domingo, 7 de setembro de 2008

Diário do Farol - João Ubaldo Ribeiro

João Ubaldo Ribeiro, um dos mais importantes escritores brasileiros da actualidade foi agraciado com o Prémio Camões 2008.
Trata-se da autobiografia de um padre cuja vida foi orientada para dois objectivos (mesmo o segundo tendo surgido de forma acidental no decorrer da narrativa): matar seu pai e a mulher que o desprezou. O autor do diário, refugiado numa ilha deserta algures ao largo da costa brasileira, é a encarnação do mal. Ele reúne tudo o que pode ser considerado “o mal”. Uma infância difícil, cheia de violência e desamor justifica uma vida voltada para a vingança e a violência. Para o autor, ele encarna, no entanto, tudo o que um ser humano é capaz de fazer, no domínio do mal. Todos nós somos assassinos em potência. Nas condições em que se encontra o Brasil no tempo em que se desenrola a acção, esse “mal” pode vir ao de cima em qualquer altura. Trata-se assim de uma abordagem algo catastrofista da violência que reinava e reina naquele país.
Assim , o Diário do Farol, é um livro sobre a realidade. Porque a realidade, no dizer de Ubaldo Ribeiro, é mais irracional que a ficção porque esta procura a lógica e a credibilidade. Todo o homem encerra em si o bem e o mal. Nesse sentido, Mal e Bem misturam-se; não podem separar-se. O caminho que cada um segue é fruto das circunstâncias e, portanto, do acaso. No entanto, o Mal tem explicação; ele provém da rejeição, da falta de solidariedade e de amor. De facto, o ser humano precisa, acima de tudo, de compreensão e afecto. Foi a falta desses sentimentos que fez do protagonista um verdadeiro demónio.
Para comprovar a interacção permanente entre o Bem e o Mal, na mesma pessoa, a técnica literária do autor faz com que o leitor se sinta, ele próprio odiado pelo narrador, ao mesmo tempo que, em determinados momentos, o leitor dá consigo a simpatizar com o protagonista, o assassino em série. O anticlericalismo e a crítica política, bem como o manifesto contra a desigualdade social são os testemunhos vivos de como a sociedade “provoca” o mal. A injustiça faz despoletar a violência.
O valor mais alto desta obra: o leitor é levado a ver a semelhança entre a sua própria pessoa e o assassino, quase se identificando com ele. O leitor, embora insultado pelo narrador/protagonista/assassino, envolve-se com o Mal, compreende-o e é tentado a aceitá-lo com naturalidade. Ao mesmo tempo desmistifica-se a ideia de que um assassino em série não tem amor-próprio. Acontece precisamente o contrário.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

