quarta-feira, 30 de abril de 2014

O Retrato - Nikolai Gogol

Sinopse:
Este O Retrato é o mais romântico dos "Contos de Petersburgo",quanto mais não seja pelo tema central - o pacto com o demónio. É também uma profunda reflexão sobre a vida e a arte (a arte imitação da natureza ou imitação de Deus?), prefigurando o grande dilema da vida e da obra do próprio Gogol, do seu próprio destino: vamos encontrar em O Retrato o delineamento das grandes contradições que envolveram a criação de Almas Mortas, a grande hesitação e finalmente o repúdio da segunda parte deste livro, a queima da obra espúria, etc.
É também, evidentemente, um conto sobre a sociedade castradora - Petersburgo. Desta vez, é um pintor que se vê privado do seu talento por obra do excesso de realismo e da ambição de glória e riqueza que nele desperta a cidade... Tal como nos outros Contos de Petersburgo com Gogol quase acreditamos que o mal não é russo e que Petersburgo não é Rússia: aqui, entre os pobres cinzentões de Kolomna (bairro periférico a oeste de Petersburgo), o diabo é ardente, agiota e estrangeiro.
Filipe Guerra, em www.almedina.pt
Comentário:
Os russos têm destas coisas. Principalmente os escritores russos do século XIX: Gogol é considerado um dos fundadores do chamado realismo russo. Mas parece-me que é muito mais que um escritor realista. Passo a explicar: se, pela análise social e pela escrita objetiva, direta, ele reflete essa onda a que se chamou realismo, a abordagem psicológica aproxima-o de um Dostoievski e a abordagem nas margens do fantástico confere-lhe um halo de pioneirismo na literatura da Rússia, se bem que a essa abordagem se possa atribuir o inevitável e confortável carimbo de "romântico".
Na verdade, é pouco comum nos escritores deste imenso país esta tendência para o fantástico. O velho retratado, com  o seu olhar demoníaco, facilmente prende o leitor como prendeu o interesse do jovem pintor, enfeitiçado pelo seu brilho.
No entanto, este conto de Gogol vai muito além de uma incursão "realista" pelo fantástico: a luta interior que o pintor trava, entre a força do seu talento e a pressão social, manifesta um conflito que ainda hoje é tão discutido: deve a arte submeter-se à ditadura daquilo que o público pede? esta questão ainda há pouco foi por mim abordada neste blogue a propóstito de um livro de Stephen King: o escritor, como o pintor, são muitas vezes tentados por aquilo que o público lhes exige, hipotecando toda a criatividade e talento.
O pintor Tcharkhov, como tantos escritores atuais, vendeu o seu talento; ele próprio "vende-se" à tentação demoníaca do sucesso fácil, desprezando a própria arte.
Por outro lado, Gogol agarra esta ideia como forma, também, de pôr em causa toda a ignorância e futilidade das classes mais poderosas. Não podemos esquecer que este livro foi escrito em plena era czarista, numa sociedade já decrépita, dominada pelos senhores que exploravam os mujiques e que viriam a ser a causa da revolução soviática, umas décadas depois. Nestas páginas de Gogol, como em tantas outras de Tolstoi ou Dostoievski anunciavam-se tempos de mudança. O obscurantismo não poderia durar eternamente. Os interesses económicos e politicos que justificavam a servidão quase feudal cavavam a sua própria sepultura. No entanto, pelo caminho, a arte e a inteligência iam sendo espezinhadas. Será que hoje, mais de um  século depois, não estaremos a seguir o mesmo caminho?
Sem dúveida, um livro que merece ser lido. E pensado. E por falar em interesses eonómicos: encontrei este livrinho numa edição da Quasi, numa daquelas bancas de livros "low-cost" por... um euro!!! Mais uma prova de que a arte, afinal, não tem preço.

