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segunda-feira, 30 de março de 2015

Mia Couto, voz da Terra


Mia Couto é poesia sem rima, é voz da Terra, sabor do Mar, alma de um povo inteiro.
Mia Couto é a força de uma Terra onde o sentimento resvala nas armas mas sobrevive e se fortalece na dor. É o mensageiro de uma Terra pintada de sangue mas perfumada pelo canto cristalino das sereias no Oceano Índico.
Mas Mia Couto é também o porta-voz da Alma, o cantor do gemido dolorido mas quase musical que emana do peito das gentes; a sua escrita é melodiosa, triste umas vezes, outras cheia daquele humor ingénuo das gentes de África.
E, acima de tudo, a voz de Mia é a voz do génio. Ele é, na minha opinião, o melhor escritor vivo de ficção de língua portuguesa. Ele é a prova viva de que os poetas têm razão: a nossa Pátria é a Língua portuguesa e muito mais é o que nos une do que aquilo que nos separa. Moçambique é da nossa Alma; muito sangue e muitas lágrimas nos uniram no passado e foi em português que sempre choramos as mesmas desgraças. Um fado que nenhuma união europeia ou aliança americana poderão contrariar.
Mia Couto pode não ganhar o Man Booker Prize. Mas para nós já ganhou.
Já ganhaste, irmão!

sexta-feira, 11 de abril de 2014

Estórias Abensonhadas - Mia Couto



Sinopse:
Depois de Terra Sonâmbula estas estórias fazem regressar o imaginário moçambicano pela mão de Mia Couto. Se o romance deste autor moçambicano nos transportou para o universo trágico da guerra, estas breves histórias são flagrantes do renascer do país, depois da assinatura do Acordo de Paz. Reúnem-se aqui contos, alguns já publicados em jornal, em que se inscreve o mesmo estilo e a mesma capacidade de sonhar já consagrados em anteriores obras (Vozes Anoitecidas, Cronicando, Cada Homem é uma Raça, Terra Sonâmbula). Os contos já publicados foram, no entanto, revistos e alterados para publicação em livro. Em todas as estórias se reconhece o trabalho profundamente pessoal de recriação da linguagem, o aproveitamento literário da fala popular moçambicana e o pleno exercício da poesia.
In wook.pt

Comentário:
Antes de mais nada, o título: duas palavras magníficas. O termo “estórias” é uma palavra que gostava de ver mais usada quando nos referimos a literatura de ficção. “Abensonhadas” é uma palavra que exemplifica bem a poesia e a criatividade da escrita de Mia Couto.
Já poucos adjetivos me sobram para comentar uma obra deste grande escritor moçambicano. Resta-me talvez dizer que, na minha opinião, é o melhor escritor vivo da língua portuguesa.
Tal como acontece em todas as suas obras, também em Estorias Abensonhadas, Mia Couto brinca com a Língua Portuguesa de forma hábil e divertida; e nesses trocadilhos há uma poesia por vezes genial, como quando do sorriso de uma mulher se diz que “nem água fosse mais cristalinda”. É raro encontrarmos uma beleza como esta na língua portuguesa.
E depois há aquele toque de maravilhoso, de mágico, como no conto “O Cego Estrelinho”, em que o guia do cego, o miúdo Gigito, lhe inventa um mundo maravilhoso, se bem que todo ele inventado. No entanto, para que serve a realidade se podemos inventar mundos muito mais belos?
De notar que estas estórias foram escritas no final da guerra civil que assolou Moçambique. Mas é para lá da guerra que Mia Couto escreve; e para lá da guerra há a terra. A terra maravilhosa, imortal, a terra “perfumegante que semelha a mulher”; a terra sobre a qual cai a chuva que lava o sangue; a terra que é a “mãe das mães”. E o apelo da terra é tão forte que o velho Felizbento, que tem de ser deslocado por causa da guerra, não sai sem levar consigo a árvore da sua terra.
Uma referência para o conto “A Guerra dos Palhaços”. Trata-se de uma bela alegoria da guerra: dois palhaços simulam uma briga e a partir daí provocam uma verdadeira guerra na cidade; e depois de recolherem os seus lucros, vão provocar a mesma guerra noutra cidade…
Finalmente, um destaque muito especial para o último conto: cheio de uma inexcedível e singela beleza…

