sexta-feira, 29 de abril de 2016

O Gato Preto - Edgar Allan Poe


Comentário:
Este é um dos contos mais famosos de Poe e, por conseguinte, um dos contos mais importantes da história da literatura de ficção. É preciso notar que Poe viveu na primeira metade do século XIX. Foi um pioneiro em vários aspetos. Morreu com menos de 40 anos, vítima de alcoolismo crónico, e por isso a sua obra podia ter sido ainda mais marcante. Tudo na obra de Poe é criação pura. Foi ele quem, criou o género de terror e obras que estão na base da atualmente tão apreciada literatura de fantasia. Trata-se portanto de um escritor a quem a literatura muito deve e não podemos nunca deixar de lembrar esse seu papel pioneiro.
Este O Gato Preto é, desde logo, uma evocação da tão injusta fama que o animal dessa cor tem na mentalidade europeia. Neste conto reflete-se todo o caráter que hoje se diria gótico da sua obra. Com muita emoção, muita incerteza em relação ao final, este conto exige ser lido de um fôlego; o suspense não nos deixa abandonar o livro sem chegar ao final. O enredo é um marco profundo no estilo romântico de que Poe é um dos criadores; tudo é enigmático, fantasioso, tenebroso mesmo.
Em parte, este conto revela alguns traços autobiográficos: o protagonista é claramente marcado pelo alcoolismo, que lhe provoca atitudes absolutamente revoltantes, horrendas de violência. Na verdade, o próprio Poe era vítima desse terrível vício, o que lhe provocava crises de autocomiseração e de arrependimento que transformaram a sua vida num autêntico conto de terror.

Em suma, este como qualquer conto de Poe é de leitura obrigatória para quem queira ter uma visão clara da história da literatura de ficção. Mas é também um magnífico passatempo pela forma como “agarra” o leitor da primeira à última página.

Animação com resenha do conto, aqui.

domingo, 24 de abril de 2016

As Regras da Casa da Sidra - John Irving


Comentário:
Um orfanato e uma fábrica de sidra, numa grande plantação de macieiras, no Maine. Estes são os cenários do livro, os cenários onde viveu Homer Wells, o herói do enredo. No orfanato primeiro e depois na fábrica de sidra, Homer nunca deixou de ser herói (Homer=Homero, o autor da Odisseia e da Ilíada, poemas épicos). 
Homer foi sempre um resistente; um herói na arte de saber viver com os problemas; de saber esperar, como ele tantas vezes dizia. No orfanato, o seu mentor, o formidável personagem Wilbur Larch ensinara-o a fazer partos e abortos; em causa estava a liberdade e o direito à vida. O aborto é aqui encarado como um mal necessário para que muitas mulheres pudessem ter uma vida digna.
No orfanato como na casa da sidra é notável a bondade da generalidade das personagens, a fazer lembrar Charles Dickens, tantas vezes referido neste livro. Irving traduz assim uma notável crença na bondade natural do ser humano, mau grado toda a maldade que conduz as mulheres à desgraça de ter filhos indesejados e de procurar abortos praticados por autênticos carniceiros; é por isso que Larch defende o aborto, praticado em condições dignas, como ele o faz. 
O aspeto mais curioso do livro é o facto de no mesmo local se praticar o aborto e o parto que dá origem aos miúdos do orfanato; tudo é serviço de Deus, afirmou sempre o Dr. Larch. O orfanato é um mundo nostálgico, onde reina a solidão. A mesma solidão de que sofrem as mulheres que lá abortam. O orfanato está inserido num meio natural, junto da floresta. Nota-se um certo paralelismo entre o mundo natural e uma espécie de “sociedade natural” que se vive no orfanato, onde não há hierarquias.
E toda a problemática do aborto ou dos partos “clandestinos” deriva de regras a cumprir ou a quebrar; no amago do livro está essa realidade – todo o destino é determinado por regras e toda a vida é uma luta constante entre liberdade e cumprimento de regras. Cometer um aborto pode ser crime; e furar um preservativo, como faz um personagem do livro não é crime porquê? As regras e respetivas punições colidem sempre com a procura da liberdade que as personagens encetam. No entanto, liberdade acaba sempre por ser palavra vã: todos são escravos de algo ou de alguém e têm de seguir as respetivas regras. Se as quebrarem terão sempre de se redimir pagando o respetivo “preço”. A regra mais importante é “que não se magoem uns aos outros”. Assim devia ser na sociedade humana.
Enfim, estamos perante um livro cheio de conteúdo, com ideias muito bem ilustradas pela ficção e com um estilo que agrada ao leitor pela fluência, pela objetividade e por um ritmo narrativo notável; a estória principal é muitas vezes acompanhada por pequenos episódios muito bem construídos e inseridos na estória global, o que dá origem a uma narrativa fluente e cheia de interesse. 


