quarta-feira, 23 de março de 2011

O Heróico Major Fangueira Fagundes, com todolos seus anexos - Luís Novais

Depois de Quando o Sol se põe em Machu Pichu e de Os Parricidas, Luís Novais parece ter alcançado a maturidade literária com este “O Heróico Major Fangueira Fagundes com todolos seus anexos”; um grande título para um excelente livro.
A primeira coisa que me parece bem conseguida neste livro é a sua estrutura: há um narrador à maneira de cronista, que não dispensa uma belíssima linguagem em português antigo e múltiplos narradores/personagens que surgem como autores de anexos.
Também os nomes dos personagens são escolhidos criteriosamente e com um sentido de humor notável: desde logo Epifânio Fangueira Fagundes: é óbvia a aliteração “Fangueira Fagundes” mas o realce vai para o nome, que aliás é omisso no título da obra: Epifânio. Ele, o nosso herói, é na verdade, pelos actos “heróicos” que realizou, a personificação de uma epifania. Ele nasceu redentor, abençoado pelo Anjo, procurador do Céu “em um auto” vicentino. Por isso ele é Epifânio.
Um dos aspectos que mais impressiona neste livro é o contraste entre páginas de delicioso humor satírico e outras onde imperam o drama e a revolta interior, numa abordagem crítica e mesmo cáustica ao sistema político e socioeconómico em que vivemos. Um sistema que é um caldeirão de injustiças; um caldeirão que ferve em ebulição permanente, onde o político corrupto, empresário desonesto e o banqueiro ladrão sugam o suor e o sangue do povo. E a escrita de Novais, límpida e directa, surge como a voz de um trovão no silêncio das raivas contidas. Na minha opinião, é esta perspectiva crítica, por vezes descarada, sentida e brutal, que dá uma força extraordinária ao livro.
Mas esta voz brutal é também a voz (ou o clamor) da Liberdade. Não a liberdade mas a Liberdade! Porque só pode ser Livre quem for Criador. Qualquer conceito de liberdade não passará de uma ilusão se não envolver o acto de criar. Numa perspectiva marcadamente nietzschiana, Novais faz aqui uma clara distinção entre os diversos sentidos que o termo pode envolver: em termos políticos, a liberdade pode ser uma arma, um discurso ou uma ilusão. Assim, na Ocidental Praia, metáfora de Portugal, um país desgraçado, vive um povo nas mãos de políticos pacóvios ou ladrões e revolucionários bêbados. Um país onde a crítica e a capacidade de rir de nós mesmo parece andar perdida desde Oliveira Martins e que Novais (tão heroicamente como Fagundes) parece querer fazer renascer, pela pena de um cronista que poderia chamar-se Luís Fernão Novais Lopes, ou de um Eça revisitado na cáustica dissecação das tropelias do Traques, o político de Cidade Grande.
Mas para lá da sátira e das alegorias, do livro brotam também sinais de uma angústia latente. A angústia de um passado perdido, que não é pré-sebastianista, mas antes pré-capitalista. E essa angústia está plasmada num belíssimo texto que é o anexo quinto: um hino à natureza e ao homem do Minho profundo. E não é sebastianismo que aqui leio em Luís Novais; é a urgência da renovação; é o apelo à Revolução, não dos capitães nem de majores mas do Homem no seu todo. É de um novo Homem que precisamos; um Homem novo que restaure a Liberdade do ancião de Vilar dos Fornos.
Este caminho da libertação é o caminho da Utopia, não o da ilusão da Cidade Grande, onde novas escravaturas se emaranham num todo que é o progresso, ou o capitalismo selvagem, ou a tirania do Estado dito democrático.
E em cada anexo lemos um novo alienado, um tuga comum, homem sem presente que se multiplica por um passado pouco heróico e nada pátrio mas sempre escravizado: pobres anónimos e funcionários amestrados mas também empreiteiros, banqueiros e políticos escravizados às manhas e artifícios com que escravizam os outros: motoristas, bibliotecários, jornalistas, prostitutas, vendedores de seguros ou a licenciada que serve cafés… todos eles dentro da roda dentada onde se moem de tanto girar; nós de um emaranhado de fios de fantoche sem ponta visível. E todos eles cantados em forma de crónica, auto, cantiga de escárnio e maldizer. Todos aprisionados excepto talvez o super-homem, talvez apenas escravo da Liberdade.
Para lá de tudo isto fica a revolução: a utopia. A esperança. A ilusão de que é feita a vida do comum dos mortais. Mas é essa ilusão, essa esperança, que não morrerá enquanto houver utopias.
Enfim, estamos perante um livro que nos surpreende e encanta; uma obra que poderá marcar a epifania de um nome que um dia poderemos colocar ao lado dos maiores da actual literatura portuguesa, como José Luís Peixoto, Valter Hugo Mãe ou João Tordo. Assim os deuses da literatura portuguesa (críticos literários e mestres de marketing) o permitam.
Avaliação pessoal: 9/10

2 comentários:

Luis Novais disse...

Caro Manuel,
É talvez um sentimento estranho, comentar um comentário a um livro meu.
Não consegui evitar. É curioso perceber aquilo que se percebe no que escrevemos. Aposto que sentes o mesmo com o que aqui escreves.
Tenho dito que com este livro, eu, que tão português sou e que nunca sobre Portugal escrevi: resolvi fazer algo que fosse radicalmente português. Português na temática. Português no estilo, ou antes, nos muitos estilos que desse ponto de vista este “Major Fagundes” é absolutamente polifónico. E ainda assim, saltar fronteiras. Aquele país imaginário onde vivem banqueiros e se trocam favores por “robalos”, onde o “Advogado Geral” manda destruir escutas, onde a licenciada vende tostas e cafés, onde um Major alcoolizado e quixotesco consegue ser detonador de descontentamentos latentes, onde se espera um messias Sebastião. Esse país que trocou a relação comunitária pela antropofagia capitalista, que cantou cantos de sereia ao emigrante africano e a si mesmo… esse país “Ocidental Praia”, não é apenas aquele que a metáfora mais directamente indica. Esse país metáfora, é também metáfora duma civilização que é, ela mesma, Ocidental. Um ocidente esmagado por um modelo especulativo, destruidor de liberdade mais do que de riqueza; uma sociedade, um povo, uma classe média esmagados pelo obscuro relacionamento entre aqueles que sufraga e aqueles que não sufraga, por políticas de legitimidade formal e ilegitimidade moral.
Mas enfim, sou dos que afirmam que a literatura é dos últimos espaços de liberdade e só o é enquanto aquele que escreve escrever sem assumir o levantar do véu ao que escrito está; pelo menos mais do que aquilo que aconselha a cautela. Cautela, portanto. E que o véu seja entregue ao seu legítimo: o leitor.

Unknown disse...

Olá Luís
obrigado por enriqueceres este meu modesto diário de leituras com as tuas palavras.
Realmente não é só esta Ocidental Praia que se encontra mergulhada no lodaçal... infelizmente somos parte integrante dessa coisa a que chamam globalizaçao e dessa outra coisa cada vez mais abjecta chamada capitalismo liberal. Para o bem e, principalmente, para o mal...
um abraço