domingo, 27 de abril de 2014

Augusto Abelaira - Outrora Agora

Sinopse:
Um homem e três mulheres: o masculino pulverizado nos seus avatares femininos, espelhados em três dimensões temporais que se entrecruzam e se sobrepõem, explorando intensamente as possibilidades da linguagem, da ficção, dessa outra ficção que é a vida. Um círculo que se fecha em torno de um homem que puxou talvez depressa demais o fio do destino. Será afinal esse cerco de seduções, a implacável dança das Parcas?
 Mas porque detrás deste fascinante microcosmo de palavras - com a sua perturbadora carga de realidade - se encontra um arquiteto jocoso, este é também um romance em que os grandes temas, as grandes interrogações, mas sem as grandes palavras, se deduzem de conversas banais. Um romance admirável.
in www.presenca.pt

Comentário:
Poucas vezes um escritor terá conseguido com tanto brilhantismo aliar a expressão do pensamento ao discurso direto do protagonista. Jerónimo fala, ouve e pensa. A expressão desses atos é como que uniformizada, transformada num discurso único. Afinal de contas, é assim que todos procedemos: falamos, ouvimos e pensamos em dimensões que caminham em conjunto, interferindo umas com as outras.
Esta mescla entre o falado e o pensado é, portanto, muito mais do que uma questão formal, é o realismo máximo na passagem do plano psicológico para a expressão oral do personagem e escrita do romancista. Brilhante, sem dúvida.
Se em termos de estilo estamos perante uma obra brilhante, o certo é que também no que se refere ao tempo do livro, deparamos com uma abordagem notável da vida humana; de como os diferentes tempos da vida se misturam, de como as diferentes realidades confluem para um tempo real, o presente, resultado de múltiplos percursos, mas também múltiplas perceções que, no fundo, confluem para uma única realidade.
Jerónimo amou Cristina como, trinta anos depois, haveria de amar a Filomena. No entanto, Cristina e Filomena parecem ser a mesma mulher em tempos diferentes.
No fundo, todas estas realidades diversas entrecruz-am-se por ação do pensamento. Aqui deparamos com uma profunda questão filosófica: a do primado do pensamento. Afinal, o mundo parece só ser real na medida em que foi (e é) pensado.
Na crise dos sessenta anos, Jerónimo revive no reencontro com Cristina toda a luta face ao regime fascista. No entanto, em plenos anos 90, a censura que outrora era exercida pelo regime parece ser agora exercida na mente de Jerónimo pelo seu próprio pensamento. Mais uma vez, o primado do pensamento! Neste caso, o pensamento como incómodo, como as moscas que Lutero entendia como criações do demónio para o impedir de meditar.
Em conclusão: estamos perante uma obra cheia de talento, de um escritor criativo, inteligente e, acima de tudo, profundamente reflexivo sem, no entanto, adormecer o leitor com considerações abstratas; o que está em causa é a vida e a natureza do pensamento humano. Um livro notável, um escritor notável que só agora descobri.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Os Olhos do Faraó - Boris de Rachewiltz e Valentí Gómez i Oliver

Sinopse:
Egito Antigo, ano de 2200.
Durante o declive do Antigo Império, que marcará o fim do Império Médio, Neferkara Pepi, que durante quase um século reinou sobre as "duas terras", está prestes a morrer.
O reino encontra-se numa situação dramática, o povo está à beira da sublevação, mas os cortesãos ocultaram esta situação do faraó. No entanto, o sacerdote e tesoureiro Ipwer, o homem com o coração honesto, irrompe no salão do trono para revelar ao soberano a dramática situação em que o reino vive.
O profundo dramatismo do relato de Ipwer comove profundamente o ânimo do faraó, que revive o seu passado, desde que subiu ao trono, com seis anos de idade.
As intrigas da nobreza para conseguir o poder, a rivalidade entre as cidades de Mênfis e Tebas, as disputas religiosas derivadas da crescente implantação do culto monoteísta de Horus e Amon-Ra, alternam com imagens de jardins exóticos, eclipses lunares, gatos mágicos, pigmeus dançantes e fantasmagóricas festas na margem do Nilo.
in livroseautores.blogspot.pt