Sinopse:
A odisseia de Homer Wells começa no meio dos pomares de macieiras do Maine rural. Sendo a mais velha das crianças do orfanato de St Cloud’s que não chegaram a ser adotadas, Homer estabelece uma amizade profunda e invulgar com Wilbur Larch, o fundador do orfanato - um homem de rara compaixão viciado em éter. O que Homer aprende com Wilbur leva-o desde a sua primeira aprendizagem de cirurgia no orfanato até uma vida adulta à frente de uma fábrica de sidra e a uma estranha relação com a mulher do seu melhor amigo.

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Lionel Asbo - Martin Amis


Comentário:
A leitura deste livro inicia-se de rompante, a uma velocidade narrativa avassaladora. É uma entrada de choque, cheia de humor e vertiginosa na forma como nos faz devorar páginas. 
Esta narrativa assume especial importância na forma como retrata a sociedade inglesa atual num subúrbio de Londres. Lionel é um pequeno delinquente que se orgulha de ter começado na senda do crime aos dois anos de idade. Ele tem um coração de pedra, é profundamente sádico e cultiva um gosto especial pela violência, muitas vezes gratuita; é totalmente imbecil no que toca às faculdades intelectuais, em contraste com o seu sobrinho Des, um negro que representa aqui o futuro que a Inglaterra ainda pode ter, em contraste com o desastre que Lionel representa.
A partir de certa altura, o enredo tem uma viragem radical: Lionel, o detestável arruaceiro ganha a lotaria e torna-se multimilionário. Agora, ele convive com a alta sociedade; mas aqui o autor surpreende-nos com a caracterização dessa elite que Lionel encontra no hotel onde se aloja; eles, os ricos cultivam e a ignorância e idolatram a violência da mesma forma que a ralé a que Lionel pertenciam entes; pobres ou ricos, os ingleses são ignorantes e brutos; parece ser esta a mensagem do autor. Sem dúvida uma crítica social mordaz e impiedosa.
A partir desta viragem no enredo, no entanto, o livro segue um rumo diferente, o ritmo narrativo abranda imenso e a prosa torna-se mais reflexiva e mais séria. A meu ver, isto faz com que a obra perca interesse e qualidade literária; perde-se a emoção e a vertigem narrativa da primeira parte; perde-se, em parte o humor satírico da primeira fase do livro, que se torna sério e às vezes mesmo maçador.
Fica, no entanto, a evidente qualidade da escrita do autor: clara, incisiva, rica em termos de vocabulário e, a sua principal qualidade, bem-humorada. A crítica é incisiva e mordaz; na narrativa “vemos” uma Inglaterra decadente e um povo inglês passivo perante os graves problemas sociais como a exclusão e a forte diferenciação social, a falta de cultura, o culto da violência e da pornografia – Martin Amis afirma que Lionel não consegue viver sem cadeia nem pornografia; a cadeia é vista como a sua segunda casa, de onde sai e volta a entrar com frequência; a pornografia é, para Lionel, a substituta das relações humanas, o que diz muito sobre a forma como Amis aborda este fenómeno social da autoexclusão e consequente refúgio em comportamentos marginais.
Em suma, um livro com muito interesse, bem escrito, que merece uma leitura atenta. E divertida.