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Mar Me Quer - Mia Couto



EXCERTO:
Um dia o padre Nunes me falou de Luarmina, seus brumosos passados. O pai era um grego, um desses pescadores que arrumou rede em costas de Moçambique, do lado de lá da baía de S. Vicente. Já se antigamentara há muito. A mãe morreu pouco tempo depois. Dizem que de desgosto. Não devido da viuvez, mas por causa da beleza da filha. Ao que parece, Luarmina endoidava os homens graúdos que abutreavam em redor da casa. A senhora maldizia a perfeição de sua filha. Diz-se que, enlouquecida, certa noite intentou de golpear o rosto de Luarmina. Só para a esfeiar e, assim, afastar os candidatos.
Depois da morte da mãe, enviaram Luarmina para o lado de cá, para ela se amoldar na Missão, entregue a reza e crucifixo. Havia que arrumar a moça por fora, engomála por dentro. E foi assim que ela se dedicou a linhas, agulhas e dedais. Até se transferir para sua atual moradia, nos arredores de minha existência.

Comentário:
Antes de mais, como sempre, a magia da mistura do português com o falar de Moçambique; como se vê no excerto acima, esta escrita tem um impressionante componente musical. O leitor é desde logo embalado por este falar.
Neste pequeno livro (em boa hora incluído no Plano Nacional de Leitura) está bem patente toda a qualidade literária deste grande escritor, bem como toda a dimensão simbólica que a sua escrita encerra. Mar Me Quer, título sugestivo é muito mais do que um trocadilho bem-sucedido; é a expressão de uma analogia que Mia Couto desenvolve noutras obras entre o Mar e o devir, a expressão do tempo, por oposição à terra, onde radicam as raízes daquilo que é o verdadeiro tema de fundo de todas as suas obras: o povo moçambicano.
Agualberto Salvo-Erro, o pai do protagonista personifica essa ligação da água a tudo o que é externo; Agualberto viveu e morreu em desgraça porque pactuou com os estrangeiros, por oposição ao avô Celestino, o homem com o coração da terra.
Zeca, o protagonista, herdou os dois lados; ele prefere apenas viver, ao sabor do tempo, ou seja, fazer o que resta ao povo moçambicano: sobreviver. Ao mesmo tempo, revela-se a face mais visível do imenso iceberg que é a escrita simbólica de Mia Couto: esse lado emerso do livro é a história de amor de Zeca Perpétuo pela sua gorda vizinha, a enigmática Luarmina.
Luarmina é mulata; é a síntese das culturas em conflito histórico; ela é também a explicação final do destino do pai de Zeca, num final apoteótico e surpreendente.

Trata-se de uma bela estória, mais uma das muitas que Mia Couto tem escrito. O poeta Miguel Almeida disse algures que ler Mia Couto lhe dá uma vontade enorme de escrever poesia; acho que isso testemunha bem a beleza quase mágica das palavras de Mia Couto, um escritor que tem levado bem longe a língua portuguesa.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Terra Sonâmbula - Mia Couto

Sinopse:
Moçambique, década de 1990. Numa terra devastada pela guerra, um menino sem memória é encontrado por um velho errante. Muidinga e Tuahir, ambos marcados por conflitos que não entendem, desprovidos de passado e de esperança. Unidos, fazem de um machimbombo incendiado a sua casa, e de um diário, encontrado junto de um cadáver, a sua demanda. Nas linhas do caderno, Muidinga acredita ter um mapa que o levará de volta à sua mãe. Nessa busca, o insólito par descobre-se, reinventa-se, enfrenta a insanidade e a miséria que grassam em seu redor, e recusa deixar morrer o alento. Tal como a terra que percorrem sem destino, uma terra que nunca dorme, nunca descansa, uma terra sonâmbula.
Já adaptado ao cinema, Terra Sonâmbula foi considerado um dos doze melhores romances do século XX em África. Cruza elementos da cultura tradicional moçambicana com a própria história do país, realismo e magia, factos e símbolos, Terra Sonâmbulaé, acima de tudo, um hino ao poder dos sonhos e da vida.