Comentário:
Se não fosse por outra razão, valia bem a pena ler este livro por nos explicar como se deu a domesticação dos gatos, pelos egípcios antigos. Para quem não sabe, o gato foi domesticado no país dos faraós há cerca de 4000 anos, vários milénios depois, por exemplo, da domesticação do cão. Para os egípcios, depressa o gato, com toda a imponência da sua personalidade e o seu ar misterioso se tornou um animal sagrado.
Mas este é apenas um dos aspetos da encantadora e misteriosa civilização egípcia, construída nas margens do sagrado rio Nilo e onde toda a natureza era sagrada.
Grande parte do encanto deste povo deveu-se à sua extraordinária relação de respeito e veneração pela natureza. A própria religião, com todos os seus rituais e crenças submete-se totalmente às forças naturais: os astros, por exemplo, conduziam a vida dos egípcios, anunciando presságios e augurios a partir dos quais eram tomadas as decisões mais importantes da vida individual e coletiva. Mas era o rio que comandava de forma mais vincada a vida deste povo. Era o rio que trazia a abundância, com as suas cheias que fertilizavam os solos ou então a fome, quando a inundação não era suficiente ou era excessiva. Daí a sacralização do rio.
Depois há todo aquele misticismo das pirâmides, da crença na reencarnação, da importância do embalsamamento, como garante da passagem à vida eterna.
Também em termos culturais este povo marcou de forma indelével os alvores da civilização; ainda hoje é difícil compreender como foi possivel construir aquelas gigantescas pirâmides. Um dos pontos altos deste livro é o momento em que os autores nos explicam que, afinal, há uma justificação objetiva para a lei da frontalidade, aquele estilo de pintura que tão estranho nos parece, em que as personagens são representadas com o rosto de perfil e o tronco de frente.
No fundo, o grande valor deste livro reside na verdadeira visita guiada que ele nos propicia ao Egito Antigo, mais exatamente ao reinado de Pepi II, o sexto rei da sexta dinastia, no século XXIII antes de Cristo. Aqui estão as intrigas políticas, as injustiças sociais, enfim, todas as misérias mas também todo o encanto da corte do faraó.
Onde o livro, de facto, falha, é na tentativa de construir um romance histórico. Na verdade, a narrativa de ficção é pouco interessante, deixando pouco espaço para a criatividade na construção de um enredo minimamente emocionante. Falta aquele elemento de imprevisto, aquele toque de ficção que normalmente envolve o leitor.

terça-feira, 22 de abril de 2014

Diz que éuma espécie de TAG


Habitualmente, não costumo alinhar nestes passatempos embora lhes ache piada. Portanto, e porque me foi proposto pela Denise do Ler-te aqui ficam as minhas respostas.

1 – Preferias só poderes ler um livro por ano e saberes que ias adorá-lo ou leres vários e nãos gostares muito deles?
Ler muitos. Aliás, às vezes até gosto de ler maus livros 

2 – Preferias nunca poderes conhecer o teu autor(a) favorito/a ou nunca mais poderes ler mais livros do/a mesmo/a a partir deste momento?
Eu não tenho um autor preferido. Mas gostava de um dia vir a conhecer o Cervantes ou o Victor Hugo. E como já li os livros principais deles… 

3 – Preferias ser obrigado a ver sempre os filmes antes de leres os livros ou nunca veres os filmes?
Há filmes interessantes com argumentos de grandes livros mas em regra… que se lixem os filmes!

4 – Preferias matar uma das tuas personagens favoritas de sempre ou deixar um dos piores vilões escapar impune?
Vilões! Vivam os vilões! Que interesse teriam os livros que só tivessem anjinhos?

5 – Preferias ser um tributo nos Jogos da Fome ou que a pessoa mais importante para ti no mundo o fosse?
Presumo que o tribuno é o tipo que decide quem come e quem passa fome 
Não gostava de ser isso nem o desejo ao pior inimigo. A sério, tentei ver os Jogos da Fome e desisti antes do meio. Achei abominável, para ser simpático.

6 – Preferias que a tua série favorita de sempre nunca tivesse existido ou que o/a autor(a) nunca a conseguisse acabar?
Por favor, não façam isso à Abelha Maia!

7 – Preferias nunca ter conhecido esta comunidade literária na internet ou teres de deixar de fazer parte dela para sempre obrigatoriamente?
Preferia que vocês me expulsassem. Tipo: “Já para fora da internet, seu intruso descarado”

8 – Preferias que um livro que encomendaste chegasse a tua casa numa edição super feia, mas em óptimas condições ou que chegasse a tua casa na edição que querias, mas toda estragada, sem puderes reclamar?
Eu já li um livro em que as folhas estavam todas soltas. E adorei.

