Sinopse:
"«Um tempo múltiplo. Labiríntico. As histórias das sociedades humanas. Ricardo Reis chega a Lisboa em finais de Dezembro de 1935. Fica até Setembro de 1936. Uma personagem vinda de uma outra ficção, a da heteronímia de Fernando Pessoa. E um movimento inverso, logo a começar: ""Aqui onde o mar se acaba e a terra principia""; o virar ao contrário o verso de Camões: ""Onde a terra acaba e o mar começa"". Em Camões, o movimento é da terra para o mar; no livro de Saramago temos Ricardo Reis a regressar a Portugal por mar. É substituído o movimento épico da partida. Mais uma vez, a história na escrita de Saramago. E as relações entre a vida e a morte. Ricardo Reis chega a Lisboa em finais de Dezembro e Fernando Pessoa morreu a 30 de Novembro. Ricardo Reis visita-o ao cemitério. Um tempo complexo. O fascismo consolida-se em Portugal.» (Diário de Notícias, 9 de Outubro de 1998)"
"«Um tempo múltiplo. Labiríntico. As histórias das sociedades humanas. Ricardo Reis chega a Lisboa em finais de Dezembro de 1935. Fica até Setembro de 1936. Uma personagem vinda de uma outra ficção, a da heteronímia de Fernando Pessoa. E um movimento inverso, logo a começar: ""Aqui onde o mar se acaba e a terra principia""; o virar ao contrário o verso de Camões: ""Onde a terra acaba e o mar começa"". Em Camões, o movimento é da terra para o mar; no livro de Saramago temos Ricardo Reis a regressar a Portugal por mar. É substituído o movimento épico da partida. Mais uma vez, a história na escrita de Saramago. E as relações entre a vida e a morte. Ricardo Reis chega a Lisboa em finais de Dezembro e Fernando Pessoa morreu a 30 de Novembro. Ricardo Reis visita-o ao cemitério. Um tempo complexo. O fascismo consolida-se em Portugal.» (Diário de Notícias, 9 de Outubro de 1998)"
(in wook.pt)
Comentário:
Morreu Fernando Pessoa. Ricardo Reis, seu heterónimo e
médico renomado no Brasil, regressa a Portugal. Instalado num hotel de Lisboa,
Reis recebe a visita regular de Pessoa, que sai do túmulo para esse efeito. Não
é um fantasma; não é o corpo de pessoa; não é, no entanto, apenas espírito. É e
não é; é, sem ser. Um fingidor, como sempre, este Pessoa.
É neste tom algo surrealista que decorre este magnífico
romance de Saramago, o que se seguiu ao memorável Memorial do Convento.
Ao longo do enredo, Reis apaixona-se por Marcenda mas é
Lídia, a criada de quarto quem lhe aquece a cama. O amor num triângulo. E o
narrador, esse, constrói outros triângulos com outros vértices. Num certo
sentido estamos perante um romance geométrico. Senão vejamos: um dos segredos do
sucesso de José Saramago está na sua imensa capacidade de se colocar na mente
dos personagens, revivendo-os, repensando-os e fazendo-nos entrar nas suas
mentes. Narrado, personagem e leitor formam aqui o primeiro triângulo. Depois
ele prolonga-se: a mente de Saramago transfere-se para a de Ricardo Reis: do
prosador real para o poeta imaginado. E Reis formará esse outro triângulo, com
Lídia e Marcenda.
A tudo isto assiste Fernando Pessoa; nem contente por sair
da tumba nem infeliz por ter morrido; apenas um pouco perturbado por visitar a
estátua de Camões e ter constatado que nunca lhe dedicou um verso; nem na
Mensagem. Coisas da inveja, conclui.
À volta de Reis, o Portugal pequenino dos tempos de Salazar:
a bisbilhotice, o boato, a beatice e, acima de tudo, o culto cobarde da
denúncia; os bufos e PIDE, sempre bem emparelhados e o nojo de um inspetor que
fede a cebola. Todo o génio de Saramago no apontar o dedo aos cancros deste
país que foi pequenino para ele.
Um aspeto muito curioso desta construção que Saramago faz da
personalidade de R. Reis é a sua total incapacidade no que ao amor diz
respeito; coisa estranha para o autor da Odes. Ricardo é o espetador do mundo;
o que assiste de camarote às desgraças do país. Conservador, ele fica
perturbado com a realidade triste e hipócrita do país mas nada faz. O seu
espírito conservador e monárquico prevalecem. E é neste contexto que surge o
aspeto mais surpreendente do livro: Fernando Pessoa em desacordo com o seu
homónimo: "você afinal desilude-me,
amador de criadas, cortejador de donzelas, estimava-o mais quando você via a
vida à distância que está".
Fernando Pessoa em desacordo consigo mesmo? Não. Fernando
Pessoa como múltiplo de si mesmo. A grande pergunta que emerge na mente do
leitor é esta: afinal de contas, quantos somos cada um de nós?
