quinta-feira, 30 de junho de 2016

Em Busca do Tempo Perdido - vol 7 - O Tempo Redescoberto - Marcel Proust



Comentário:
Numa espécie de exame de consciência, o narrador reconhece que a sua relação com Albertina fracassou devido ao seu “génio indeciso e impertinente”. Depois de tantas reflexões, de tantos fracassos e desilusões, ele parece chegar ao âmago da questão – entre indecisões e reflexões excessivas, ele deixou que o tempo o ultrapassasse; é o tempo que governa a vida, e não o pensamento. Mas agora, só pelo pensamento, pela memória, ele pode regressar a esse tempo perdido. Inicia-se aqui a grande luta: entre o tempo perdido e o tempo recuperado, reencontrado nos confins do pensamento. A dicotomia passado/presente é então substituída por uma outra: a dicotomia mundo real versus pensamento, como se estivéssemos perante dois mundos paralelos: o real e o pensado
Mas agora é o mundo real que se impõe com toda a sua crueza; é a guerra; a Primeira Guerra Mundial. A Grande Guerra. Nesse contexto não há espaço para o pensamento. A guerra abafa a memória e destrói o tempo ao eternizar o horror. Mas nos salões da aristocracia parisiense, tudo contínua igual, porque “a morte de milhões de desconhecidos traz apenas um arrepio, talvez menos desagradável que o causado pelas correntes de ar” (pág. 73). É a vulgarização da morte. Nos salões e nas discussões políticas isso pouco parece interessar. A alta sociedade parisiense tenta viver acima da guerra, mantendo as suas aparências, vícios e virtudes… mais aqueles que estas, diga-se. O próprio Charlus, germanófilo, tradicionalista, confessa: "perdemo-nos no diletantismo”.
Da mesma forma que Proust retrata as virtudes de grandes aristocratas como a Sra. de Guermantes, também retrata, com a mesma objetividade e crueza, os vícios incríveis de alguns outros nobres, como o quase louco Sr. de Charlus.
Mas este volume distingue-se dos outros, a meu ver, por ser o mais revelador da alma do narrador e, por extensão, do escritor; Marcel viaja constantemente para dentro de si, como se cada experiência vivida necessitasse de uma dimensão paralela, que ocorre interiormente.
Neste reinado do interior cabe um papel especial à arte. A arte é o único meio que permite ao homem sair de si mesmo e comungar com os artistas a múltiplas visões do mundo.
Mas o tempo é inexorável e é basicamente disso que trata este livro. Marcel sente a velhice aproximar-se e encara essa aproximação como uma espécie de derrota pessoal face ao Tempo. Na parte final do livro, à medida que as personagens principais envelhecem, o tom cada vez mais melancólico da linguagem vai sendo acompanhado por uma espécie de decadentismo latente. Sente-se a decadência da aristocracia. Com a derrota dos impérios na Primeira Guerra Mundial o novo mundo, é, definitivamente, da burguesia.
Mas o grande confronto dá-se no interior do narrador. Passado e presente, real e pensado, são elementos em conflito. A síntese há de encontrá-la Marcel na escrita; ele vai, finalmente, escrever o seu livro e nele se fará a fusão do Tempo; aí sim, será o Tempo reencontrado.