9 – Preferias que os teus livros, por conta de uma tragédia, ardessem ou se afogassem?
Isso só por cima do meu cadáver. Portanto, se isso acontecesse eu teria falecido. E na minha qualidade de falecido estar-me-ia marimbando para isso.

10 – Preferias rasgar a capa de um livro ou sujá-la com algo que não saia?
Ainda um dia hei-de barrar um livro com chocolate. Ou chantili. Rasgar nunca!

segunda-feira, 21 de abril de 2014

A História Interminável - Michael Ende

Sinopse:
A História Interminável é uma singular fantasia épica com todos os requisitos do género: criaturas fantásticas, paisagens exóticas, florestas sombrias, encantamentos, rituais de cavalaria, espadas e amuletos, uma imperatriz Criança e tudo aquilo que possamos imaginar, visto que Fantasia é o próprio mundo da Imaginação. Tudo começa quando Bastian descobre um estranho livro numa não menos estranha livraria e se sente subitamente compelido a roubá-lo como se algo de mágico o estivesse a arrastar para uma perigosa aventura. Uma obra que passou ao grande ecrã como um filme de culto.
Comentário:
Esta é a principal obra deste escritor alemão que se dedicou exclusivamente à literatura de fantasia, especialmente para crianças e jovens. Trata-se de um livro publicado pela primeira vez em 1979 e que deu origem a um filme de grande sucesso, com música do mítico Giorgio Moroder, na voz de Limahl, o não menos mítico líder dos Kajagogoo, uma banda que marcou os nossos saudosos anos 80.
A obra inicia-se com um belíssimo elogio da fantasia; Bastian só gosta de livros de fantasia porque estes são os únicos que não tentam convencer ninguém. Em grande parte, este livro é um hino à alegria de viver, à procura da felicidade através da transposição das fronteiras comuns do tempo e do espaço; é preciso saltar para lá do visível, procurar portas de acesso a mundos sonhados. Mas é também um hino aos livros, único repositório onde se pode guardar o sentido da vida.
Se é verdade que são nítidas as influências de Tolkien não deixa se ser verdade que o enredo deste livro é riquíssimo. A imaginação do autor é prodigiosa, a começar pela caracterização das personagens, as criaturas fantásticas dessa terra imaginária chamada Fantasia.
Quando o nosso herói entra no livro, saindo do seu mundo limitado de aluno medíocre e adolescente fracassado, embarcando na aventura dentro da terra da Fantasia, ele encontra situações que só uma imaginação prodigiosa poderia criar. É esta imaginação que confere ao livro um tom verdadeiramente encantado, capaz de envolver crianças e adultos numa aventura fantástica e inesquecível.
Depois de, na primeira fase do livro, depararmos com todo este mundo encantador, a partir de certa altura o autor conduz-nos para algo mais sério; é que Bastian Baltasar Bux não cederá às tentações do poder. E a partir daí o autor leva-nos até assuntos bem mais sérios, como a natureza do poder e todas as consequência que daí advêm. E para salvar os dois mundos, o da Fantasia e o mundo dos homens, alguém terá de fazer a ponte o real e o sonhado. Só com essa união os homens poderão ser felizes, assim como os fantásticos seres de Fantasia.
Um pormenor interessante é o facto de em Fantasia não haver Bem nem Mal. Tudo aí é necessário, e tal como o tempo e o espaço também o Bem e o Mal são relativos…



quinta-feira, 17 de abril de 2014

Misery - Stephen King



Sinopse:
Paul Sheldon é um famoso escritor de romances cor-de-rosa, tornado célebre pela personagem principal das suas obras, Misery Chastain. Porém, Sheldon entendeu que estava na hora de virar a página e decidiu «matar» Misery.
É então que sofre um terrível acidente de viação e é socorrido por Annie Wilkes, uma ex-enfermeira que o leva para sua casa para o tratar. O que Paul não sabe é que Annie, a sua salvadora, é também a sua maior fã, a mais fanática e obcecada de todas — e está furiosa com a morte de Misery.
Ferido e incapaz de andar, totalmente à mercê de Annie, Paul é obrigado a escrever um novo livro para «ressuscitar» Misery, como uma Xerazade dos tempos modernos nas mãos de uma psicopata tresloucada que há muito deixou de distinguir a realidade da ficção.
Repleto de complexos jogos psicológicos entre refém e captor, Misery é uma obra de suspense e terror no seu estado mais puro.