Comentário:
Este talvez seja o melhor livro de Mia Couto.
Pelo menos, é o mais simbólico. Tudo neste livro é pensado, calculado, como se tudo o que Mia escreve tivesse por trás um segundo significado.
Mas é também o livro de Mia Couto que mais me agradou em termos de linguagem:

 O que faz andar a estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes do futuro.
A paisagem se mestiçara de tristezas nunca vistas, em cores que se pegavam à boca.

Isto é Poesia saída da terra. Os livros de Mia Couto têm este condão de nos embalar numa beleza impar das palavras. A sua escrita sintética, depurada, tem a mesma beleza que as paisagens de Moçambique.

Aqui, o céu se tornara impossível. E os viventes se acostumaram ao chão, em resignada aprendizagem da morte.
O chão, a vida e a morte; o céu enquanto sonho.

… a guerra que contaminara toda a sua terra
A guerra contaminara a terra com a morte.

Seu conceito era que a morte nos apanha deitados sobre a moleza de uma esteira. Leito dele era o puro chão, lugar onde a chuva também gosta de deitar:

Um conceito puro da terra: o pai de Kindzu encarava a terra como algo de puro e benéfico; ainda não estava conspurcada e amaldiçoada pela guerra.

Taímo recebia notícia do futuro por via dos antepassados. Dizia tantas previsões que nem havia tempo de provar nenhuma. Eu me perguntava sobre a verdade daquelas visões do velho, estorinhador como ele era.
O pai de Kindzu alinhava o tempo numa única realidade, sintetizando passado, presente e futuro através do sonho.

O comerciante indiano, Surendra, vítima de racismo, por ser ”monhé”: Eu gosto de homens que não tem raça. É por isso que eu gosto de si, Kindzu.

Depois há aqueles palavras em que Mia Couto transforma adjetivos em verbos; fico sem saber se será recurso literário de Mia Couto ou parte integrante do falar moçambicano?
As palavras originárias do falar moçambicano soam a poesia: “pensageiro” J o povo fala poesia…
E depois há o autor, na sua forma peculiar de brincar com a língua portuguesa, criando palavras como “administraidor”.

- Fica saber: o chão deste mundo é o tecto de um mundo mais por baixo. E sucessivamente, até ao centro, onde mora o primeiro dos mortos.

A terra está sempre presente. Numa visão ecológica, ela é o mundo natural que se mistura com a vida humana. Mas numa visão mais transcendente, ela é a pátria dos mortos que, no entanto, fazem parte do mundo dos vivos.

A guerra é uma desgraça que nunca vem só. Além de trazer a fome, trouxe a corrupção, que é a forma de os ricos se fazerem donos daquilo que seria dos pobres.

O tchóti, o anão caído dos céus, é o elemento fantástico que representa a intervenção do além na vida dos homens; ele não é da terra, assim como a bela mulher, a aparição que surge ao rapaz, no barco. Farida era filhado Céu. Pelo contrário, o velho Siqueleto é emanação da terra, mas uma terra violenta porque violentada, cruel porque vítima de crueldade.

Os personagens do livro são, todos eles, nómadas; desenraizados; como se a terra, sonâmbula, lhes fugisse.

Nhamataca, amigo de Tuhair, é o fazedor de rios: a água purifica a terra, é o elemento positivo. Veja-se a diferença entre o autocarro e o barco; aquele encerra a morte, enquanto o barco abriga o amor.
Na parte final o mar surge como elemento redentor e nascente de esperança, por oposição a uma terra sonâmbula, na antecâmara da morte e de um autocarro queimado, onde a esperança da partida para outras paragens há muito morrera.


