa (incluindo este) em que Ulisses é um livro que exige máxima concentração. Vamos lá a ver o que se espera deste desafio...
http://www.facebook.com/sergio.knight1
Iceman
confesso que custou. Tive de ler umas coisas sobre a obra e nem assim consegui compreender tudo o que Joyce quis dizer. Mas não devo ser o único... :)
Angelo
o que vem a seguir? Talvez o Corão, ou A Bíblia, ou o Tao :)
tonsdeazul
lamento se desincentivei a leitura :( não era esse o propósito mas, na verdade, é uma leitura complicada... foi dos poucos livros em que estive prestes a desistir...
Anónimo
não sabia que ia haver uma edição portuguesa. Se não estou em erro este livro só foi traduzido em Portugal nos anos 80 e a mellhor tradução é brasileira... portanto, espero que essa edição traga uma boa tradução portuguesa.
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