Comentário:
Durante muito tempo resisti à leitura deste autor por não gostar do género. No entanto, aconselhado pela Andreia do Clube de Leitura Bertrand de Braga, decidi dar esta chance ao S. King. Terminei a leitura com um sentimento contraditório: por um lado confirmou-se o meu receio – é mesmo terror de faca e alguidar; por outro lado, é muito mais que isso.
Comecemos por aquilo que me desagradou: uma perna decepada à machadada; um polegar decepado por uma faca elétrica; um corpo despedaçado a golpes de machado… e o velho cliché da personagem que nunca mais morre, mesmo com a coluna vertebral desfeita…este cenário de talho e carniceiros não me agradou mesmo nada.
No entanto, este livro tem outro lado, esse sim, muito meritório: em grande parte, este livro pode ser entendido como um grito de lamento de um escritor de sucesso que está condenado a ser… um escritor de sucesso! Escrever grandes livros, de qualidade, não é possível simplesmente porque o público não quer. Se o escritor opta por uma obra em profundidade, uma reflexão séria e cuidada, o leitor comum rejeita porque apenas quer emoção e drama. Então, o que leva os escritores a optar pelo sucesso fácil não é só o lucro: é a pressão do próprio público que aqui é personificada de forma simbólica pela louca Annie Wilkes.
Outra das razões que me levou até este escritor foi o facto de ele ter sido o autor do argumento de um dos meus filmes de culto: Shinning. Pois nesse aspeto confirma-se a genialidade de King: o terror vai muito além das meras cenas de faca e alguidar; para além do que é vulgar neste tipo de literatura (a abordagem dos limites da mente insana) esta obra coloca-nos perante uma questão muito importante: até onde pode chegar o poder dos leitores. Nesta sociedade neoliberal, onde o consumo impera, estará o escritor condenado a uma espécie de escravidão do mercado? Parece que sim. Obviamente, o leitor comum não violenta o escritor como fez Annie, mas exerce um certo poder em forma de chantagem: se queres ter sucesso, escreves o que nós queremos. És livre para escrever boa literatura mas, provavelmente, ninguém te vai ler.
No entanto, parece também certo e seguro que os verdadeiros génios da escrita conseguem escapar a esta chantagem. Mas esses são em número muito reduzido. E S. King não está entre eles.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