O Último Catão - Matilde Asensi

Mais um sucedâneo do Código da Vinci? Garantidamente, não! “O último Catão” prima pela originalidade, rigor, criatividade e aquela “leveza” cativante que se sorve do género policial, associada ao encanto do romance histórico. Matilde Asenci é nada menos que a escritora espanhola mais lida na actualidade. Este livro vendeu mais de um milhão de exemplares em Espanha. Estes dois factos são suficientes para tornar incompreensível o ter passado quase desapercebido nas nossas montras.
Trata-se de uma obra de romance histórico puro, com um enredo simplesmente entusiasmante e, na linha do melhor policial, com um final absolutamente inesperado. Um dos melhores desfechos que li nos últimos anos.
Tudo se inicia com o assassinato de um etíope que exibe estranhas tatuagens no corpo: sete letras gregas e sete cruzes. Junto ao corpo foram encontrados três pedaços que tudo indica pertencerem à Vera Cruz, a verdadeira cruz de Cristo. A irmã Ottavia Salina, dedicada profissional do arquivo secreto do Vaticano, acompanhada por um arqueólogo de Alexandria, e pelo capitão da Guarda Suíça do Vaticano, recebe o encargo de decifrar as estranhas tatuagens aparecidas no cadáver. Ao mesmo tempo, iam desaparecendo das mais diversas igrejas, um pouco por todo o mundo, as relíquias da cruz de Cristo. Cabe aos nossos três heróis, guiados pela “Divina Comédia” de Dante, descobrir o paradeiro das relíquias e identificar a seita “criminosa”. Numa tentativa de chegarem até aos culpados, o grupo terá de superar sete desafios, associados aos sete pecados mortais, em sete cidades diferentes: Roma pela soberba, Ravena pela inveja, Jerusalém pela ira, Atenas pela preguiça, Constantinopla pela avareza, Alexandria pela gula e Antioch pela luxúria. A viagem por estas cidades é deveras fascinante.
A imaginação de Asensi é assombrosa: o livro está cheio de peripécias que prendem o leitor de forma avassaladora, de tal maneira que as mais de seiscentas páginas desta edição são devoradas a um ritmo alucinante. Por outro lado, este riquíssimo enredo envolve o melhor de um romance histórico: a fidelidade à verdade histórica; aquilo que não é imaginação, é perfeitamente fiel e autêntico. Ao contrário do que acontece noutras obras do género, é fácil ao leitor distinguir a fantasia do fundo histórico. Sendo uma obra de ficção, este livro permite ao leitor enriquecer o seu conhecimento sobre a história da igreja católica e dos vários conflitos com outras religiões ou seitas divergentes.
Por fim, o aspecto mais polémico da obra: a impiedosa crítica da autora à Igreja Católica, ao seu conservadorismo e aos desvios relativamente à doutrina pura do Cristianismo. O enredo situa-se nos últimos tempos do Pontificado de João Paulo II, época conturbada e especialmente propícia aos jogos de interesses e poder que se desenrolam no Vaticano e que Asenci aborda com coragem e desassombro. Por outro lado, os conflitos pessoais dos personagens vão pondo em questão alguns dos dogmas mais teimosamente defendidos pela Igreja, como o celibato e a castidade.
Em suma, um livro sem grandes ambições estilísticas ou de inovação literária mas que funciona como um maravilhoso exercício para usufruir do prazer de ler: leve, corajoso, divertido, interventivo, crítico e, acima de tudo, apaixonante.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

O Mestre de Esgrima - Arturo Pérez-Reverte

O Mestre de Esgrima é um dos primeiros romances de Perez-Reverte e aquele que mais contribuiu para transformar este escritor espanhol num dos maiores nomes da literatura contemporânea do país vizinho.
Relata-se a história de D. Jaime de Astarloa, o mestre de esgrima que luta contra a novidade das armas de fogo e, principalmente, contra o desinteresse dos seus concidadadãos pelos valores tradicionais.
O romance decorre no contexto no final do século XIX espanhol. Vive-se um clima de crise política, marcado, não só pelas dúvidas na sucessão do trono mas principalmente pela corrupção e conluios. Ao mesmo tempo, de França, surgem ventos de mudança que fazem despertar o sonho da república. A guerra civil paira sobre Madrid.
Mas aquilo que mais parece deter a atenção de Reverte é a derrocada dos valores morais e éticos de toda a sociedade. Por todo o lado, reina a hipocrisia, a violência e os conluios.
Sempre crítico perante a evolução histórica do seu país, Reverte não deixa nunca de povoar o enredo com marcas de lamento pela crise dos valores da honra que o levam a dar um tom marcadamente quixotesco ao romance. De facto, Miguel de Cervantes parece espreitar por detrás de todos os cenários descritos neste livro. O próprio D. Jaime parece uma reencarnação sofisticada de D. Quixote, lutando contra o futuro, do mesmo modo que aquele lutava contra os moinhos de vento.
Tentando isolar-se deste contexto adverso, D. Jaime procura a todo o custo manter a arte da esgrima, ensinando os seus cada vez mais raros alunos nas artes do florete e da espada. De entre os seus alunos, surge a bela Adela que despertará as suas paixões e revolucionará a sua vida, envolvendo-o num enredo alucinante, de cariz policial. Adela, qual Dulcineia, é misteriosa e encantadora. É esse mistério e esse encanto que levarão D. Jaime às mais inimagináveis aventuras.
Enfim, um livro que vale pelo característico suspense das obras de Reverte, embora ainda sem o fôlego de “Clube Dumas” ou a descontracção das “Aventuras do Capitão Alatriste”. Não se encontra neste livro grande profundidade literária nem ideias inovadoras. Trata-se acima de tudo de um livro divertido, que se deixa ler com facilidade. Nada mais que isso.