sexta-feira, 27 de maio de 2011

ALA e os nosso vícios

Há dias, neste bolgue, o Duarte do Desfiladeiro, em comentário ao livro "Os Cus de Judas", dizia o seguinte: "Faz muitas citações o que torna, para um leigo como eu, a leitura difícil e algo enfadonha. Mas a culpa deverá ser minha."
Não é, obviamente, culpa do Duarte. Muito menos do Lobo Antunes; todos nós, penso eu, já passamos por muitas experiências destas: achar o livro interessante, com qualidade literária mas sentir a leitura tornar-se difícil e, por via disso, enfonha.
O que se passa, a meu ver, é que o nosso cérebro de leitores está formatado, desde a infância, para a leitura "narrativa". Todos nós começamos por ler histórias infantis e juvenis e habituamo-nos a procurar no livro um enredo empolgante, com incerteza até ao fim e, por assim dizer, com princípio, meio e fim.
Penso ser este o principal motivo pelo qual as obras de António Lobo Antunes se tornam difíceis para muitos leitores: porque continuamos a procurar nelas o tal enredo, a tal estória com princípio, meio e fim que, obviamente, nunca encontraremos.
Na minha opinião (de modesto leitor, portanto sem qualquer pretensiosismo) devemos dividir a literatura de ficção em três categorias:
- O romance tradicional, predominantemente narrativo (que não exclui, obviamente, passagens mais descritivas e/ou reflexivas).
- A ficção mais reflexiva, onde se inclui ALA, na sequência, por exemplo, de obras fundamentais da literatura mundial como O Som e a Fúria, de Faulkner ou a primeira parte de Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski.
- A ficção de cariz mais ou menos surrealista, onde a realidade é deformada para criar uma atmosfera de fantasia destinada a caricaturar ou interpretar o real de forma abstracta. Nesta categoria penso que se destaca a obra de Boris Vian.
O problema a que me referia acima deve-se, portanto, à tentação que temos, de ler as obras da segunda e terceira categorias como se da primeira se tratasse.
Se, pelo contrário, deixarmos de procurar a linearidade nos livros de Lobo Antunes, certamente iremos encontrar a beleza da linguagem e nos deixaremos embalar pela poesia da sua escrita. Lentamente, à medida que nos deliciamos com essa perfeição formal, vamos sentindo as emoções que o escritor nos quer transmitir.
Em conclusão: não procuremos estórias em ALA. Apreciemos antes a estética e o sentimento. É isso que o distingue e que faz dele um enorme GÉNIO literário.

4 comentários:

Luís Azevedo disse...

Em certa medida é verdade; romances que fogem à regra, na sua estrutura e conteúdo, podem dar origem a um grande prazer na sua leitura a quase qualquer pessoa. Mas, o treino e a persistência que invariavelmente existem quase sempre afastam o leitor. Poucos estão dispostos a abandonar um estilo de escrita com o qual se sentem à vontade por outro desconhecido e mais trabalhoso.
Essa formatação de que todos somos vítimas, quer no que toca a livros como por exemplo em filmes, é, infelizmente, muito difícil de eliminar.
PS. Parabéns pelo blog. É um dos mais bem escritos e interessantes que tenho tido o prazer de visitar.
Cumprimentos
Baú-dos Livros

Hugo disse...

Muito obrigado por este post, Manuel, foi feito na altura ideal para mim. É engraçado, há já algum tempo que os livros de Lobo Antunes me perseguiam e eu a eles. Apesar de nunca ter lido nada da sua obra, até há escassos dias atrás, já conhecia a particularidade da sua escrita e, se é verdade que esse facto me afastava dos seus livros, não é menos verdade que quando pegava em algum deles, em qualquer livraria, me pareciam dizer "leva-me e descobre o que está por detrás das minhas frases", como se de um jogo se tratasse. Na última feira do livro que decorreu em Lisboa, acabei por entrar nesse "jogo" e comprei "O meu nome é Legião". Não foi algo premeditado nem tão pouco sabia de que tratava o livro, mas ler as primeiras linhas foi o suficiente para me decidir por este. Lidas as primeiras 100 páginas, as frases intermináveis do autor não me assustam e tenho conseguido perceber e acompanhar o conteúdo do texto (julgo eu), não sem alguma dificuldade em determinadas partes, confesso, nomeadamente quando o narrador baralha a descrição dos movimentos de um grupo de criminosos com reflexões pessoais, que se sucedem ao longo das páginas.
Sendo eu daqueles leitores que gosta de perceber cada palavra e frase transcrita nos livros, portanto habituado aos romances predominantemente narrativos, que o Manuel retratou, questiono-me se, ao tentar apreciar as obras de Lobo Antunes mais pela estética e sentimento, no final não ficarei com a sensação de não ter percebido certas reflexões: onde é que se enquadram e quem as profere, já que o narrador nem sempre é a mesma personagem.
Voltando ao "jogo" que decidi jogar com Lobo Antunes, ele está claramente a ganhar...diria tratar-se de Xadrez. :)

Unknown disse...

Luís, obrigado pelas tuas palavras. E é sem exagero nenhum que retribuo dizendo que o Baú dos Livros é, também para mim, um blogue de referência.
A nossa mete está treinada para tentar compreender tudo; às vezes temos de agir com mais leveza... deixar fluir a leitura.
Hugo
ele ganha sempre porque tem os trunfos todos. Como queres ganhar o xadrez se ele joga com as duas raínhas? :)
o melhor mesmo é ficar a vê-lo jogar e depois, no final do jogo, perdemos mas ficamos a saber como ele joga.
É mais ou menos isso, não é?

Duarte disse...

Antes de mais fui surpreendido pela referência ao meu blogue (a qual agradeço), quando expus a minha ignorância sobre a leitura, sobre livros, no caso em concreto, sobre o entendimento de uma obra de ALA. Devo dizer que, além da surpresa agradável por ter despoletado uma ideia para um post, a sua leitura veio ao meu encontro, e elucidou-me sobre a forma de ler as obras reflexivas, separando-as das de pendor narrativo. Nas primeiras é enfatizada a forma, a beleza da linguagem e as imagens poéticas. Eu considero que numa obra narrativa, de princípio, meio e fim, também pode haver partes reflexivas, beleza linguística, elegância no estilo, mas reconheço que cometia de facto o erro de tentar encontrar linearidade e coerência em livros como os de ALA. Porém, nunca deixei de apreciar a forma e a beleza da linguagem. E por falar em leitura difícil, com partes reflexivas de ficar suspenso, que dizer da escrita de Agustina-Bessa Luís? Não seria um repto desafiá-lo para a sua leitura? :) Certamente irá arrasar a média, porque requer tempo para diferir .)