Sinopse
"«Há muito que Raimundo Silva não entrava no castelo. Decidiu-se a ir
lá. O autor conta a história de um narrador que conta uma história,
entre o real e o imaginário, o passado e o presente, o sim e o não. Num
velho prédio do bairro do Castelo, a luta entre o campeão angélico e o
campeão demoníaco. Raimundo Silva quer ver a cidade. Os telhados. O Arco
Triunfal da Rua Augusta, as ruínas do Carmo. Sobe à muralha do lado de
São Vicente. Olha o Campo de Santa Clara. Ali assentou arraiais D.
Afonso Henriques e os seus soldados. Raimundo Silva ""sabe por que se
recusaram os cruzados a auxiliar os portugueses a cercar e a tomar a
cidade, e vai voltar para casa para escrever a ""História do Cerco de
Lisboa"". Uma obra em que um revisor lisboeta introduz a palavra ""não""
num texto do século XII sobre a conquista de Lisboa aos mouros pelos
cruzados.» (Diário de Notícias, 9 de Outubro de 1998)"
Comentário:
Sem que saiba explicar muito bem porquê, este foi um dos
livros de Saramago que menos me apaixonou. Talvez devido a um vai vem constante
entre o presente e o passado, entre a vida do escritor e o tema histórico em
si. Mas não deixa de ser uma obra cheia de qualidade e de conteúdo.
Trata-se, no fundo, de duas estórias: a do revisor e
escritor Raimundo e a de um cerco de Lisboa criado pela mente do escritor.
O primeiro ponto que ressalta deste livro é, ainda e sempre,
a paixão de Saramago pela História de Portugal, a história de um país que o
expulsou, por capricho de um subsecretário de Estado e por obscurantismo de
muitos.
Outro aspeto fundamental do livro, este mais recorrente em
Saramago, é a leitura da solidão. O revisor solitário, como solitários são os
homens de outros livros de Saramago; a solidão, sempre a solidão…
O terceiro aspeto e, quanto a mim o mais importante é a
abordagem da construção histórica como um ato subjetivo: o revisor Raimundo
alterou a História; os cruzados NÃO ajudaram na conquista de Lisboa. No fundo,
uma palavra, um simples Não pode ser um exercício radical de liberdade. A
História torna-se numa estória. Mas, muito mais que isso, a ciência do passado
torna-se uma leitura do presente; o ontem e o hoje que se misturam; o objetivo
e o subjetivo que se diluem um no outro; o objeto e o sujeito num todo orgânico
em que os dois elementos se influenciam mutuamente.
Ter escrito o Não foi uma fatalidade que determinou o seu
destino – a obra passa a controlar o artista; a subjetividade deste vai-se
misturando com a realidade; ator e autor confundem-se…
“Um homem que percebera que a distinção entre não e sim é o
resultado duma operação mental que só temem vista a sobrevivência” às vezes um
não altera uma vida inteira. Só 3 letras…
Aparte de tudo isto, fica, como sempre, a imensa capacidade
de navegar na vida interior das personagens; o escalpelizar metódico dos
sentimentos, das emoções e dos pensamentos. Cada personagem de Saramago é um
mundo inteiro, que ele explora com perspicácia mas, acima de tudo, com uma
imensa humanidade.
Ao nível da análise histórica sobressai a visão de uma
guerra santa, em que as atrocidades se cometem em nome de Deus, os cristãos
piores que os mouros. Trata-se de uma visão crítica da guerra mas também de uma religiosidade
hipócrita, que se submete a valores maiores como a importância do saque.
Ao longo de todo o livro, como sempre, a ironia de
Saramago. Um guerreiro cristão em pleno cerco de Lisboa, tem a petulância de
exigir a Afonso Henriques: “Ou me pagam pela tabela dos cruzados, ou não vou
mais à guerra.” Luta de Classes em plena reconquista ou a comédia sarcástica de
Saramago.
Com ou sem cruzados, a conquista da capital lá se fez. No
entanto, a fome a que sujeitaram os mouros foi a arma dos cristãos. Também hoje
se vencem os povos pela fome…
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