No contexto da obra de José Saramago, trata-se de um livro diferente. É um texto belíssimo, num estilo inconfundível, cheio de imaginação e humor. É brilhante a forma como, logo de início, o leitor é levado, com naturalidade, para o domínio do inverosímil, da fantasia pura. A morte é encarada como uma força viva e quase física. Desta ideia, Saramago parte um discurso cheio de peripécias fantasiosas mas sempre sem perderb a ligação com o real, com a vida. “As intermitências da morte” é, em parte, uma fábula – a morte assume características humanas, como uma entidade autónoma embora com todos os poderes que a confundem com um deus. Tudo começa quando a morte decide fazer greve e os cidadãos deixam de morrer. Neste ponto é genial a forma como Saramago põe em confronto a alegria do povo com as preocupações do governo. Só desta forma se reconhece a importância da morte e a sua função prática. Sem a morte a vida do país torna-se um caos; a Igreja, que controla o poder político e determina as ideologias dominantes, desespera. Porque sem morte não há ressurreição e sem ressurreição não há religião. Levadas as coisas às últimas consequências, sem a morte a religião perderia todo o seu poder, porque sem a morte não há medo. É essencial para o poder político e para a Igreja que o medo perdure. Mas a ausência da morte cria também problemas politico-sociais: “o que vamos fazer com os velhos”? – uma questão actual e polémica que Saramago introduz com mestria e a-propósito. Outra ideia interessante neste livro é a impensável lista de prejudicados com a greve da morte: agencias funerárias, hospitais, companhias de seguros, médicos, advogados, jornalistas, etc etc. Até os filósofos dependiam da morte; sem ela toda a especulação se torna impossível porque sem a morte não se pode procurar o sentido da vida. O povo, aos poucos vai sentindo o lado negro da greve da morte; afinal, multiplicam-se os problemas quando os entes queridos, mesmo em sofrimento, não morrem. Torna-se impossível suportar os moribundos. Os políticos e as máfias – numa amálgama inteligentemente criada por Saramago – definem estratégias concertadas para evitar escândalos, procurando manter “o rumo natural” das coisas, de forma discreta e politicamente correcta, perante a “moda” que entretanto se instalara: a de levar os moribundos a morrer do outro lado da fronteira. É uma incursão discreta de Saramago pelo tema da eutanásia. Aqui, fica bem clara uma crítica severa à forma como as estruturas políticas encaram os idosos – o matematismo mercantilista da Segurança Social, tema tão controverso como actual. Ao longo de todo o livro, um traço curioso é o discreto e inteligente sentido de humor com que Saramago aborda estes temas tão dramáticos. A parte final do livro é genial e surpreendente. A morte assume um rosto humano, feminino e irresistível. Mas só a música é capaz de a vencer. A música e o amor.