A sul da fronteira, a oeste do sol - Haruki Murakami



Sinopse:
Na primeira semana do primeiro mês do primeiro ano da segunda metade do século XX, ao protagonista, que também faz as vezes de narrador, é dado o nome de Hajime, que significa «início». Filho único de uma normal família japonesa, Hajime vive numa província um pouco sonolenta, como normalmente todas as províncias o são. Nos seus tempos de rapazinho faz amizade com Shimamoto, também ela filha única e rapariga brilhante na escola, com quem reparte interesses pela leitura e pela música. Juntos, têm por hábito escutar a colecção de discos do pai dela, sobretudo «South of the Border, West of the Sun», tema de Nat King Cole que dá título ao romance.
Mas o destino faz com que os dois companheiros de escola sejam obrigados a separar-se. Os anos passam, Hajime segue a sua vida. A lembrança de Shimamoto, porém, permanece viva, tanto como aquilo que poderia ter sido como aquilo que não foi. De um dia para o outro, vinte anos mais tarde, Shimamoto reaparece certa noite na vida de Hajime. Para além de ser uma mulher de grande beleza e rara intensidade, a sua simples presença encontra-se envolta em mistério. Da noite para o dia, Hajime vê-se catapultado para o passado, colocando tudo o que tem, todo o seu presente em risco.  
in www.wook.pt
Comentário:
Esta é uma das obras aparentemente mais simples e linear deste génio da literatura japonesa. A fantasia oriental, o encanto exótico e a sensualidade misturam-se de forma genial com uma crítica social e política bem marcada.
Os gatos e a música são elementos aparentemente secundários que parecem fazer parte de todo o universo literário de Murakami e este livro não é exceção. O título, encantador, baseia-se mesmo num tema musical de Nat King Cole. A música e a literatura num todo coeso que é a arte. É música que vai testemunhando todos os momentos fulcrais da vida do protagonista, Hajime, talvez caraterizado com alguns traços autobiográficos.
No entanto, o aspeto mais marcante do livro é a importância das fronteiras que o ser humano traça na sua vida.
Há fronteiras em tudo quanto constitui a nossa vida; e algumas dessas fronteiras são bem difíceis de reconhecer; é o caso da eterna separação possível entre o Bem e o Mal. Hajime tenta ser uma pessoa honesta, frontal, coerente. No entanto, sem que dê por isso, acaba sempre prejudicando alguém com as suas opções. O Mal é inevitável.
Outra fronteira fundamental e quase sempre impossível de reconhecer é a que separa a nossa juventude da vida adulta; toda a vida de Hajime ficou marcada pela dificuldade em reconhecer essa fronteira e pela forma como a sua infância determinou o seu destino. Afinal, a infância não é demarcável por uma linha de fronteira.
E, finalmente, a mais importante e a mais fatal das fronteiras: aquela como que delimitamos o nosso mundo concreto, rotineiro e banal, isolando o nosso sonho. O sul. A sul da fronteira há um destino de sonho; um mundo só acessível àqueles que arriscam deixar para trás o comodismo, o materialismo, o mundo pequenino do concreto e trivial. O problema é que a segurança está no trivial. Até quando poderá Hajime suportar o apelo do sonho que vem do sul da fronteira?
Aqui, o sul, o mundo do sonho é representado pelo elemento feminino de forma muito bela; ao longo da vida Hajime irá confrontar-se com os ecos de uma infância e adolescência onde se haviam semeado os sonhos; e eles têm nomes concretos: Shimamoto e Izume, as suas paixões juvenis.
A partir de meados do livro a narrativa evolui para um caminho algo diferente, onde os mistérios se adensam e vem ao de cima o aspeto mais encantador da escrita de Murakami: a naturalidade com que as coincidências surgem, como se o impossível não existisse. Assim, emerge aquele toque de fantasia poética que tanto embeleza a narrativa deste génio nipónico.
Perante um mundo capitalista que o oprime mas que lhe dá segurança, Hajime vai ser confrontado com o grande dilema: a felicidade só se consegue com a perda dessa segurança. Há um certo paralelismo entre esse conforto que o ser humano (a medo) procura e o mundo capitalista em que vivemos mergulhados. O capitalismo é visto como o mundo do comodismo, da imobilidade, mas também da exploração e da ausência de ética. Um mundo obscuro, cinzento, mas envolto numa aparência de felicidade. Terá Hajime a força para lhe resistir?

sexta-feira, 11 de abril de 2014

Estórias Abensonhadas - Mia Couto



Sinopse:
Depois de Terra Sonâmbula estas estórias fazem regressar o imaginário moçambicano pela mão de Mia Couto. Se o romance deste autor moçambicano nos transportou para o universo trágico da guerra, estas breves histórias são flagrantes do renascer do país, depois da assinatura do Acordo de Paz. Reúnem-se aqui contos, alguns já publicados em jornal, em que se inscreve o mesmo estilo e a mesma capacidade de sonhar já consagrados em anteriores obras (Vozes Anoitecidas, Cronicando, Cada Homem é uma Raça, Terra Sonâmbula). Os contos já publicados foram, no entanto, revistos e alterados para publicação em livro. Em todas as estórias se reconhece o trabalho profundamente pessoal de recriação da linguagem, o aproveitamento literário da fala popular moçambicana e o pleno exercício da poesia.
In wook.pt