Sinopse in wook.pt
Durante o expediente matinal na prisão, Lionel Asbo, um delinquente de médio porte de Diston - zona fictiva de Londres - recebe a notícia de que ganhou 139 milhões de libras na lotaria.
Último rebento de Grace, cuja prole aos 19 anos ascendia aos sete, Lionel partilha a casa com o sobrinho órfão adolescente, Desmond Pepperdine, e com dois pitt-bull, Joe e Jeff, que alimenta com uma dieta de tabasco e maus-tratos.
Uma vez posto em liberdade, a fabulosa riqueza catapulta-o naturalmente para uma vida de excessos e gastos estratosféricos que, em substância, não difere muito do quotidiano de sarilhos e arruaças da anterior e, por isso, para as primeiras páginas dos tabloides: «O Tio Li - ele desapareceu e foi para a primeira página!». Lionel continua a preferir a pornografia à companhia de uma mulher (a pornografia que, com a prisão, constitui um dos dois pilares fundamentais da vida); persiste na educação férrea dos cães (outrora uma importante ferramenta do negócio); e em não prestar qualquer tipo de auxílio financeiro a qualquer membro da família.
Enquanto Lionel desbarata a fortuna, a um débito alucinante, e espreme todos os proveitos que pensa poder retirar da fama - Des, o sobrinho, está nos nos antípodas: é um rapaz inteligente e sensato, que procura no estudo e no trabalho, e numa relação estável, um sentido para a vida.
Um romance cómico, visceral, hiperbólico - uma sátira da Inglaterra contemporânea e da obsessão contemporânea pelo dinheiro e pela celebridade.

quarta-feira, 13 de abril de 2016

Os Piores Contos dos Irmãos Grim - Luis Sepúlveda, Mario Delgado Aparaín

Comentário:
Raramente arrisco o meu tempo num livro desconhecido e sem referências. Normalmente, um critério que uso é o de optar por escritores reconhecidos pela sua qualidade. Pois desta vez enganei-me. Este livro é um fiasco. Quando vi o nome de Luís Sepúlveda não hesitei em comprar o livro, até porque estava em promoção e a contracapa prometia que a obra seria extremamente divertida. Por outro lado já li muitos livros de Sepúlveda e nunca me desiludiram. Este desiludiu mesmo.
A ideia original até é interessante: reinventar os irmãos Grimm, transportando-os para o início do século XX e colocando-os na pele de Caim e Abel Grim, payadores de profissão. Os “payadores” (pessoas que pagavam com cantigas a comida e o alojamento) são uma espécie de trovadores que se deslocam de região em região cantando e tocando numa atividade que se pode comparar aos nossos “cantares ao desafio”. Portanto, os verdadeiros irmãos Grimm (com duplo ‘m’) nada têm a ver com isto.
O livro está escrito em formato de cartas entre dois estudiosos que, no final do século XX vasculham a vida e aventuras dos irmãos Grim. Os estudiosos, a fazer lembrar quaisquer académicos em final de carreira e de juízo deformado dão pelos nomes de Orson C. Castellanos e Segismundo Ramiro von Klatsch, Professores.
A correspondência trocada versa sobre as descobertas que cada um vai fazendo sobre as aventuras dos desventurados irmãos Grim bem como de outros assuntos laterais. A brincadeira pretende fazer rir o leitor. Mais nada. E isso é naturalmente pouco para um bom livro; o humor é muitas vezes fácil e artificial, sem contexto, recorrendo muitas vezes ao palavrão ou então ao trocadilho fácil. O grande problema deste livro é não ter enredo; chegamos ao final do livro sabendo muito pouco dos trovadores, a não ser as suas desastradas atuações e a forma exagerada como eram maltratados pelos ouvintes. Pode haver até alguma qualidade na ironia com que se critica o regime de Bush, com alusões muito sérias aos problemas ambientais ou com “farpas” políticas bem dirigidas mas tudo isso se perde numa leitura monótona e maçadora.
Em suma, um ato falhado do grande Luís Sepúlveda que nem por isso deixa de ser grande. Um dos maiores. Mas o livro, esse, é de fugir.