sexta-feira, 24 de junho de 2016

Em Busca do Tempo Perdido - vol 6 - A Fugitiva - Marcel Proust



Albertina sai de casa do narrador. Este, que ainda há pouco desejava a separação, fica quase desesperado com a sua ausência e planeia fazê-la voltar a todo o custo. Mais uma vez fica patente a inconstância emocional do narrador
Não é a inteligência que comanda a vida, diz Proust; esta é uma das ideias fundamentais desta grande obra e deste genial escritor. Alimentado pelas ideias de Bergson (segundo os especialistas) Proust dá primazia ao ser pensante mas sem que esse pensamento determine, racionalmente, a vida. O destino acaba por ser determinado por decisões intuitivas mais do que racionais. No caso do narrador desta história, ele parece alimentar uma necessidade contínua de reviver todo o seu passado, como que criando um tempo novo, em que todos os passos são analisados pelo pensamento e assim revividos interiormente (dando aqui sentido ao título geral da obra).
Este primado do pensamento é, no entanto, acompanhado por uma espécie de primazia da vontade – uma vontade egoísta: ele entendia como natural a partida de Albertina mas apenas se e quando determinada por ele.
A natureza complexa e mesmo absurda da alma do narrador – e do ser humano – é bem expressa neste exemplo: ele, agora, quer que ela volte mas não quer, de maneira nenhuma, que ela saiba que ele quer! Ou seja, para ele, Albertina há de voltar sem que ele se humilhe ao ponto de lhe pedir o regresso ou sequer admitir que o deseja.
Subitamente, neste volume, a morte entra em cena e o narrador é apanhado no seu mais profundo egoísmo pensante. É quase inacreditável como, perante a morte dramática e violenta de Albertina, o narrador continue a alimentar a sua obsessão sobre as hipotéticas traições. Seguem-se numerosas páginas em que ele esmiúça o passado da sua amada, alimentando o seu sofrimento agora em duplicado: sofrendo com a sua ausência mas principalmente com a certeza cada vez maior das infidelidades de Albertina. As razões deste procedimento, no entanto, têm mais a ver com um certo masoquismo do que com qualquer maldade ou sadismo. Tudo parece vontade, ou necessidade, de sofrer para que o tempo cumpra o seu destino. No fundo ele apenas quer aplacar a dor do ciúme, mas é atingido pela dor dos factos que o esmagam.
Uma ideia fundamental neste livro – e em toda a obra – é o peso do passado sobre o pensamento e, em consequência, sobre a vida. Prova disso é a sensação que o narrador tem da presença de Albertina após a sua morte. Por outro lado, a presença dela nas páginas do livro e, consequentemente, no espírito do narrador, vai muito para além da sua morte.
Nos capítulos finais, ele vai, finalmente, libertando o seu espírito do drama e regressam os salões da grande aristocracia, onde novas aventuras o esperam…
Uma nota final para afirmar que o título original deste volume - Albertine disparue - é bem mais adequado do que o título português. Às vezes pergunto-me porque é que as editoras têm de assassinar títulos originais...

segunda-feira, 13 de junho de 2016

Em Busca do Tempo Perdido - vol. 5 - A Prisioneira - Marcel Proust


Comentário:
Neste quinto volume, talvez mais do que em qualquer outro, é notável a linguagem poética do autor e o caráter reflexivo da narrativa. Por isso, a obra exige uma leitura pausada, refletida, vagarosa, como se o mais importante fosse saborear a escrita.
Para Proust parece claro que o homem é aquilo que pensa. São os seus pensamentos que dão vida ao narrador e são eles que, em muitas fases, constituem a própria vida. Este primado do pensamento leva, muitas vezes, à inação, à derrota antecipada do ser e do agir, perante o mundo concreto. Outras vezes, este reinado do pensamento conduz a conflitos interiores profundos e graves: quando ele está com Albertina, quando a sua relação se concretiza no contacto físico, o narrador sente-se feliz e realizado (várias vezes compara os beijos de Albertina aos beijos de sua mãe, na infância) mas logo que fica entregue aos seus pensamentos, ele deixa-se conduzir pela tirania impiedosa do ciúme. Aí ele revive momentos dolorosos do passado, como quando soube do relacionamento homossexual de Albertina e logo inventa traições. Escreve Proust: “O ciúme nada mais é muitas vezes que uma inquieta necessidade de tirania”. Se é verdade que Proust considera Albertina prisioneira do narrador por via do seu ciúme, não é menos verdade que o próprio narrador é prisioneiro dos seus pensamentos.
O primado do pensamento conduz à inação. E isto nota-se na vida do narrador, também em termos profissionais. Embora inquieto e mesmo infeliz na maior parte das situações, o narrador tem uma profissão: ele considera-se escritor. No entanto, nem uma página ele escreve! Ao longo destes cinco volumes que já li não há referencia a nenhuma página escrita, apenas aos lamentos pela constante procrastinação.
Um dos muitos motivos de reflexão que este livro nos deixa, e que aponto aqui apenas a título de exemplo, é o tema da mentira nas relações amorosas. Albertina, Charlus, Morel, todos mentem. E a mentira alimenta o ciúme. E assim as relações amorosas se transformam em campos de batalha. O narrador (que neste volume aparece por duas vezes nomeado como Marcel) conduz essa guerra para o interior de si mesmo e com ela se martiriza – ele tanto diviniza a sua amada como a odeia pelo simples facto de ter contactos com as amigas.
Entretanto continuam as aventuras amorosas do senhor de Charlus. Agora é Morel, o jovem músico, o alvo da sua paixão. Significativo é o facto de o autor já falar do amor de Charlus com toda a naturalidade, embora noutras passagens o denomine de vício. No entanto, a paixão de Charlus e Morel desembocará numa curiosa tempestade, desencadeada pelas intrigas palacianas desta aristocracia que Proust mostra admirar mas que não deixa de viver mergulhada na maledicência, nas aparências, na frivolidade…
No entanto, na voz das personagens, a posição face à homossexualidade continua a ser muito negativa, o que parece contradizer a condição homossexual de Proust. Não sei qual a posição dos especialistas mas talvez Proust apenas tenha pretendido exprimir a voz da opinião pública da época que considerava a homossexualidade como uma doença ou um vício.
Como sempre, a arte está por todo o lado neste livro. Para Proust, a arte é um prolongamento da vida. É por isso que a literatura, a música e a pintura estão sempre presentes na vida do narrador. A pintura de Elstir e a música de Vinteuil dão-lhe a paz que o amor nem sempre proporciona.
Finalmente, uma referência ao último capítulo que é um texto magnífico sobre o ciúme e sobre a forma como este pode mortificar quem o sente e quem dele é vítima.

