A primeira fase do livro dá o mote: trata-se de uma obra de grande sensibilidade humana e enorme
qualidade literária.
O “arcaboiço” intelectual de Victor Hugo permite-lhe
intercalar análise histórica e crítica social e política com um enredo de
ficção simplesmente apaixonante.
Mas comecemos pelo início: o abade Myriol é a personificação
da bondade; chega a ser comovente. É o exemplo perfeito do clérigo humilde, bom
e justo, bem diferente daquele clero que a revolução francesa pintara com tons
bem diferentes (note-se que o enredo se passa na fase final do governo de
Napoleão quando os exageros da revolução estavam já ultrapassados.) Aliás Vítor
Hugo representa já uma opinião muito mais serena sobre a revolução, concordando
com a necessidade de combater as injustiças sociais mas com uma visão muito
mais pacífica.
Profundamente convicto das injustiças socias, o abade é o
grande defensor dos pobres. A defesa dos indigentes e a compreensão dos
defeitos da alma humana levam-no a apor-se à pena de morte e a todos os
excessos da justiça humana. A guilhotina é vista como um monstro poderoso que
devora a vida humana e tem um papel misteriosamente poderoso sobre as pessoas.
Mesmo sendo pragmático, o bispo não despreza a beleza das
flores. A criada propõe substituir as flores por alfaces, ao que ele contrapõe:
“O belo é tão necessário como o útil. Ou
até mais” (página 43)
No diálogo com o Senador Hugo expõe-nos a filosofia
materialista como uma espécie de conforto para os ricos. Aos pobres, a esses, resta-lhes Deus.
A crítica social não escapa a Victor Hugo: grande parte do
poder deve-se à imagem que as pessoas criam e não ao seu mérito. Ontem como
hoje.
Só depois entra em cena Jean (não consigo aceitar esta tradução
para João) Valjean. Depois de 19 anos condenado a remar nas galés é desprezado
por todos exceto pelo abade que o acolhe prestando-se mesmo a ser roubado.
Crítica de Hugo à
justiça: J. Valjean (daqui para a frente nomeado JV) tinha sido duramente
castigado por roubar pão. O pobre é sempre castigado duplamente: porque é pobre
e porque é forçado a roubar em virtude de ser pobre. E o que fez a justiça? Fez
um cidadão melhor? “Quando entrou para
as galés ainda não tinha perdido a bondade. Ali condenou a sociedade e
tornou-se mau. Condenou a Providencia e tornou-se ímpio.” O homem, que saiu
bom das mãos de Deus, tornava-se mau em virtude da (in)justiça dos homens.
Durante 19 anos JV desaprendera de chorar. Os sentimentos
esvaíram-se. Após a noite em casa do bispo, JV chorou. A consciência moral
voltara. “Quem roubara não fora ele; não fora o homem mas a besta.”
Fantina
e o seu namorado, Tholomyés, são duas personagens típicas, representando dois
arquétipos sociais: ela, ingénua e simples, inocente e honesta. É filha do
povo. Desabrochara ”do seio do povo!”, diz o autor. Pelo contrário, o seu
apaixonado é o arquétipo do estroina rico que, com 30 anos é praticamente um
inútil perante a sociedade. Esta devassidão de Tholomyes está bem patente no
facto de ter desaparecido perante a gravidez de Fantina.
Nesta
fase do livro, Victor Hugo carateriza o povo de Paris como um povo fraco,
constituído por “homúnculos”. Em 50 anos após a grande revolução, parece que o
povo da cidade tinha enfraquecido, tornando-se fraco e impotente.
Entretanto,
Fantina procura trabalho e deixa a filha ao cuidado do casal Thénardier. Este
casal representa aquele que é, para Hugo, o grupo social mais abjeto: aqueles
pobres que atingiram um estatuto um pouco superior ao povo miserável mas
inferior à classe média. Assim, não possuem a honestidade do burguês nem a
bondade do pobre.
O
senhor Madaleno é um homem bom que chega a Maire de Montreuil sur mér. Admirado
por todos, ele beneficia da proteção do bispo de Digne, monsenhor Myriel, que
havia falecido em 1821. (Mais adiante descobrir-se-á que Madaleno é Valjean).
Nesta fase do enredo o anti-herói é Javert, o inspetor que representa aquele
estereótipo de polícia que, sob a capa do rigor é absolutamente arbitrário e
repressor.
A
escrita de Hugo atinge os píncaros da emoção ao descrever os sacrifícios incríveis
que Fantina faz para alimentar a filha, ou melhor, a cobiça do casal de
estalajadeiros.
Esta
é a crueza de linguagem e a sensibilidade humana, ao nível social, que haverão
de marcar em definitivo o realismo literário. Notável, sem dúvida!
JV debate-se com a
sua própria consciência. Até que ponto é justo ceder a uma justiça basicamente
injusta? Por outro lado, Victor Hugo (VH) parece apontar para esta ideia: a consciência é apanágio dos pobres.
