Sinopse
Um livro estimulante, quase
mítico. Representativo daquilo a que o próprio Alejo Carpentier chamou "o
real maravilhoso americano", este romance constitui uma busca das origens,
a procura de uma Idade de Ouro perdida. A personagem central dispôe-se a subir Orenoco,
na Venezuela, em busca de um tempo primordial, tentando assim alcançar as
raizes da vida. Desfilam nesta obra os mineiros dos campos de petróleo, os
padres missionários, os vaqueiros, os astrólogos, as prostitutas em busca do El
Dorado, os índios dos lugares visitados, os espirítos, os rituais, as histórias
e os mitos de um tempo em que um homem branco ainda não pisara o continente
americano. Para Carpentier, a América é um repto de um "novo mundo"
apressadamente entrevisto por viajantes e poetas, poucas vezes correctamente
apreendido.
In wook.pt
Comentário:
Este livro foi, para mim, a maior surpresa dos
últimos meses. Nunca tinha ouvido falar do autor e, logicamente, nunca tinha
lido nada dele. Peguei nele mais por curiosidade do que por aposta numa leitura
agradável e, confesso, por ter lido na contracapa que foi um autor a quem
recusaram a atribuição do prémio Nobel por motivos ideológicos.
Mas, no fundo, a ideologia é o
que menos se encontra neste livro. Pelo contrário, uma imensa qualidade literária está por todo o lado.
As primeiras páginas podem
afastar um leitor mais ávido de enredos emocionantes e narrativas fluidas.
Carpentier tem um estilo muito pessoal,
muito reflexivo e profundamente artístico. Musical, é o adjetivo que me ocorre
para caraterizar esta escrita fluida, ritmada, belíssima. Os olhos percorrem as
palavras, as linhas, os enormes parágrafos e o cérebro passeia pela cadência
ritmada das frases, a que não é alheia uma excelente tradução da editora Saída de Emergência (ainda por cima com
a capa belíssima que vemos acima).
O protagonista, nunca nomeado,
descreve na primeira pessoa uma incursão quase heroica pela selva
sul-americana, a partir da Venezuela. Trata-se de um estudioso da música, à
procura das sonoridades dos instrumentos índios. Mas o objetivo profissional é
a apenas o pretexto para uma verdadeira fuga, à procura de algo muito mais
importante: a eterna busca da identidade, o exorcizar dos demónios modernos e a
procura do mito do Novo Mundo que encantara os seus antepassados. Pelo meio, o
protagonista encontrará na expedição diversas ocasiões para reorientar a sua vida amorosa; ou melhor,
para dar de caras com todos os seus sonhos e pesadelos. Só a selva lhe
permitirá encarar de frente todo o paraíso e todo o inferno.
A América mais profunda é descrita
por Carpentier como o Novo Mundo, a terra prometida do ouro e dos diamantes. O homem
continua a ser o explorador da natureza, a ave da rapina a que nada pode
escapar. A selva, como a vida amorosa do
protagonista é a materialização de uma incerteza permanente; um desafio a que o
ser humano procura impor-se mas em que, a todo o momento, se transforma em
vítima. Insatisfeito, o homem, neste caso o protagonista, procura a paixão
de forma desenfreada. Ruth, depois Mouche, depois Rosário… sonhos prometidos,
desilusões repetidas. Afinal de contas, o homem será sempre o elo mais fraco,
perante a natureza ou o destino, por mais senhor do universo que se considere.
No final, o livro revela-se como
uma imensa lição de humildade perante a natureza. Porque só o medievalismo dos
conquistadores poderia justificar tamanhas vontades de poder.
E pelo meio fica uma aventura magnífica,
sem vitórias mas com imensas lições. Rosário,
a mulher saída da terra índia personifica de forma magistral esse poder que
imana do Novo Mundo, incompreensível e indomável. Tentando aliar a melodia à
palavra, o protagonista almeja a um ideal ainda maior: aliar a sua própria vida
ao pulsar da terra. Sonhos que se revelariam quimeras…
2 comentários:
Adorei este livro!
Capentier neste livro não facilita a vida ao leitor. Debruça-se sobre vários aspectos e certamente há ainda aqueles que possivelmente escapam numa primeira leitura.
Da primeira à última página há um ritmo característico, musical, sim sem dúvida, ou não fosse Carpentier um melómano.
a questão da identidade- a influência de uma educação europeia por oposição à vivência local, ao quotidiano, o civilizado e o “simples”, o primitivo.
a questão cultural, articulada com a questão da identidade- adorei a forma como ele foi aos textos fundadores- a Bíblia e Odisseia (acho que não me engano no Homero, mas se não for este é o outro) para dar uma perspectiva histórica e para pensar a criação de uma cultura hispano-americana, que olha ou deve olhar para dentro de si mesma, e não tentar copiar os exemplos de fora. Sobretudo neste campo considero este livro fundamental e o curioso é que Gabo foi beber a este texto e “Cem Anos de Solidão” tem passagens que são reflexo disso mesmo. se não me equivoco este texto “está na origem” do realismo-mágico
Continuação de Boas Leituras :D
Esqueci-mede incluir no meu comentário a referência a Homero. Na realidade, ele parece encontrar um certo paralelismo entre três dimensões: a Odisseia, a colonização europeia e a própria procura da identidade, ou do sentido da própria vida do protagonista, na sua incursão (real e simbólica) na selva sul-americana.
De resto, como é óbvio, concordo com o que dizes. É um livro que afasta, logo nas primeiras dezenas de páginas, o leitor mais sedento de narrativas emocionantes mas que premeia de forma muito bela quem tem a coragem de procurar algo mais num livro.
Não tive a curiosidade de ver as datas de publicação dos grandes ícones do realismo mágico, como Marquez, Allende ou Borges, mas tem toda a lógica que este Carpentier esteja a montante :)
Um abraço!
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