Almas Mortas é a última e mais marcante obra de Gogol e constitui uma referência importante na literatura russa na medida em que marcou a transição do Romantismo oitocentista para o realismo. Neste contexto, Gogol acabou por ser um dos maiores precursores dos grandes escritores russos Tolstoi e Dostoiévski.
Almas Mortas foi uma obra maldita na época, pela crueza com que aborda a questão da servidão ainda em voga na Rússia naquela altura (1835). Num estilo directo e incisivo, Gogol aponta o dedo a uma sociedade anacrónica onde os servos constituíam propriedade dos seus senhores, que dispunham a seu bel-prazer das suas almas e dos seus corpos. O termo “almas” designa, na história da servidão russa os camponeses que eram propriedade dos seus senhores. O herói da narrativa, Chichiev, dispõe-se a comprar servos que haviam falecido mas que ainda tinham existência legal por não terem sido abatidos nas listas de recenseamento. O objectivo destas transacções só é revelado no final.
Numa excelente tradução, esta edição da Estampa apresenta-nos um pormenor que muitas vezes é desprezado: a manutenção dos nomes próprios na língua original, ao contrário de alguns maus exemplos, cada vez mais frequentes, em que se “aportuguesam” nomes de forma muitas vezes grosseira e ridícula.
O estilo de Gogol impressiona pela forma como constrói um verdadeiro diálogo com o leitor, constituindo uma proximidade que nos leva a ler como quem ouve uma estória.
Tal como Tolstoi e Dostoievski, Gogol critica asperamente a subserviência dos russos, que desprezam os inferiores e bajulam os superiores de forma descaradamente interesseira. Todos os vendedores de almas que o autor descreve ilustram as facetas mais negativas da alma humana e do povo russo em particular. É o caso de Manilov, um pequeno proprietário preguiçoso, sem vontade própria e sem ambição; uma viúva sovina totalmente desprovida de inteligência; Nozdriov, bêbado, mentiroso, jogador inveterado que recusa vender as suas almas mas dispõe-se de bom grado a jogá-las – símbolo do desprezo extremo pela alma humana; Sobakevitch diz mal de todos – é o exemplo da maledicência; Pliuskine é o mais avarento que se possa imaginar – tem mais de mil servos e os celeiros cheios mas vive na miséria.
Assim, o alvo maior da crítica de Gogol é a pequena aristocracia rural avarenta, uma espécie de classe média a que se juntam funcionários públicos corruptos e comerciantes desonestos. Este grupo contrasta com a alta aristocracia esbanjadora até ao extremo. Todos, sem excepção, são interesseiros e corruptos, usando muitas vezes uma delicadeza exagerada mas hipócrita para tentar enganar as pessoas com quem negoceiam. Prevalece a inveja e mesmo o ódio dissimulado. O bem público e a moral são completamente esquecidos. Os servos, esses, constituem apenas instrumentos de enriquecimento pessoal e símbolos de ostentação, sendo completamente esquecidos enquanto pessoas. Pelo contrário, são normalmente encarados como bêbados e preguiçosos e castigados duramente. A alienação interesseira das almas constitui o cúmulo, o expoente máximo do desprezo pelo ser humano.
Gogol faz também uma caracterização mordaz das mulheres da alta sociedade. Quase desprovidas de inteligência, são capazes de alimentar os maiores dos boatos. Preocupam-se acima de tudo com as aparências e o seu comportamento social gira sempre em torno do “galanteio” ou então da maledicência. O que é certo é que Gogol acaba por apontar o dedo acusador aos homens que, na sua maioria, se deixam envolver pela maledicência, pondo em causa tudo e todos com os boatos mais torpes. Na Rússia as pessoas gostam de falar de escândalos, diz Gogol. O leitor português não pode deixar de questionar: só na Rússia?
O final do livro é absolutamente brilhante, com a resposta a dois mistérios que se mantinham desde o início: qual a verdadeira personalidade de Chichikov (que Gogol habilmente vai escondendo) e com que intenção comprava ele as almas. A surpresa das respostas é tal que o leitor é levado a rever todas as explicações que o seu espírito foi construindo ao longo da leitura.