Esta guerra não foi feita para vos tirar do país mas para tirar o país de dentro de vós – diz o feiticeiro; é com esta angústia de uma terra vencida pela guerra e de um povo massacrado que termina o livro.

sábado, 21 de julho de 2012

A Confissão da Leoa - Mia Couto


Sinopse:
O enredo desenvolve-se numa aldeia do norte do Moçambique, onde se vive uma pobreza absoluta. Trata-se de uma das regiões mais pobres de África. Aí vive uma comunidade atacada pelos Leões. A jovem Mariamar e o caçador Arcanjo Baleiro são os personagens principais.
Um acontecimento real – as sucessivas mortes de pessoas provocadas por ataques de leões numa remota região do norte de Moçambique – é pretexto para Mia Couto escrever um surpreendente romance. Não tanto sobre leões e caçadas, mas sobre homens e mulheres vivendo em condições extremas.
A Confissão da Leoa é bem um romance à altura de Terra Sonâmbula e Jesusalém, já conhecidos do leitor português.


Comentário:
A relação entre o homem e o mundo natural, as tradições nativas bem como o papel da mulher na comunidade africana são os temas que Mia Couto transporta para esta bela estória de ficção, onde se fala de uma mulher que é um monumento à alma africana: Mariamar.
Logo a primeira página deixa-nos extasiado com a poesia a que este autor já nos habituou: “Deus já foi mulher” é a frase de abertura do livro. Depois: “Nesse outro tempo, falávamos a mesma língua dos mares, da terra e dos céus. (…) Todos sabemos, por exemplo, que o Céu ainda não está acabado. São as mulheres que, desde há milénios, vão tecendo esse infinito véu. Quando os seus ventres se arredondam, uma porção de céu fica acrescentada.”
A linguagem poética de Mia Couto é, de facto, avassaladora e até os nomes dos personagens são reveladores: Arcanjo, por exemplo, é o nome do matador. Ou melhor, do caçador, porque caçar não é matar; é participar da natureza.
A mão de Mariamar (Anifa Assula) diz que a aldeia é um cemitério vivo para as mulheres. Por isso prefere fazer amor sozinha; é a única forma de vencer os homens. Este é o ponto de partida para uma crítica acérrima à relação entre e mulheres de que falarei adiante.
Quando Mariamar se encontra de frente com a feroz leoa que ataca a aldeia, diz a narradora (Mariamar): “a leoa saúda-me, com respeito de irmã”. É a identificação total, o cruzamento de destinos entre leoa e mulher. Aquela é a leoa assassina, perante a qual os homens, mesmo caçadores e guerreiros “todos se prostraram, escravos do medo, vencidos pela sua própria impotência.
Um aspeto interessante desta magnífica personagem, é que Mariamar sabe escrever, ao contrário de muitos dos outros habitantes da aldeia. Ela não aprendeu com os missionários mas sim com os bichos selvagens. Eles ensinaram com fábulas porque só eles sabem distinguir o bem e o mal. “foram os animais que começaram a fazer-me humana, afirma Mariamar.
A natureza do poder político perante a pobreza em África é outro tópico desenvolvido pelo autor. Quando o administrador chega à aldeia com o caçador de leões, um camponês questiona porque é que eles querem saber como morremos, se nunca quiseram saber como vivemos? Perante a fome e a miséria, pouco interessa à autoridade a vida deste povo…
O povo acredita que foi a guerra que chamou os leões. A guerra (ou a colonização) alterou o equilíbrio que havia entre homens e bichos. O pior é que terminada a guerra, a situação ainda piorou. Lamenta-se Genito: Aqui não há polícias, não há governo. E mesmo Deus só às vezes.
Algumas tradições locais são vistas por Mia Couto como sementes de violência – as mulheres exploradas, as crenças que resultam em autênticos crimes, um machismo aterrador que justifica até o incesto, etc. Tudo isto o homem branco não soube resolver, mas o homem negro também não.
E paulatinamente, o livro vai-se transformando numa crítica brutal aos costumes ancestrais do povo africano. Sem qualquer indício de racismo, note-se. Pelo contrário: com um imenso respeito pela cultura africana naquilo que ela representa de harmonia entre o homem e a natureza, sempre que a estupidez humana não a impede.
Mariamar, neste mundo miserável, injusto e violento é a vítima sacrificial e a heroína nesta luta terrível, não contra as feras da selva mas contra a estupidez, a ignorância, o preconceito.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

