A surpresa, o imprevisto, o suspense, dão a este livro um tom policial que está longe de limitar a obra a essa dimensão. Na verdade trata-se de um misto de romance histórico, policial e romance clássico, muito inovador e complexo. No entanto, esta complexidade não deixa nunca que a narrativa se perca em emaranhados embaraçosos para o leitor, como tantas vezes acontece em escritores que procuram a complexidade como forma de, por si só, guindar a obra aos patamares mais elevados do sucesso. Trata-se de um enredo genialmente rico, onde a narrativa é sempre surpreendente e inovadora. A personagem principal, Lucas Corso é, logo à partida, um verdadeiro desafio à imaginação do leitor: um mercenário dos livros, um homem que procura fortuna na literatura, não através da escrita mas do livro como mercadoria, ou melhor, como preciosidade. Desta ideia de livro como tesouro artístico, Reverte inicia a narrativa num contexto típico de romance histórico: a missão de Corso é encontrar um livro queimado no século XVII juntamente com o seu impressor. A partir daí o Autor encaminha o leitor por um magnífico passeio pelas teias tenebrosas do santo Ofício, pelos caminhos tortuosos do comércio clandestino de livros e pelo mundo encantador dos amantes dos livros, aqueles para quem a vida só tem sentido entre estantes poeirentas. Este livro é, no fundo, um verdadeiro hino à arte de amar os livros. É o livro quem comanda o homem e determina a sua vida e a sua morte. Pelo meio podemos, com algum esforço, encontrar algo de menos genial nesta obra: há uma certa tendência para o cliché, ou seja, para a previsibilidade da aventura. Reverte segue, por vezes, caminhos aparentemente fáceis para prender a atenção do leitor. Mas não podemos esquecer nunca que a literatura também é diversão; e a arte também pode ser divertida. É nesse sentido que nos apresentado um herói que vive para os livros sem qualquer traço de erudição: ele é mais um malandro do que um erudito. Este aspecto dá um carácter mais leve ao enredo e o leitor que procura divertir-se coma leitura, agradece. Como nota negativa refira-se os numerosos erros de revisão nesta edição da D. Quixote.
. O que um escritor nos dá não são livros. O que ele nos dá, por via da escrita, é um mundo. Mia Couto
sábado, 12 de maio de 2007
quarta-feira, 2 de maio de 2007
A Herança do Vazio - Kiran Desai
Antes de tudo, este livro é um brilhante testemunho da História da India no século XX, nascida de um passado brilhante mas vítima da opressão e exploração europeia. A Indía foi sucessivamente delapidada por Impérios europeus: primeiro os portugueses, depois os franceses e holendeses, finalmente os Ingleses, os senhores da Civilização e da opressão. Mais uma vez, o tema tantas vezes debatido e sempre tão actual: o choque de culturas. A acção decorre na Índia pós-colonial onde ainda se debate a contradição entre o paradigma civilizacional inglês e a prevalência de uma cultura ancestral identificada com as raízes religiosas e mentais mas que, ao mesmo tempo, envolve um quadro socio-económico arcaico. A pobreza está por todo o lado, justificando um misto de ódio e admiração pelos ingleses: ódio por parte daqueles que lhe atribuem a causa de todas as desgraças, admiração por parte daqueles que se encontram revoltados perante o conservadorismo da sociedade tradicional indiana. Trata-se da relação colonizador/colonizado por detrás da luta entre a tradição e uma modernidade tão atractiva como decepcionante. Mas há algo mais que isso: o conflito entre a pobreza e a riqueza, o dilema entre a tradição e a modernidade, o pôr em causa dessa mesma modernidade; a dúvida entre o aceite e o imposto. Por outro lado, o conflito político; o dilema daqueles que serviram um senhor que se revelou opressor. E a América, sempre a América como pano de fundo de uma esperança apenas aparente. A revolta perante um mundo de desilusão; a vida destruída entre conflitos que se impõem de um exterior vasto e devorador: os ingleses mas também a fabulosa América que inebria e corrói. A liberdade conquistada e o choque brutal com um país onde a liberdade, frágil construção humana, deixa germinar outras guerras. As minorias. Os nepaleses e o desejo de libertação. A violência no reino da tradição. Este é um livro sobre a solidão. Sobre almas que pendem sob os Himalaias, dependuradas num destino fabricado noutras paragens, por outras gentes. A civilização, admirada nos odiados ingleses avassala este mundo de personagens humildes e pobres. Sim, porque aqui, nesta Índia à procura de identidade, nem os ricos são ricos: todos sofrem, mesmo que de solidão. Fica a escrita brilhante tirada das profundezas da alma. Uma escrita sentida, cuidada e pessoal que elevam esta obra às fronteiras do obra-prima.
terça-feira, 1 de maio de 2007
O Perfume - Patrick Suskind
Livro polémico, alvo de ódios e paixões, “O perfume” é, a meu ver, uma obra-prima. O herói, ou melhor, o anti-herói, Jean-Baptiste Grenouille, vive em função do olfacto. O enredo decorre entre os anos de 1738 e 1767, respectivamente anos de nascimento e morte do herói-vilão que protagoniza a obra. Assim, a obra situa-se nos tempos conturbados da Revolução Francesa, em que a realidade social do Antigo Regime é brutalmente destruída, em nome da modernidade. É nesse ambiente de violência mas também de fervor que Grenouille caminha na sua cruzada contra o desprezo, contra um destino que o condenava por, simplesmente, ter nascido no meio do peixe podre. Toda a sua vida gira em torno desse sentido tão desprezado quanto misterioso. Detentor de um dom ou maldição, o cheiro é o seu guia. Sobressai nesta obra carácter infra-humano de Grenouille num tom de hipérbole por vezes exagerada, como se a fronteira entre o homem e o monstro fosse tão ténue que se tornasse irreconhecível. Ele é, assim descrito, uma figura surrealista, a fazer lembrar um quadro de Dali: distorcido pelo seu tempo mas, principalmente, pelo seu carácter. A sua sensibilidade odorífica contrasta, porém, com a ausência de odor próprio, por oposição a uma cidade que parece viver em função do olfacto: a podridão e a miséria das ruas, em contraste com o perfume da burguesia. Assim colocado entre os dois extremos, Grenouille é o anti-herói num mundo crivado de ódio. Inebriado pelo perfume feminino divaga entre a paixão e a violência, entre o amor e a morte. A ausência de odor leva-o a procurá-lo incessantemente. A procura do odor é a procura da sua própria identidade. Um livro violento e triste, que se lê com paixão mas também com revolta, perante uma cidade-luz descrita como a cidade do fedor e perante um personagem abjecto mas terrivelmente humano: porque Grenoille procura apenas a paz de espírito. A sua paz.
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