“Sobolos rios que vão
Por Babilônia m’achei,
Onde sentado chorei
As lembranças de Sião,
E quanto nela passei.
Ali o rio corrente
De meus olhos foi manado;
E tudo bem comparado,,
Babilônia ao mal presente
Sião ao tempo passado.” (…)
Por Babilônia m’achei,
Onde sentado chorei
As lembranças de Sião,
E quanto nela passei.
Ali o rio corrente
De meus olhos foi manado;
E tudo bem comparado,,
Babilônia ao mal presente
Sião ao tempo passado.” (…)
Luís de Camões
Na cama do hospital, solitário entre dores e lembranças, António Antunes, ou Antoninho alimenta com o corpo um “ouriço”. Cancro, dores, memórias, um mundo que se desmorona mas, ao mesmo tempo, um mundo inteiro de recordações que vagueiam na sua mente como a mosca que poisa no lavatório, como um pingo no sapato ou o avô que colocava a mão em concha na orelha para ouvir.
Grandes dores, ainda bem que as tem, pensa Antoninho, ou o Senhor Antunes, a quem os médicos e enfermeiros adiam a morte, talvez para lhe alimentar aqueles sonhos do passado, lembranças que são a sua vida, a solidão em forma de vida, o mundo em forma de cama de hospital, e felicidade em forma de memória, a morte em forma de ouriço, que corrói, o sangue na fralda, “é só mais um remédiozinho e fica fino”, conversa de médico, que nunca mais são cinco horas e o hospital cheio de dores para enganar…
Por entre as dores e a morte que se adia, o avô surdo, a avó chamando Antoninho, o pai com a criada na despensa, “olha o teu filho a ver-nos”, o pai jogando ténis com as inglesas do hotel.
Mundos inteiros dentro de um mundo só chamado memória, ou solidão, mundo inteiros resumidos num ouriço que lhe corrói as tripas como o pai corroendo a mãe, “não digas nada à tua mãe”.
Memória sofrimento e morte, é tudo a mesma coisa excepto o sorriso dos pequenos prazeres, resumidos, sintetizados no voar de uma mosca, num momentâneo “agora não dói” mas se não dói ouriço dói a alma, essa, sempre dizendo Estou cá, a vida embrulhada num mundo outro chamado passado, um mundo que afinal vai dar ao mesmo, é igual a este, se calhar o tempo é que é o embrulho, se calhar é tudo o mesmo, é o ouriço que comanda, é a dor que dita as regras, é o mundo inteiro naquela cama de hospital ou no pingo que caiu no sapato. Tudo talvez não seja mais que um imenso nada, a gente é que constrói mundos na cabeça, a gente faz os ouriços da memória e depois não sabe sair deles.
E o tempo é um engano. Não lhe poderemos nunca fugir nem nunca encontraremos o tempo de ser feliz. Porque o tempo é tudo, é o alguidar da vida onde tudo se mistura.
A tristeza é a vida; a escrita de ALA é esta dor de existir, este arrastar as letras até ao mais profundo do ser, este mergulhar de cabeça na escuridão de que são feitos os mundos.
Impossível escapar, impossível dizer isto não é nada comigo, é sim, é sempre comigo e com todos porque o mundo está nas memórias e resumir-se-á um dia ao nosso próprio ouriço. Inexoravelmente!
A beleza sintetizada numa lágrima que não sai.
Avaliação Pessoal: 9.5/10
9 comentários:
Belíssimo texto. Gostava de o ter escrito.
Obrigada pelo link lá em baixo ;)
Cristina, vindo de ti (uma escritora que admiro imenso), esse elogio ruboriza-me :) :) :)
Um Texto cheio de sentimento. Gostei bastante de o ter lido.
Pois é Manuel, muito bom a tua opinião, mas tenho um "ódio" de estimação pelo ALA.
Dele, nem entrevistas consigo ver.
:D
Olha que ele é um tipo porreiro, Miguel :)
Gostei muitos destas tuas palavras, Manuel. Sabem a poesia dorida, mas têm alma e beleza.
Gostava de voltar a ler Lobo Antunes, mas ainda não sei quando será esse regresso...
Por agora ando a ver se baixo a pilha de livros que tenho por aqui... Porque será que não a consigo descer, por mais livros que leia?! ;)
Nunca li nada de Lobo Antunes. Tudo por causa de uma tal de exortação aos crocodilos, que não me souberam explicar sequer qual era o tema. E depois, tal como referes no post anterior, a ideia (errada ou não) que tenho é que nele tudo é triste e pardacento. Enfim, quem sabe um dia se esvai este preconceito? :)
Até porque assim descrito, lembrou-me vagamente "Leite Derramado", do qual gostei muito. Não era era pesado... ;)
tons de azul e teté
eu tenho a impressão que ALA tem de ser lido numa perspectiva algo diferente. A escrita dele está a meio caminho entre a poesia e a prosa; e não se pode ler poesia tentando encontrar um enredo, uma estória. Em Lobo Antunes há muita tristeza, sim, muitos tons cinzentos e poucos tons de azul :) Mas pardacento não me parece...
E o cinzento também é uma cor interessante :)
Manuel,
Concordo com o teu último comentário.
Ainda na entrevista que deu recentemente a RTP, Lobo Antunes disse que os sues livros não contavam histórias. Acho que um dos seus melhores factores é que deixa muitas perguntas em aberto e cada um dos seus leitores pode seguir um caminho diferente na interpretação dos textos.
Enviar um comentário