Comentário:
Antes de mais nada, o título: duas palavras magníficas. O termo “estórias” é uma palavra que gostava de ver mais usada quando nos referimos a literatura de ficção. “Abensonhadas” é uma palavra que exemplifica bem a poesia e a criatividade da escrita de Mia Couto.
Já poucos adjetivos me sobram para comentar uma obra deste grande escritor moçambicano. Resta-me talvez dizer que, na minha opinião, é o melhor escritor vivo da língua portuguesa.
Tal como acontece em todas as suas obras, também em Estorias Abensonhadas, Mia Couto brinca com a Língua Portuguesa de forma hábil e divertida; e nesses trocadilhos há uma poesia por vezes genial, como quando do sorriso de uma mulher se diz que “nem água fosse mais cristalinda”. É raro encontrarmos uma beleza como esta na língua portuguesa.
E depois há aquele toque de maravilhoso, de mágico, como no conto “O Cego Estrelinho”, em que o guia do cego, o miúdo Gigito, lhe inventa um mundo maravilhoso, se bem que todo ele inventado. No entanto, para que serve a realidade se podemos inventar mundos muito mais belos?
De notar que estas estórias foram escritas no final da guerra civil que assolou Moçambique. Mas é para lá da guerra que Mia Couto escreve; e para lá da guerra há a terra. A terra maravilhosa, imortal, a terra “perfumegante que semelha a mulher”; a terra sobre a qual cai a chuva que lava o sangue; a terra que é a “mãe das mães”. E o apelo da terra é tão forte que o velho Felizbento, que tem de ser deslocado por causa da guerra, não sai sem levar consigo a árvore da sua terra.
Uma referência para o conto “A Guerra dos Palhaços”. Trata-se de uma bela alegoria da guerra: dois palhaços simulam uma briga e a partir daí provocam uma verdadeira guerra na cidade; e depois de recolherem os seus lucros, vão provocar a mesma guerra noutra cidade…
Finalmente, um destaque muito especial para o último conto: cheio de uma inexcedível e singela beleza…

terça-feira, 8 de abril de 2014

Quincas Borba - Machado de Assis

Sinopse:
Ao ceticismo distanciado de Memórias Póstumas de Brás Cubas segue-se, seis anos depois, em Quincas Borba a credulidade romântica de Rubião, humilde professor tornado rico por herança de filósofo e perdido no Rio de Janeiro e na Corte em busca de emoções. Rubião é fascinado por Sofia e enganado pelo marido desta, Cristiano Palha, que transforma a mulher em instrumento da sua ascensão burguesa. Mas Sofia não tem a audácia de uma Bovary, nem sequer a desenvoltura da Luísa de O Primo Basílio e Rubião naufraga nas esperanças perdidas.
Se Memórias Póstumas de Brás Cubas deixa um rasto de lúcida diversão que evita a tragédia, Quincas Borba mergulha na irreversível loucura do seu personagem. Rubião parece destinado a ilustrar a teoria do filósofo Quincas Borba, resumida na frase: ao vencedor, as batatas. Neste romance cuja acção decorre entre 1867 e 1870 são visíveis os reflexos dos acontecimentos da época, desde a guerra do Brasil com o Paraguai ao esplendor e queda de Napoleão III, com quem Rubião se identificaria.
Comentário:
Misturando um pessimismo ontológico com uma narrativa marcadamente realista, resulta daqui uma obra notável pelo seu simbolismo mas também por uma história agradável e bem humorada. É este, em minha opinião, o mérito maior de Machado de Assis: o de combinar de forma genial o pessimismo com uma escrita agradável e bem humorada.
O nosso herói, tal como em Memórias Póstumas de Brás Cubas, está morto. Machado de Assis mata-o logo nas primeiras páginas do livro. Tratar-se-á de uma metáfora sobre a vida, que não se esgota com a morte? De Quincas Borba ficam duas coisas notáveis que marcarão todo o enredo: o cão com o mesmo nome do dono e a sua filosofia original: o humanitismo.
Rubião é o herói do livro; ele herda três coisas do seu amigo Quincas: o cão, a filosofia com todos os seus efeitos e uma fortuna enorme.
Mas Rubião, ao longo do livro, vai-se “coisificando”. É aqui que entra o pessimismo do autor perante os destinos do ser humano; Rubião há de cair nas garras de uma mulher, Sofia, que o levará à loucura. E de um homem, o marido de Sofia, Cristiano Palha, que o ajudará a esfarrapar a fortuna.
Não estou com isto a revelar segredos sobre o enredo porque para o leitor há surpresas a rodos ao longo do livro; se o destino de Rubião é a loucura, isso qualquer leitor adivinha a meio do livro; no entanto, como Rubião lá chega, isso sim, é a marca do artista Machado de Assis.
Não é por acaso que muitos leitores consideram Machado de Assis um concorrente direto de Eça de Queirós; tal como o génio português, também o escritor brasileiro deixa bem marcado o seu espírito crítico, nomeadamente sobre aquela aristocracia anacrónica, diletante e oca de ideias que se limita a vegetar em torno de quem tem poder e dinheiro. Dessa vida vegetal à política vai um pequeno passo. A ambição do ser humano não reside no enriquecimento pessoal ou ético, mas no poder e estatuto social.