10 comentários:
o meu livro favorito de José Saramago! Uma obra prima que considero acima de um Memorial do Covento ou Ensaio Sobre A Cegueira. Mas isso é só a minha opinião.
https://www.facebook.com/sergio.knight1?ref=tn_tnmn
Manuel,
este sim, na minha opinião, um dos grandes livros de Saramago. Está entre os meus preferidos de todos os tempos.
Boas leituras!
Mais um livro apaixonante de Saramago. Só não o considero como sendo o melhor do autor, porque "O Memorial do Convento" está já no topo. :)
Boa semana!
Completamente de acordo, André e Tons de Azul. Só não concordo totalmente com o Sérgio porque acho que o Memorial é imbativel.
Mas esta viagem que estou a fazer por Saramago tem-me trazido surpresas muito agradáveis.
Prometo no final fazer um Top-Saramago :)
Este é o "meu Saramago" favorito, pelo menos por enquanto e tendo a noção de que ainda tenho imenso por ler :|
Acho genial a forma como José Saramago conseguiu dar corpo a Ricardo Reis sem parecer apenas um reflexo da sua admiração, logo uma sombra (como é o caso de outros escritores que admiram Pessoa)
Foi um risco tremendo, e a capacidade que teve de o superar só demonstra porque este Senhor continua a ser a nossa bandeira fora de portas- por vezes, pergunto-me se Saramago não devolveu Portugal ao mundo...
Não resisto a perguntar-lhe como tem sido esta "empresa Saramago" (isto porque enquanto leitora sinto dificuldade em ler mais de 3 livros do mesmo autor, assim seguidos, e tanto quanto já consegui perceber esta dificuldade prende-se com o facto de reconhecer de tal forma a escrita, a lógica do pensamento, que deixa de existir a sensação de admiração pela novidade da ideia que tenho à frente).
Boas Leituras ;)
Olá C.
é sempre um prazer ler as suas visitas :)
Até ao momneto, este é também um dos melhores Saramagos que li. Não consigo é deixar de considerar o Memorial um fenómeno à parte...
Este livro é, de facto, uma obra de génio; e como diz, foi um risco enorme, principalmente ao encarar de frente um Ricardo Reis complexo, monárquico e solidário, apaixonado e frio, enfim, um poeta contraditório...
E aquele perfumezinho de fantástico foi a cereja no bolo que o livro é.
Em rerlação à sua pergunta, a resposta que me vem à mente é... sei lá :)
Quer dizer, eu nunca imaginei que conseguisse ler "de enfiada" esta Saramagueada toda... e alguns são releituras. Eu próprio tinha essa ideia: que seria incapaz de ler mais que 2 ou 3 seguidos do mesmo autor, não só pela razão que o C. aponta mas também porque a componete lúdica da leitura se baseia muito na diversidade em si mesma. No entanto, para usar a expressão do meu amigo Évora, Saramaguear não é como ler um autor qualquer; a própria diversidade está lá; ele não tem dois livros que possamos dizewr que são identicos. Obviamente, há temas recorrentes e há um estilo que se fixou, mas as abordagens, os prismas de visão da realidade e mesmo os asuntos abordados envolvem uma grande diversidade.
Agora tenho na mesa de cabeceira Objeto Quase e Caim e terei a ficção de Saramago toda lida. Ficam 2 ou 3 para o futuro. Acho que fica a faltar apenas o primeiro e o último da ordem cronológica de publicação.
Um abraço, caro C. e volte sempre.
Também é o meu favorito. Passei alguns anos a estudá-lo para o Mestrado, concluído em 2001. Depois disso estudei a fundo ao menos outros três: 'Manual de pintura e caligrafia', 'História do cerco' e as crônicas de 'A bagagem do viajante'. Mas, ah, 'O ano da morte de Ricardo Reis' é mesmo uma maravilha!
Susana Ventura
http://www.facebook.com/susana.ventura.73
Boa Tarde,
Este livro é fabuloso. Subscrevo integralmente o primeiro paragrafo escrito por C. .
No entanto resta acrescentar que existe neste livro uma descrição do Santuário de Fátima e toda a dedicação e sofrimento das pessoas pela fé, que para mim, é um dos maiores momentos da Obra de José Saramago.
Abraço.
Eduardo Castela
Agora, lembrei-me do título de um livro alemão, filosófico, mas que não é nenuma obra-prima, nem de filosofia, nem de literatura. O título, porém, combina com este teu texto: "Wer bin ich? Und wenn ja, wieviele?" - traduzido: "Quem sou eu? E, se sim, quantos sou?"
Porque "afinal de contas, quantos somos cada um de nós?"
Esse é, na minha opinião, o lado mais fascinante da natureza humana: o que cada um de nós é no seu mundo secreto. Estou convencido que se todos nós revelássemos os nossos lados escondidos, muitas surpresas íamos ter...
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