segunda-feira, 6 de junho de 2016

Em Busca do Tempo Perdido - vol. 4 - Sodoma e Gomorra - Marcel Proust



O título deste quarto volume – Sodoma e Gomorra – exprime com violência o assunto que atormenta o autor/narrador: no papel de narrador e personagem principal, vemos um Proust que sofre o estigma da homossexualidade, não só pela pressão da sociedade como pela própria consciência, de onde provém o maior dos castigos. Este título remete não só para o pecado como também para o castigo; não o castigo legal mas o da consciência; não é por acaso que o narrador se refere à homossexualidade como “o vício” e aos homossexuais como “os invertidos”. Obviamente, isto não exprime a opinião de Proust sobre o assunto mas sim a opinião generalizada na sociedade em que está inserido. Aliás, uma das caraterísticas desta narrativa é que o narrador nunca emite juízos de valor. Mas os personagens homossexuais, como o barão de Charlus, martirizam-se pela sua condição de “homem-mulher”. No entanto, eles são muitos e por vezes escondem-se no meio da sociedade. Esta é uma das mensagens que Proust quer transmitir: os homossexuais não são casos isolados e excecionais.
O Sr. de Charlus é o principal personagem homossexual e é notável a forma como Proust constrói e carateriza este fortíssimo personagem; ele revela uma dupla personalidade que se justifica pela sua dupla condição: o homem social mulherengo, socialmente bom sucedido como bon-vivant e por outro lado o “homem mulher” escondido, que só se revela aos seus pares. Esta dualidade justifica também o seu caráter dúplice: simpático e altruísta mas por vezes terrivelmente irascível e profundamente preconceituoso, por exemplo em relação aos judeus.
A ascendência judaica de Proust explica, talvez, a forte presença do tema nestes romances; o caso Dreyfus, em voga na época, bem como o consequente antissemitismo continuam na ordem do dia neste volume. A opinião sobre o assunto na alta aristocracia depende menos da eventual culpabilidade de Dreyfus do que do preconceito – ser a favor de Dreyfus é imoral; é uma tomada de posição contra a sociedade. Aqui, tal como na questão dos homossexuais, em vez de emitir uma opinião, o autor dá voz aos que dele discordam (anti homossexuais e antissemitas) deixando que eles próprios revelem a falibilidade dos seus argumentos.
No seu papel de heterossexual o narrador faz renascer o seu fascínio por Albertina. Os seus delírios, os seus dilemas interiores, as suas hesitações, a sua insegurança quase crónica, são elementos que fornecem à prosa de Proust momentos sublimes, principalmente nos últimos capítulos do livro; é genial, notável, brilhante, a forma como Proust nos descreve a mente e os sentimentos inseguros do narrador, de tal forma que para o leitor se torna quase natural que o narrador diga que é imprescindível cortar relações com Albertina para meia dúzia de páginas depois, no final do romance, concluir que é imprescindível casar-se com ela.
Nos momentos que passa sozinho, as longas reflexões do narrador debruçam-se muitas vezes sobre o tema do devir e do passado, como que justificando o título da obra; de como o tempo condiciona a vida; de como nos deixamos encaminhar por situações que relativizam o tempo – porque o “aceleram” quando o prazer impera e porque o “atrasam” quando a sorte não sorri ao nosso destino. Um outro aspeto curioso neste quarto volume é a introdução na narrativa de um certo sentido de humor, principalmente nas descrições da vida social dos salões, onde as famílias rivalizam entre si, criando situações e diálogos bastante caricatos.
Enfim, este quarto volume é até agora aquele que mais me deleitou pela objetividade da escrita acompanhada por uma notável profundidade dos assuntos tratados, convidando sempre à reflexão.