Sinopse:
Um livro inclassificável, uma brincadeira delirante, um atentado à seriedade dos leitores. Trata-se de uma obra séria, tão séria que, assim esperam os seus autores, só pode levar o infeliz leitor a desfazer-se às gargalhadas.
Os Irmãos Grim - gémeos, na realidade - terão sido dois tipos que passaram pelo Chile e pelo Urugai sem que deles restasse mais do que retalhos aleatórios das suas vidas e obras, num todo confuso e até boateiro, que os reduziu aos seus piores contos. Por sorte, para os amantes das sagas "gauchescas" e da poesia a cavalo, Luis Sepúlveda e Mario Delgado Aparaín conseguiram- com a inestimável colaboração dos Professores Orson C. Castellanos , Segismundo Ramiro von Klatsch e José Sarajevo - assinar a tempo esta crónica temporal que retrata as misteriosas origens e a efémera passagem pelas terras do Sul do mundo dos gémeos Grim, trovadores crioulos, músicos iconoclastas, poetas autodidactas e cantores de uma realidade que, devido à escassa transcendência do seu legado, continua hoje a ser um mistério que subjuga os viajantes.
Trata-se, pois, de uma obra séria - tão séria que, assim esperam os seus autores, só pode levar o infeliz leitor a desfazer-se às gargalhadas.

domingo, 10 de abril de 2016

O Músico Cego - Vladimir Korolenko

Comentário:
Korolenko talvez seja, depois de Gogol, o nome maior da literatura ucraniana do século XIX, embora na época a sua nacionalidade fosse russa já que a Ucrânia pertencia ao Império Russo. Mas é na literatura russa que Korolenko vai buscar as suas influências. *a data da publicação de O Músico Cego (1886) já Dostoievski havia publicado todos os seus livros, pelo que é natural alguma influência por parte do grande mestre russo. Na verdade, este livro faz lembrar a escrita de Fiodor na profundidade da análise psicológica e mental dos personagens, principalmente de Piotr, o músico. Por outro lado é incrível como Korolenko revela uma sensibilidade profunda para compreender a mentalidade do cego. As suas sensações, a sua relação com a natureza, o uso delicado dos sentidos dão-nos conta da beleza com que o autor dá conta da forma como Piotr interage com o meio que o rodeia.
Ao nível do estilo, este Músico Cego oferece-nos uma deliciosa mistura entre o romantismo e o realismo; com descrições cuidadas e uma ênfase especial nos grupos sociais a que pertencem os diferentes personagens, ele é sem dúvida realista, mas nos seus devaneios bucólicos, na forma como a natureza quase faz espalhar o seu perfume pelas páginas do livro, ele é romântico. Seja como for, os grandes mestres não têm de se encaixar em estilo nenhum e Korolenko foi sempre um escritor autónomo, pouco dado a “carimbos” como o mostra a sua relação com o poder: de início simpatizante das ideias revolucionárias, não se deixou encaminhar por elas quando viu que a sua aplicação prática, na revolução de 1917, não teve o resultado que desejava.
Em suma, trata-se de um livro com um enredo muito cativante, em que a saga do jovem cego nos é contada com acentuada sensibilidade humana e escrito numa linguagem clara, realista, mas muitas vezes poética. Um livro belo e singelo, sem dúvida que se recomenda a quem se quer iniciar na grande literatura russa. Excelente tradução nesta edição  Estrofes & Versos.

Sinopse:
A parteira não ouvia no grito do bebé nada de especial e, vendo que a jovem mãe falava como que em sonho, pelos vistos a delirar, afastou-se dela e pôs-se a tratar da criança. A jovem mãe calou-se, e apenas de vez em quando um penoso sofrimento, incapaz de prorromper em forma de movimento ou palavra, espremia dos seus olhos as lágrimas em bágoas. Corriam silenciosamente através das espessas pestanas pelas faces brancas como mármore. Talvez o coração da mãe sentisse que, juntamente com o recém-nascido, viera ao mundo uma desgraça negra e desesperada que pendia por cima do berço para acompanhar a nova vida até ao túmulo. De resto, talvez fosse mesmo delírio. Fosse como fosse, a criança nasceu cega.