O Último Voo do Flamingo - Mia Couto

Publicado em 2000, este é um dos primeiros grandes êxitos de Mia Couto, que iniciara a sua carreira literária com Terra Sonâmbula (1992).
Na minha opinião este livro ainda não exprime todo o génio que Mia Couto revelou naquela que eu considero uma verdadeira obra de génio: Jesusalém.
Mesmo assim, estão aqui todos os ingredientes deste que é, a meu ver, um dos mais brilhantes escritores contemporâneos de língua portuguesa: uma finíssima ironia, uma escrita que faz sorrir e sonhar e uma forma originalíssima de brincar com a língua portuguesa criando pérolas como esta: perante o aparecimento misterioso de um pénis nos ramos de uma árvore, resultado da misteriosa explosão de um soldado dos capacetes azuis da ONU, mandaram chamar Ana, a prostituta mais famosa da terra, para que ela tentasse reconhecer o órgão: “essa Ana era uma mulher às mil imperfeições, artista de invariedades, mulher bastante descapotável. Quem, senão ela, poderia dar um parecer abalizado sobre a identidade do órgão? Ou não era ela perita em medicina ilegal?”
Este tom mantêm-se por todo o livro: jogos de palavras, trocadilhos, como quem brinca com a escrita.
O que é certo é que, em comparação com outros livros de Mia Couto, há neste um certo tom nostálgico e mesmo negro, um certo pessimismo perante por destinos seguidos por esse país tão martirizado que é Moçambique.
Os capacetes azuis da Onu explodem misteriosamente; é a vingança da terra perante as armas dos homens. Eles não trazem a paz; eles testemunham a guerra, impassíveis, pouco interessados na terra e sem a compreender; é que o povo e a terra são um e único corpo. Mas isso ninguém compreende. Todos os estrangeiros (os de fora e os de dentro) querem extrair da terra o dinheiro que lhes saciará os vícios. Assim, todo o livro é um testemunho da vingança da terra perante o colonialismo. Nessa altura, em teoria geo-política, Moçambique era um país independente. Mas não o era na realidade: os colonialistas continuavam a sugar a terra em seu proveito: colonialistas externos representados por todos os estrangeiros que a exploravam e os “colonialistas internos”, ou seja, os moçambicanos oportunistas, poderosos, que desprezam a terra por que só a encaram como fonte de lucro e poder.
Com todo este oportunismo, este desprezo pela terra dos antepassados que a fizeram, a esperança vai morrendo: o flamingo, mensageiro das boas-novas, voa cada vez menos. E um dia voará pela última vez... 
Embora algo negro, o final é belíssimo: a “terra” engole a terra… só lendo mesmo é que se compreende. Portanto, não tenho dúvidas em afirmar que se há livros de leitura obrigatória para compreender a literatura africana de língua portuguesa, este é um deles.
Avaliação Pessoal: 9/10
Imagem daqui.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Venenos de Deus, Remédios do Diabo - Mia Couto

“A zanga é a nossa jura de amor”. Assim falava Munda Sozinha, companheira de vida do velho Bartolomeu Sozinho. Ele, velho mecânico de navios onde outrora calcorreou mares, agora não se limita a ficar em casa; ele é a casa; “depois de tantos anos, deixamos de viver em casa e passamos a ser a casa onde vivemos”. Depois de uma vida inteira no mar, só a casa lhe dá o ser; ou melhor, o quarto, a sua Nação, onde governa, gere a dívida externa e exonera administradores.

Um dos aspectos mais encantadores desta obra é o peculiar sentido de humor, simples e ingénuo, vindo da alma do povo e carregado com a sabedoria ancestral.
Fumando a tristeza, Bartolomeu sonha enquanto espera a morte. Sidónio, médico português voluntário, espera Deolinda. A vila inteira, Vila Cacimba, espera o futuro que tarda. Todos, sem futuro, brincam com o presente, como se a única alegria se fizesse nas partidas que ainda podem pregar à vida.
No meio da espera, o amor parece ser um ponto perdido no tempo; um alvo abstracto de todas as vidas, um final de enredo que apenas se antevê, apenas se sonha.
O amor, por vezes, é mesmo um lugar estranho. O amor e o sonho, ditos pelos homens soam por vezes com nome de pecado e crime: violação, incesto, infidelidade… muitos venenos, ou remédios? Coisas de Deus ou do Diabo? Cura ou castigo? Pouco importa… pouco importa, também, quem se alimenta desses venenos ou remédios com que se engana o tempo, porque para a vida não há remédio.
Apenas a espera, não necessariamente da morte. Talvez de um renascer para mais tarde remorrer…