Quanto ao elemento feminino, nem aí Assis deixa os seus créditos por mãos alheias: as atitudes de Sofia perante a paixão proibida de Rubião representarão alguma acusação a uma atitude provocatória típica do sexo feminino? Será Sofia, a mulher fatal, causa de todas as desgraças? Se é este o intento de Machado de Assis, não sei, mas assim parece ao modesto leitor.

sábado, 5 de abril de 2014

O Décimo Terceiro Conto - Diane Setterfield

Sinopse: O Décimo Terceiro Conto narra o encontro de duas mulheres: Margaret, jovem, filha de um alfarrabista, biógrafa amadora, e Vida Winter, escritora famosa, que, sentindo aproximar-se o final dos seus dias, convida a primeira para escrever a sua biografia.
Na sua casa de campo, a escritora decide contar a verdadeira história da sua vida, revelando um passado misterioso e cheio de segredos. As duas vão partilhar vivências profundas, resgatando velhas memórias e confrontando-se com fantasmas há muito adormecidos.
Sem que pudessem inicialmente prever, acabam por entrelaçar as suas vidas de forma tão intensa, que o resultado não poderia ser outro que não uma inesquecível história de amor, amizade e solidão.
in www.presença.pt


Comentário:
Uma autora praticamente desconhecida até agora, revela neste livro uma habilidade narrativa notável. Estamos perante um livro com uma arquitetura muito bem estruturada, uma narrativa complexa mas imaginativa e desenvolvida de forma original. Ao mesmo tempo, vai-se mantendo um mistério que só se revela na última fase do livro, de forma surpreendente. Aliás, este é o aspeto mais polémico do livro. Se, por um lado há um certo suspense que se desfaz de forma surpreendente, por outro lado o leitor pode sentir uma certa deceção porque esse elemento que vem desfazer o mistério tinha sido ocultado pela autora desde o início da narração.
Desde o início é nítida a abordagem da importância da educação por um lado e da força dos laços de sangue por outro, nos destinos individuais. No entanto, para lá dessas duas forças parece haver algo mais, uma espécie de força maior, algo misteriosa e inexplicável que transforma o fantástico no "acontecível".
Um dos aspetos mais notáveis deste livro é a abordagem dos limites ténues entre a realidade e a ficção; Vida Winter, a protagonista do livro, é uma escritora de sucesso. A sua própria vida, no entanto, acaba por confundir-se com esse mundo ficcionado, numa interdependência constante. Se é a vida que imita a arte, como dizia Oscar Wilde ou se, pelo contrário é a arte a imitar a vida, ficamos sem saber e talvez seja isso o menos importante. O que realmente é uma verdade incontornável é que a ficção e a fantasia fazem parte da vida. Neste livro, há um fantasma; mas um fantasma real. Em vários aspetos, a escrita de Diane Setterfield faz lembrar o realismo mágico de Garcia- Márquez ou Isabel Allende. Mas aqui a fantasia é real e verdadeira. Acontecível, como diria Mia Couto. Aliás esse foi outro nome que me veio à memória ao ler este livro. A narrativa do escritor moçambicano é também marcada por esse fantástico que emerge sempre do real, do concreto que há na vida e na mente do ser humano.