quarta-feira, 1 de junho de 2016

Em Busca do Tempo Perdido - vol. 3 - O caminho de Guermantes - Marcel Proust


Comentário:
Este volume apresenta-nos já um narrador totalmente adulto; as paixões juvenis, por Gilberta e por Albertina parece terem ficado para trás. Há neste livro uma visita de Albertina que nos revela um amor sem compromisso mas também sem laços fortes – o encontro limita-se a beijos na face. 
A amizade por Saint-Loup, por seu lado, fortalece-se, mas o narrador não esconde o interesse que ela envolve; na verdade, ele utiliza essa amizade para chegar perto da senhora de Guermantes, que é uma espécie de ídolo. A partir daí, quase todo o volume é dedicado à descrição da vida social na alta aristocracia. Se nos volumes anteriores ainda era visível alguma crítica social, aqui fica bem clara a admiração entusiasmada do narrador por essa alta sociedade, essencialmente nas pessoas da Sra. De Guermantes e na marquesa de Villeparisis. 
Antes de “mergulhar” nesta alta sociedade, Proust descreve-nos a relação de Saint-Loup com a sua apaixonada, Zezette. Esta, tal como Odette no primeiro volume, é apresentada como a mulher pérfida, malévola, capaz de torturar psicologicamente o apaixonado e de aproveitar as suas fraquezas em proveito próprio.
Depois o autor presenteia-nos com centenas de páginas dedicadas à alta aristocracia, com um enfoque muito acentuado no salão da Sra. de Guermantes. Se, por um lado, podemos queixar-nos de uma prosa demasiado enfática que se torna mesmo fastidiosa nessas descrições, por outro lado, ficamos necessariamente deleitados com a imensa capacidade descritiva do autor que não precisa de um enredo muito emocionante para manter a atenção do leitor.
A expressão que ainda hoje se usa “conversa de salão” para designar um diálogo sem grande conteúdo tem provavelmente origem nestes salões da velha nobreza onde, na ausência de meios de comunicação social, se conversava ao serão. O salão da Sra. de Guermantes é-nos apresentado como um local onde reina a inteligência, ao contrário de outros salões onde a maledicência tinha lugar de destaque. A duquesa era uma mulher inteligente e culta; possuía até uma espécie de inteligência superior a que chamavam “espírito”. A própria personagem principal, que é também o narrador, como que se ofusca perante a preponderância da duquesa na narrativa.
Ao longo de todo o livro o caso Dreyfus toma um lugar importante; trata-se de um processo judicial onde um judeu era acusado de traição à pátria e que se revelou mais tarde uma fraude, uma vez que a acusação se baseou em documentos falsos. Mas o caso despertou uma onda de xenofobia que dividiu a França e é nítida neste livro a tomada de partido da aristocracia contra Dreyfus, numa clara manifestação de anti-semitismo; mesmo pessoas inteligentes como a duquesa de Guermantes aceitavam a inocência de Dreyfus mas não deixavam de, socialmente, manifestar o seu anti-semitismo.