Pintura de Malangatana, pintor Moçambicano, retirada daqui.

sábado, 31 de julho de 2010

A Varanda do Frangipani - Mia Couto

A poesia deste livro nasce logo no título: a “varanda” é Moçambique, na expressão de Eduardo Lourenço, lembrando o aspecto geográfico do país, debruçado sobre o Oceano Índico. O frangipani é uma árvore de Moçambique que tema a característica peculiar de perder toda a folhagem no momento da floração. É uma árvore que morre e renasce; ou apenas uma árvore que, como o país que Mia Couto lamenta, perde a memória?
Sepultado sob o frangipani, Ermelindo Mucanga não encontra a paz porque não fora despedido da vida como a tradição mandava. Por isso consultou o pangolim, animal escamoso, seu companheiro subterrâneo, que o aconselhou a regressar aos vivos para morrer de novo. Para remorrer e assim ser sepultado em paz.
Ermelindo encarna então um polícia encarregado de investigar um assassinato num asilo de velhos. Aí ele testemunhará os maus tratos e a agonia daqueles velhos que são a tradição, a alma de Moçambique, que os políticos e o povo desprezam.
Mia Couto tem magia nas palavras. Este é talvez o livro mais singelo e mais objectivo deste magnífico escritor moçambicano. Numa prosa, como sempre, marcadamente fiel à alma e ao falar de Moçambique, Mia Couto presenteia-nos com uma linguagem poética que nos faz muitas vezes pausar a leitura para sorrir, reler, fechar os olhos e saborear as palavras.
No coração da mensagem está a tradição, os antigamentes onde tudo começou. Uma tradição espezinhada pelos homens e pela guerra, ao ponto de Ermelindo hesitar se quer regressar aos vivos: “Como está a minha terra, não me apetece”…
Na terra dos homens, os velhos vão morrendo; e não é apenas de velhos corpos que se trata; é a tradição que morre, é a alma do povo, assassinada por guerras e ódios. Marta Gino, a enfermeira que dorme nua sobre a terra, sentencia: “Se fôssemos seguidores da tradição, sabe o que fazíamos? Devíamos fazer amor”…
Gina, assim como os velhos do asilo, guardam o segredo que ninguém parece querer conhecer: os homens, a terra, as pedras, as árvores, os animais, todos são irmãos. Porque no princípio, era tudo homens; até que os deuses acharam que todos eram muito iguais; e então transformou alguns em pedras, animais, árvores, etc. É por isso que somos todos parentes de tudo o que existe na terra… mas os homens não querem saber disso… são egoístas e violentos. E a alma de Moçambique entristece como aqueles velhos que vão perdendo o riso, depois os sonhos e por fim as palavras: “é essa a ordem da tristeza”…
Ermelindo volta para o coração da terra. A terra de onde tudo nasce; a terra que nenhuma guerra destrói. A Terra que vive no coração dos homens.
No final, da terra onde se enterram as armas, voaram andorinhas…
Imagem retirada daqui

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Mia Couto - Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra



Mais um livro em que Mia Couto transporta para a criação literária as marcas do período colonial e pós-colonial; a dor de um povo, ou de uma Terra (que é povo e tudo o mais), na escrita de um poeta sem rimas mas que faz escorrer o sangue da sua gente no papel da ficção. Terra e rio, gente, suor e lágrimas, termos de uma equação insolúvel, equivalente à vida. Escrita poética, escrita sofrida, mas também corajosa e sentida. Palavras que afluem do peito, frases inventadas pelo coração.

