Dois desiludidos da Revolução: Jorge, o intelectual decepcionado, escritor mas apenas professor e Joel, apenas funcionário, anónimo da classe média, desiludido com tudo. Um homem que se defende da vida escondendo a esperança.
A uni-los, além da desilusão, a mentira envergonhada de uma filha, a de Jorge, missionária e um filho, o de Joel, preso por tráfico de droga. Destinos semelhantes, afinal. Alienados, na visão dos pais.
Grande parte da genialidade deste romance reside no facto de Mário de Carvalho expor de forma bem-humorada uma visão extremamente pessimista da realidade: o saber é desprezado em benefício da imagem, as ideologias são submetidas às conveniências, aos interesses pessoais, o mérito é substituído pelo arrivismo oportunista. Exemplo maior deste profundo lamento é a crítica irónica mas mordaz ao Partido Comunista (o livro foi publicado em 1995) onde o ingénuo Joel quer inscrever-se mas depara com os maiores obstáculos, devido ao elitismo ideológico e à sua fiel guarda-costas, a burocracia.
Mário de Carvalho é um escritor único. Ainda por explicar está o facto de não ser normalmente incluído entre os grandes nomes da literatura portuguesa contemporânea. Talvez porque Mário de Carvalho não gostasse de vir a ser homem de Panteões; talvez porque nunca tivesse desejado ser escritor de guiões de telenovelas disfarçados de romances de 500 páginas; talvez porque os nossos sorumbáticos, sisudos, sonolentos e cinzentos críticos literários não gostem de quem sorri escrevendo. Talvez os nossos Torquemadas da literatura não apreciem o riso. Afinal de contas esse é uma das grandes marcas da nossa História: o riso é a antecâmara do pecado. É sempre preferível a serenidade, a paz do estar bem com todos.
Mário de Carvalho é talvez o melhor escritor português contemporâneo no domínio da ironia e da crítica social e política. Muito do pior que há em nós está nos seus livros: um clericalismo pacóvio retratado aqui, por exemplo, pelo bispo de Gundemil que mordeu um cão e um espírito revolucionário moribundo, abafado pelas leis da ordem mas também auto-castrado, degenerado em ideais anacrónicos e ambições líricas de poder. E a imprensa, o tal poder paralelo aqui representada por Eduarda Galvão, repórter de uma revista aspirante ao estatuto da “Maria”.
Mário de Carvalho escreve sorrindo. Um sorriso ora trocista, ora deleitado com a sua própria criação, ora acompanhando um piscar de olhos ao leitor com quem mantém um permanente diálogo cúmplice.
Para terminar deixo-vos aqui a advertência com que o autor inicia o seu livro e que diz muito do seu conteúdo:
Advertência:
Este livro contém particularidades irritantes para os mais acostumados. Ainda mais para os menos. Tem caricaturas. Humores. Derivações. E alguns anacolutos.
Está tudo dito!
10 comentários:
É tão bom rir.
E é bom saber rir de nós próprios.
O sentido de humor é uma qualidade
muito apreciável.
Tenho por aí alguma coisa de Mário de Carvalho, mas acho que nunca li nada.
Bolas!Os dias deviam ser maiores...
Isabel
Acredita Isabel, tens de ler! Eu sei que vais gostar. Daquilo que tens escrito nestes comentários que tenho o prazer de ler por aqui, já dá para conhecer os teus gostos e por isso te digo: vais gostar!
Tenho-o cá. Fui ver na estante.
Daquela colecção "Mil Folhas".
Mas quando vou arranjar tempo? Tantos que tenho para ler...
Isabel
Bom, Manuel,já o li e gostei muito.
É um livro bem humorado e diverti-me bastante a lê-lo.
Mais um que continuaria no seu canto na estante se não fosse o teu comentário que me deixou curiosa.
( Como escolhes os livros?)
A escrita de Mário de Carvalho é sempre neste registo? Gostei imenso dessa tal "cumplicidade" com o leitor.
Valeu a pena a leitura nestes dias cinzentos de Inverno!
Um abraço
Isabel
E UM FELIZ ANO NOVO!
(Qual vai ser a Primeira leitura deste 2011?)
Isabel
Olá Isabel.
Fico muito feliz por teres gostado do Mário de Carvalho e por ter sido eu a dar-te a dica :)
Como escolho? Não sei bem, mas há algumas regras que sigo: regra geral nunca leio novidades; espero que outros leias primeiro :) (safado, hem?) :)
Prefiro sempre livros que já tenham "provas dadas". Informo-me sobre o assunto, sobre o escritor... às vezes também apanho barretes mas felizmente é raro. O importante é não ficar preso à propaganda nem às opiniões daqules criticos literários com ar de agente funerário :) É fugir deles. Depois há opiniões que para mim são determinantes. Indico-te 3 pessoas: a Paula do Viajar pela Leitura, o Iceman do NLivros e o Nuno do Página a Página. Se eles gostaram eu gosto quase de certeza.
O que estou a ler? Já li Murakami (O Elefante evapora-se) mas ainda não me apeteceu fazer o comentário. E estou a ler um italiano que desconhecia e está a ser uma bela surpresa: A Solidão dos Números Primos, de Paolo Giordano.
Um beijinho e um grande 2011 para ti.
onde escrevi "leias" queria dizer, obviamente, "leiam".
Olá Manuel
já tinha ouvido falar da "Solidão dos Números Primos" não sei onde. Vou esperar pelo teu comentário.
Também costumo ver todos os dias o "Viajar pela leitura" de que gosto muito.O NNivros descobri-o há poucos dias por acaso.Já tenho visto por aqui comentários do Iceman, mas desconhecia o blogue.Agora também lá vou todos os dias.Ao "Página a página" acho que nunca fui.Vou ver e adicionar aos favoritos.
Estou uma viciada.Estas rondas pelos meus blogues preferidos fazem parte do meu dia.Porque finalmente descobri mais gente que adora este mundo dos livros.
Por aqui vou trabalhando e intervalando espreitando um e outro dos "meus" blogues.
Obrigada por sempre responderes.
Isabel
Sou retardatário.Só comecei a ler Mário de Carvalho em 2010,precisamente com este livro.Depois, li quase tudo o que me apareceu.
Gostei especialmente de:
"Um Deus passeando na brisa da tarde".
Olá João
eu só o descobri em 2010 e por isso ainda só li três. Mas vou continuar porque é um escritor genial que só não é mais divulgado devido a circustâncias que eu não entendo...
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