A descrição da batalha de Waterloo é um exemplo do estilo e da mentalidade romântica
que ainda subsiste em VH: um certo triunfalismo em relação ao espírito patriota
que demonstra, típico dos escritores românticos. Mas, ao mesmo tempo, VH foge
ao romantismo exibindo características
realistas, por exemplo nas descrições quase cinematográficas da batalha.
Imagens realistas, mas sempre com emoção e sensibilidade humana.
Para VH, Waterloo é a vitória da racionalidade sobre a
emoção.
Na abordagem ao papel
do clero, VH deixa claro um criticismo
quase radical ao clero regular,
principalmente feminino. Por um lado admira as freiras pela sua dedicação e
desprendimento, por outro é mordazmente crítico por considerar totalmente
irracional o seu estilo de vida. Considera os mosteiros e conventos inúteis,
nefastos e mesmo violentos.
A escrita de VH
envolve um humanismo, uma delicadeza
e uma sensibilidade humana impressionantes. Mais do que um grande escritor, VH
foi, sem dúvida, uma grande alma, um
daqueles homens a quem a humanidade inteira fica em débito para toda a eternidade.
Dois exemplos deste humanismo:
a) Vendo passar um grupo de presos miseráveis,
Cosetta pergunta a JV: Aquilo são homens? JV responde: Às vezes, disse o
miserável…
b)
O pequeno Gavroche rouba um saco de moedas ao
ladrão Montparnasse e embora passando fome dá-o, anonimamente, ao miserável
velho Mabeouf.
Os dilemas morais
são um dos alicerces deste romance. VH coloca sempre o leitor perante um
mistério, levando a que seja o próprio leitor a desvendá-lo. Por outro lado,
confronta o leitor com grandes dilemas morais.
O dilema de Mário: o pai havia falecido no justo momento em
que Mário o encontrou. A sua última vontade foi que ajudasse Thenardier por
este lhe ter salvo a vida em Waterloo. Mas Mário descobre que Thenardier é o
pérfido bandido Jondrette que não só ameaça roubar o seu benfeitor JV como
prender e quiçá matar a sua amada Cosette. Fazer justiça e entregar Jondrette
ou cumprir a vontade do pai e ajudá-lo?
Toda a análise
histórica de VH é profundamente crítica: “Dizer: os homens hábeis é o mesmo
que dizer: os medíocres” – uma crítica à classe política, pelo seu oportunismo.
Na parte final do romance, todo o mal é encarnado pelos
Thenardier; eles são miseráveis de corpo
mas também de alma. Parece que JV e Mário são os miseráveis que resistem à
miséria da alma. Preservam-na a todo o custo. Porque o normal é a miséria
invadir a alma levando os miseráveis a perder toda a dignidade humana, como
acontece com os Thenardier mas também com os bandidos, nomeadamente
Montparnasse. JV luta contra a injustiça do corpo e da alma. Luta para manter a
humanidade.
A última fase do livro desenrola-se em torno dos
acontecimentos revolucionários de 1833. Entre os revoltosos, é comum
encontrarmos uma boa quantidade de bêbados e outros devassos. Na verdade, as
barricadas são muitas vezes encaradas como uma espécie de festa popular. Mas
esse é também um meio de expressão da própria revolta.
Outro tipo de revolucionário é o idealista. Estes são
geralmente os líderes. Enjolras personifica aqui esse idealismo revolucionário,
com um rigor por vezes impressionante, como naquele episódio em que Enjolras
executa Claquesous por este ter abatido um porteiro.
VH faz um enorme elogio ao povo, na História: em Roma,
na Holanda, em Atenas e com Jesus Cristo. As barricadas são um símbolo desse
poder popular, sem manipulação burguesa, com idealistas “nobres” como Enjolras, com jovens que nada têm a
perder, como Mário, e até com crianças aventureiras, corajosas e de bom
coração, como Gavroche. Esta criança tem uma grande valor simbólico na obra:
ele simboliza a coragem de todo um povo. Ele “dribla” as balas cantando.
Há uma crença clara na utilidade destes sacrifícios: com a
República, acabam as guerras. O elogio à revolta popular está bem patente nesta
frase: “A Revolução Francesa é um gesto de Deus”. Os heróis deste livro são
aqueles que mantinham viva a chama da
Revolução Francesa, iniciada mais de
60 anos antes: “o livro que o leitor tem neste momento diante dos olhos é
(…) a marcha do mal para o bem, do injusto para o justo, do falso para o
verdadeiro.
VH manobra com mestria os dilemas morais das personagens; Javert vê-se num terrível dilema:
prender JV ou recompensa-lo com a liberdade porque o salvara? Impressiona-o que
JV responda ao mal com o bem.
Entretanto, JV sente a mais terrível das condenações: a
ausência de sentir; a falta de uma razão para existir. “Que é isto, voltar para
as galés comparado com isto, voltar ao nada?” De facto, um dos maiores valores
da obre de VH é a força interior
destes personagens.
Em suma: pouco mais há a dizer senão isto: estamos perante
uma das maiores obras literárias de todos os tempos. Pelo marco histórico; pelo
significado em termos de mudança de paradigma literário (do romantismo ao
realismo) e, acima de tudo, pelo intenso e quase sufocante humanismo de Victor
Hugo.