Ler este livro é fácil e divertido. A estória contada diverte e embala. Mas Mia Couto permite-nos algo mais que ler: a sentir o livro; deixarmo-nos conduzir pela alma de uma gente que um dia foi escrava para depois se escravizar; e sentimos que a dor da gente é uma dor que não tem fim; como a vida de Mariano, o defunto.

O estudante universitário Mariano volta à sua terra natal para o funeral do avô. Enquanto aguarda pela cerimónia é testemunha de estranhas visitas na forma de pessoas e de cartas que lhe chegam do outro lado do mundo. São revelações de um universo dominado por uma espiritualidade que ele vai reaprendendo. À medida que se apercebe desse universo frágil e ameaçado, ele redescobre uma outra história para a sua própria vida e para a da sua terra.

Luar do Chão (terra inventada mas real do Moçambique pós colonial mas onde a esperança morria) é terra de gente pobre. Terra sofrida, desfeita pelas ambições e promessas de quem, afinal, não trouxe o paraíso à terra.

No entanto, no meio da desilusão, dos sonhos assassinados, Mariano reencontra-se consigo mesmo em Luar do Chão; é a terra que traz consigo a identidade, o ser profundo de Mariano; é no meio do fantástico, do surreal que faz parte da vida, do misticismo de um povo que há-de sempre acreditar numa qualquer redenção, é aí mesmo que Mariano redescobre a esperança.

Um dos aspectos mais maravilhosos da escrita de Mia Couto é a síntese perfeita entre a leveza de um estilo que encanta pela simplicidade, fruto de um povo simples e puro e a profundidade filosófica da sua narrativa. Este livro é um convite à reflexão sobre muitos dos temas que continuam a conturbar o nosso mundo: a avidez dos lucros, a voragem capitalista sobre, afinal de contas, a terra-mãe, mas também o sentido da vida e da morte: o avô Mariano é o morto que se recusa a morrer; o defunto de obra inacabada que contempla o céu no seu leito de morte num quarto sem tecto. À sua volta deambulam personagens que encerram os grandes dilemas e sofrimentos da vida.

A terra, a mãe, contempla-os e determina os seus destinos.

Um livro apaixonante que é também um convite à transcendência; o homem não é só miséria ou lucro, sofrimento ou alegria; é um mundo inteiro de crenças, medos e paixões. A Terra não é só o lugar de onde cresce a alimento; a Terra é a imperatriz da vida; daí que ela se recuse a receber o corpo do avô Mariano enquanto a paz e a verdade não regressa à casa. A casa, por seu turno, é o centro da vida; as mulheres que a habitam são as mensageiras da paz e da felicidade de todos.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Jesusalém - Mia Couto

Jesusalém é a história de Mwanito, o menino. Um menino em África, terra de guerra, solidão e encanto. Jesusalém é também a terra sem tempo inventada por Silvestre Vitalício, pai de Mwanito que, fugido da cidade, procura a libertação numa antiga propriedade colonial. Junto com eles segue Ntunzi, o irmão mais velho e Zacarias, o antigo soldado que combateu do lado errado de todas as guerras.
Vitalício foge da cidade mas também da vida, da culpa e do tempo. Jesusalém seria a terra sem tempo nem dono, onde a solidão resgataria todas as mágoas. Ali, onde não há mulheres nem mundo, tudo é baptizado de novo e só Vitalício decide o que ali acontece. De preferência, procura que nada aconteça porque só o vazio faria sentido. O vazio e o silêncio.
O papel central do romance é assumido por Mwanito, o “afinador de silêncios”. Sobre isto, afirmou Mia Couto na apresentação da obra: “Em África, os silêncios são parte da conversa. O silêncio é uma outra maneira da palavra viver e há coisas que não podem ser ditas de outra maneira”. Mwanito personifica a paz, a única paz que Vitalício encontra e, ao mesmo tempo, a sua única ligação ao passado.
No entanto, não é possível fugir ao tempo nem ao mundo; é nesse aspecto que Jesusalém é uma história desencantada, onde a escrita poética e belíssima de Mia Couto encontra terreno fértil. A literatura ao lado do sofrimento, sem o qual não consegue viver.