Um livro bem diferente de tudo o que António Lobo Antunes
tem escrito. Diferente em dois aspectos gerais: a escrita (neste livro mais
épica e menos lírica) e a temática (os descobrimentos, em paralelo com a
descolonização).
Relativamente ao estilo, bem se pode dizer que, mais do que
nunca, neste livro a escrita é um convite ao passeio pelas palavras. A fazer
lembrar a escrita barroca, a linguagem de ALA, neste livro, atinge níveis de
beleza excepcionais. Brincando com as palavras sem que nunca esta preocupação
estética ultrapasse totalmente o conteúdo:
“No decurso desses
cinquenta e três anos construíram-se mais umas dezenas de capelas imediatamente
em ruína, um bairro para os operários da fábrica de sonetos gongóricos e para
os cronistas desempregados que catavam cedilhas da barba, e um sistema de esgotos
eternamente entupido por embriões de sapos. A criatura dos mosquitos finou-se
da vesícula e os insectos passaram a circular em liberdade, apesar das osgas,
do esquentador avariado para a cantoneira da cozinha, de medalhão de esmalte (meninas
e faunos a almoçarem num prado) sob as garrafas de Porto.”
Por outro lado, a inovação no conteúdo: Luís de Camões vai
escrevendo os Lusíadas ao mesmo tempo que transporta o pai num caixão, trazido
de Angola após o 25 de Abril. Vasco da Gama a jogar as cartas e um povo inteiro
que regressa de África, derrotado, escorraçado pelos antigos escravos. Um povo
inteiro que, afinal, continuava à espera de D. Sebastião.
“O único branco do
bairro vendia bíblias, postais eróticos e gira-discos no porta a porta da cidade,
chamava-se Fernão Mendes Pinto, possuía uma cabana na areia atulhada de refugos
de equinócio e recordações da Malásia, sentava-se à beira da água a comover-se
com os crepúsculos.”
HUMOR, POESIA E IRONIA NUMA FRASE APENAS: “Uma manhã o engraxador do café, de voz rente aos sapatos, a estalar o pano do lustro nas
biqueiras, informou-o de que haviam sucedido acontecimentos estranhos em Lixboa:
o governo mudara, falava-se em dar a independência aos pretos, imagine, os clientes
dos folhados de creme e das torradas indignavam-se.”
Um povo inteiro de retornados, odiados lá, detestados cá, detestados
por eles próprios, frutos do desespero e desta confusão entre passado e
presente, confusão que vai na cabeça de toda a gente, nas colónias e na
metrópole, no passado e no presente.
Portanto, esta mistura dos dois tempos narrativos não é um
mero exercício de estilo; é uma forma de exprimir o messianismo sebastianista
que leva a nossa mentalidade colectiva a misturar passado presente e futuro: se
as cosas estão mal agora, é porque no passado outros cometeram erros imperdoáveis
mas do futuro (ou do mesmo passado) há-de vir um salvador por entre o nevoeiro.
É por isso que somos e seremos sempre portugueses. O passado não foi mais do
que um amontoado de promessas: especiarias, ouro, escravos; o presente é a
desilusão: os ouro que se escoou por entre os dedos e os escravos que em 1974
deram lugar àqueles que nos expulsam. E o futuro? Talvez o regresso aos sonhos…
talvez o regresso ao passado. Mais nada!
2 comentários:
Olá Manuel,
Já por diversas vezes tentei ler Lobo Antunes mas desisto nas primeiras páginas. A escrita é dura, intrincada e difícil de seguir.
Depois de ler a sua excelente opinião sobre este livro fiquei com vontade de tentar de novo.
Será que é desta que faço as pazes com o autor?
Teresa, eu já passei por essa fase :)
Ainda há dias o próprio ALA alertou para o facto de não contar histórias. Porque quando queremos perceber todas as histórias, perdemo-nos... isto acontece porque ele não quer contar estória nenhuma; a melhor maneira de ler ALA é deixar-mo-nos levar, saborear a poesia em prosa, mesmo que triste.
Coragem. Acho que vai mesmo fazer as pazes com o autor :)
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